Durante
a infância passada na Líbia e na Síria, o desenhador francês Riad Sattouf foi
educado para ser um «árabe do futuro». Visto pelos seus olhos de criança, esse
mundo muçulmano dos anos 1980 é uma caricatura brutal.
Quando
lhe perguntam a que ponto se sente francês ou árabe, Riad Sattouf responde que
se sente mais... cartunista. Mas, em 2011, quando já era um autor de banda
desenhada e realizador conhecido, o fato de ter de superar muitos entraves para
ajudar alguns dos familiares sírios a se refugiarem da guerra civil em França
fê-lo desejar escrever sobre as suas origens. Nasceu daí o projeto de novelas
gráficas O Árabe do Futuro: ser jovem no
Médio Oriente, nas quais relata a infância na Líbia e na Síria e a
adolescência em França, exclusivamente a partir da memória pessoal e na
perspetiva do protagonista homónimo. Em Portugal, o primeiro volume (que cobre
entre 1978 e 1984) saiu no ano passado e o segundo (1984-1985) chegou às
livrarias há pouco; o terceiro está previsto para Setembro de 2017, todos editados
pela Teorema.
Filho
de pai sírio (sunita, adepto do pan-arabismo progressista, obcecado com a
educação dos árabes, estudou História Contemporânea na Sorbonne, graças a uma
bolsa do governo francês) e mãe francesa (da Bretanha), Riad Sattouf (hoje com
38 anos) nasceu em Paris, mas cresceu na Líbia (em Trípoli, entre os dois e os
quatro anos) e depois na Síria (na aldeia natal do pai, até aos sete anos). O trânsito
peripatético entre as culturas francesa e muçulmana colocou-o muito cedo à
margem das outras crianças, num estado de solidão que, garante, o impulsionou a
tornar-se desenhador. Na Líbia e na Síria, os hábitos ocidentais e os cabelos
compridos, «de um loiro platinado, espesso e sedoso» valeram-lhe ser apontado
como «yehudi» (judeu, «O» pior
inimigo à época, odiado visceralmente por todos); em França (onde passa férias
com a avó e onde se formará em Animação) foi sempre o tipo árabe com um nome
esquisito (em francês, o seu apelido assemelha-se a «sa touffe», associado ao sexo feminino). Vítima de bullying, Riad tornou-se um observador apurado,
muito apto na descrição de ambientes, personagens e sensações — assumem
particular importância os sons, as cores (azul e vermelho nas páginas sobre a
França, amarelo para a Líbia e carmim para a Síria) e os cheiros (o cheiro a
suor maternal da avó síria e o cheiro a perfume da avó francesa, o cheiro a
urina das multidões líbias, entre muitos outros).
Exercício
de rememoração ou autoanálise sem filtros, mas também sem nostalgia, O Árabe do Futuro insere-se na linha
autobiográfica de Persépolis, de
Marjane Satrapi (sobre crescer no Irão de Komeini) ou Mourir, partir, revenir, memórias da libanesa Zeina Abirached. Nos
últimos anos, o enfoque deste tipo de registo gráfico no ponto de vista
picaresco da criança ou do adolescente abriu novas possibilidades de
representação de realidades, conflitos e traumas históricos. Oferecendo uma
perspetiva individual e alternativa
do quotidiano num certo Médio Oriente, Satrapi, Abirached e Sattouf
conquistaram quase de forma unânime o público e a crítica. No caso de O Árabe do Futuro, é a sinceridade
ingénua do protagonista que lhe permite afirmar, por exemplo, enquanto olha os
retratos do líder espalhados por toda a parte: «Eu gostava menos do Assad que
do Kadafi. Era menos bonito, menos atlético. Tinha uma testa desproporcionada e
um ar um pouco aldrabão. Os seus olhos não se viam bem.»
Riad
Sattouf, descrito como um sujeito reservado e esquivo que nunca foi ativista de
causa nenhuma a não ser a da estranheza do olhar infantil ou adolescente sobre
o mundo, foi o único cartunista de origem árabe na equipa da Charlie Hebbdo entre 2004 e 2014 (saiu
meses antes do atentado de Janeiro de 2015), onde publicou a série semanal La vie secrète des jeunes, composta por
cenas photomaton por ele
testemunhadas nas ruas e nos transportes de Paris. Atualmente assina a série Les cahiers d’Esther, no Le Nouvel Obs, a partir de histórias
reais do quotidiano de uma miúda francesa de 10 anos. O seu trabalho nunca foi
provocatório em relação ao mundo árabe, mas, ainda que sem julgamento político,
a fórmula narrativa de O Árabe do Futuro
permite-lhe dar a ver uma realidade social quase totalmente desconhecida pelos
ocidentais e onde impera a violência, a sujidade, a penúria e o fanatismo.
Raid
e a família moram num apartamento (de uma assoalhada, sem chave) e comem a
comida (por vezes, só bananas) disponibilizados pelo Estado das massas
populares árabes líbias. A mãe perde o emprego como locutora de rádio porque
desata a rir ao ler um texto oficial em que se diz que Kadafi irá matar «o
filho de um cão do Reagan». As crianças brincam com armas e passam o tempo a
bater-se (com gosto) umas às outras. As casas, cheias de rachas, nunca são concluídas,
de modo a evitar o pagamento de impostos. Na Síria, Raid vê, pela janela do
apartamento, uma mulher a estender roupa na corda, à chuva, enquanto pousa um
bebé no chão de cimento, puxando-o depois por uma perna e cobrindo-o de beijos.
Ali perto, outros vizinhos espancam um burro (é constante a violência sobre os
animais). O irmão bebé come baratas. As mulheres comem os restos da refeição
dos homens. Os professores espancam os alunos com sadismo. Uma mulher é
assassinada porque engravidou fora do casamento (os assassinos ficam impunes).
Em traços negros e cenário colorido, pleno de anedotas e fait divers, o pequeno Raid assiste a tudo, dividido entre a
ambiguidade do que vê e a adoração pelo pai, um professor universitário
instruído, mas racista, belicista e cada vez mais fanatizado, com quem em
adulto ele cortará relações. O Árabe do
Futuro retrata um sonho passado (o do pan-arabismo paterno), com imagens de
um quotidiano de pesadelo, onde as personagens se salvam pelo humor e pelo
absurdo.
O Árabe do Futuro, Riad Sattouf, Teorema, 158 págs., 19.90 euros
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SOL 10-11-2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)