Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

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quinta-feira, julho 21, 2016

KL, o novo título do terror



Nikolaus Wachsmann escreveu a obra tida como «definitiva» sobre os campos de concentração geridos pela SS. Um portento de investigação, abordagem e rigor, que acaba de vencer o prestigiado Wolfson History Prize, um dos mais importantes prémios de não-ficção no Reino Unido.  

Em 2004, após a edição da sua tese de doutoramento sobre o sistema legal nazi (Hitler's Prisons: Legal Terror in Nazi Germany, New Haven: Yale University Press), Nikolaus Wachsmann propôs-se uma tarefa ciclópica, que só finalizaria onze anos depois. Congregar tudo o que era conhecido ou estaria disponível (sobretudo após as desclassificações dos anos 80 e 90) sobre o sistema dos campos de concentração administrados pela SS, isto é, um manancial gigantesco de informação acessível através de bibliografia primária e secundária, fontes, suportes e arquivos (consultou 45) espalhados por todo o mundo. Tornar esta massa de dados acessível, de forma rigorosa, a todos os interessados pelo tema, do investigador mais especializado ao leitor menos conhecedor. Responder às várias teses históricas existentes, colocando-se à margem de abordagens literárias e filosóficas. Combater a unidimensionalidade das imagens mais populares sobre os campos, contrapondo-lhe os «pormenores complexos e os matizes subtis do conhecimento histórico académico». Ao mesmo tempo, assegurar uma aproximação humanizada, isto é, que incluísse a descrição de casos pessoais, concretos, de perpetradores e vítimas. Impunha-se, sobretudo, vencer a propalada incapacidade de dizer, e fixar, o indizível.
KL: A História dos Campos de Concentração Nazis, lançado em 2015, cumpre na íntegra estes objectivos e assume-se como uma «história panóptica», uma janela aberta para avistar toda uma estrutura. Acaba de vencer o prestigiado Wolfson History Prize, um dos mais importantes prémios de não-ficção no Reino Unido, galardão com um valor pecuniário de 30 mil libras. É o estudo mais completo até à data, e dificilmente superável, do sistema dos KL (Konzentrationslager): 27 campos principais e mais de 1100 campos-satélites, em funcionamento entre 1933 e 1945 (o livro estende-se ao pós-guerra, à transformação temporária em campos de internamento aliados e, por fim, em lugares de memória), por onde se estima terem passado 2,3 milhões de homens, mulheres e crianças, e onde terão perecido 1,7 milhões de entre eles. Segundo o autor, Nikolaus Wachsmann, nascido em Munique e formado no Birbeck College da Universidade de Londres, onde actualmente lecciona História Moderna Europeia, «os campos de concentração encarnam o espírito do nazismo como nenhuma outra instituição do Terceiro Reich. […] Foram lugares de terror desregrado onde nasceram e se refinaram algumas das características mais radicais do regime». Sob o comando de Heinrich Himmler, chefe da SS, tornaram-se um mundo à parte, com modelos de organização, funcionamento e pessoal próprios e à margem do sistema legal. Um inferno sistematizado, cuja criação abalou as fundações de «todas as filosofias assentes na bondade intrínseca do homem» (François Mauriac, citado no prólogo).
Importa vincar que o leitor não encontrará neste livro uma análise da totalidade do sistema concentracionário do Terceiro Reich: campos de concentração, prisões, guetos e campos de extermínio (como Auschwitz-Birkenau, Belzec, Treblinka, Chelmno ou Sorbibor). Wachsmann, que pretendeu escrever uma «história integrada», circunscreveu o seu objecto de estudo aos campos geridos pela SS (Schutzstaffel, a força paramilitar de elite do partido nazi). A opção prende-se com a natureza dinâmica e multifacetada destas estruturas, criadas seis anos antes do início da guerra e depois espalhadas por toda a Europa ocupada pelos nazis, usadas primeiro para encarceramento de «inimigos do Estado» (a oposição de esquerda) e elementos «associais» (as vítimas mais esquecidas, cujo sofrimento e condição Wachsmann reabilita), depois como reservas de mão-de-obra forçada (Sachsenhausen, Dora, Buchenwald, Mauthausen, Flossenbürg ou Ravensbrück) ou para experiências médicas, por fim, após 1941, como auxiliares do extermínio em massa e do Holocausto (sobretudo Auschwitz I e Majdanek).
Valorizados pelos governantes nazis, os KL foram «instrumentos flexíveis de repressão ilegal que se podiam adaptar facilmente às mudanças nos requisitos do regime». Neles se concretizou toda a escalada da crueldade e do sofrimento de algozes e vítimas. Na verdade, a sua plasticidade e evolução irregular no tempo e no espaço espelhou todos os momentos, contextos-chave e especificidades da progressão, auge e declínio do poder nazi. Wachsmann destaca exemplos expressivos, como a história do campo-modelo de Dachau, a dos oficiais Theodor Eicke, Oswald Pohl e Rudolf Höss ou a de dois sobreviventes: o «cronista de Dachau» Edgar Kupfer e o judeu polaco Moritz Choinowski. Mas de mil casos e detalhes é composto o panorama tremendo exposto em KL: A História dos Campos de Concentração Nazis.
No início de 1944, o prisioneiro alemão Emil Mahl foi obrigado a participar em execuções em Dachau: «Como um cadáver ambulante, tive de fazer coisas horríveis», confessaria. «Nos KL, não havia espaço para a inocência», escreve Wachsmann; em Birkenau, as crianças reclusas jogavam um jogo chamado «Câmara de gás» e atiravam pedras simulando corpos para uma vala, enquanto imitavam os gritos das vítimas. Em Auschwitz, no jardim da sua moradia, cujo mobiliário era quase todo de madeira natural, a esposa do comandante Höss tinha um «paraíso de flores» exóticas. Os alimentos, o vestuário e até os brinquedos vinham do campo, bem como as reclusas que serviam como modistas, cabeleireiras e criadas de Frau Höss. Após a guerra, uma mulher, habitante da localidade de Dachau, declarou: «A chaminé do crematório tresandava e tresandava, dia e noite.» Naquele mesmo campo, o ex-talhante Karl Kapp «não foi um Kapo típico porque não existiu tal coisa» (Wachsmann): castigou, torturou, executou, mas também usou os seus poderes para ajudar presos e para manter «os brutamontes [SS] à distância». Em 1940, Margaret Buber-Neumann, prisioneira no Gulag de Karaganda, foi entregue pelas autoridades soviéticas aos nazis. Após percorrer 4500 km, chegou ao campo de mulheres de Ravensbrück. Este, com cacifos, mesas, cobertores, vestuário e roupa de cama mudados com regularidade, «parecia um palácio» se comparado com Karaganda. A primeira refeição da reclusa consistiu em papa de fruta, pão, uma salsicha, margarina e toucinho. Enquanto isso, no campo de Sachsenhausen, os presos, famintos e famélicos, até fantasiavam comer os cães dos SS...
Dividido em prólogo, onze capítulos e um epílogo, KL é um trabalho notável, pela sua acuidade, rigor e abrangência. Para o leitor comum, sê-lo-á também pela extraordinária capacidade de descrição de casos individuais, com o máximo de humanidade e isenção. A obsessão do historiador com o detalhe é visível em cada uma das 850 páginas e pode, para muitos, ser um entrave à leitura. E, no entanto, é essa a maior qualidade deste livro: a conjugação entre os níveis macro e micro de aproximação. Não se trata apenas de analisar com o máximo rigor e propriedade cada dado, momento e episódio. Wachsmann apresenta a realidade dos campos SS com «textura humana» (Roger Cohen), contextualizando-a no panorama global e variegado da história do terror nazi. Daí que KL, organizado de forma cronológica, forneça uma aproximação excepcional, ao mesmo tempo minuciosa e abrangente, capaz de dissolver alguns dos mitos mais comuns sobre os campos de concentração, nomeadamente o da sua invisibilidade, o da passividade absoluta das vítimas (são múltiplos e expressivos os exemplos de resistência assinalados), o da maior mortalidade dos judeus nos campos de concentração («a grande maioria dos 5-6 milhões assassinados pelo regime nazi pereceu noutros lugares, abatida a tiro em valas e campos espalhados pela Europa de Leste ou gaseada em campos de extermínio específicos»; «os judeus nunca foram mais do que 30% da população prisional registada nos campos») ou o da existência de um «criminoso nazi típico». Acima de tudo, KL esbate o mito de que o terror dos campos nazis jamais seria abarcável enquanto objecto de estudo ou pesadelo humano. Wachsmann tornou palpável o que antes era tido por inconcebível. E esse é só por si um feito monumental.

 
KL: A História dos Campos de Concentração Nazis, Nikolaus Wachsmann, Publicações Dom Quixote, 853 págs., 34.90 €

Café com Letras Março 2016 | Jornal "i" - 12/07/2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

terça-feira, março 06, 2012

Diálogos sobre a Ciência e o Homem - Primo Levi e Tullio Regge


Em diálogo, o químico Primo Levi e o físico Tullio Regge fundem ciência e biografia.
Em 1984, o químico e escritor Primo Levi e o físico Tullio Regge encontram-se na casa deste último, em Turim, para gravar três conversas sobre a ciência e o mundo. Regge tem 53 anos, Levi tem 65 e falecerá três anos depois, em 1987, no que ainda se questiona ter sido um suicídio ou um acidente. O pequeno volume Diálogo sobre a Ciência e os Homens reproduz o essencial do encontro informal entre os dois, uma homenagem póstuma de Regge ao mais famoso sobrevivente-testemunha de Auschwitz, também um homem de ciência possuidor de «uma curiosidade omnívora sobre tudo».
Na introdução, datada de 1989, Regge esclarece que, ao longo da conversa, foram privilegiados os seus assuntos prediletos porque ele mesmo se conteve em questionar Levi sobre Auschwitz. A certa altura, Levi estendeu o braço e ficou visível o número tatuado no pulso. Esse foi um dos poucos momentos em que, brevemente, foi referida a experiência como prisioneiro. Mas Regge revela a surpresa com que leu o livro de memórias O Sistema Periódico (Gradiva), de 1975, no qual Levi associa várias personagens-personalidades reais (entre elas, um químico nazi alemão, chefe de um campo de concentração) a elementos químicos específicos. E é, de facto, no testemunho de uma fusão entre a realidade da ciência, da vida e da ficção que consiste também o interesse deste livro.
Empolgado, Primo Levi diz que «pôr alguma coisa no seu devido lugar» é a aventura mental comum ao poeta e ao cientista. Conta como, em criança, assistia ao crescimento dos cristais numa lamela como se visse um filme. Explica que é do contacto com «uma química “baixa”, quase culinária» que lhe vêm a «precisão e concisão» na escrita, «uma vasta coleção de metáforas» e uma grande paciência. Aos 65 anos, desenha no computador e diverte-se como uma criança. Tullio Regge assegura que, «se pudesse reencarnar, escolheria ser músico». Dois homens conversam sobre a importância do hebraico ou do latim, as origens familiares, o ensino da ciência e a rebeldia da vocação científica, o encontro com grandes génios, a teoria do campo unificado, os limites entre ciência, ficção científica e metafísica ou o futuro do homem no espaço. Levi e Regge em diálogo mostram como a ciência contaminou toda a sua biografia.

Diálogo sobre a Ciência e os Homens, Primo Levi e Tullio Regge, Gradiva, 106 págs.

SOL/ 17-02-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

quarta-feira, novembro 24, 2010

Imre Kertész | Eu é outro



















Dizem-nos que os pássaros não cantam no que foi o campo de concentração de Auschwitz. Mas a verdade - e, sim, cantam - só pode ser confirmada in loco, no mais veemente museu-testemunho da barbárie humana. Em Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose (1997), diário ficcional do judeu húngaro Imre Kertész entre 1991 e 1995, o escritor, Prémio Nobel da Literatura em 2002, alerta: «Já notaram que, neste século (o XX), tudo se tornou mais verdadeiro, e ele mesmo mais verdadeiro? O soldado tornou-se um assassino profissional; a política, delinquência; o capital, fábrica para destruir os homens, equipada com fornos crematórios; a lei, regra de um jogo de patetas; a liberdade universal, prisão dos povos; o anti-semitismo, Auschwitz; o sentimento nacional, genocídio.» Para quem, como Kertész, viveu a experiência-limite de um campo de concentração, impôs-se a «violência de um imperativo imediato de fazer os 'outros' participarem» (Primo Levi). Nessa luta por testemunhar, tornou-se evidente a ineficácia da linguagem para dizer a 'verdade', já que o relato bruto da realidade pode provocar um efeito de ficção. Desde o primeiro romance, Sem Destino (terminado em 1965, publicado numa edição limitada dez anos depois), Kertész rendeu-se à criação literária como metáfora de 'quase-verdade'.
Kértesz recusa os seus livros como autobiográficos. No entanto, é o seu fantasma real que habita todos os enredos e personagens, sobretudo o possível alter ego, György Köves. O essencial da 'verdade ficcionada' está todo na trilogia Sem Destino, A Recusa (1988) e Kaddish Para uma Criança Que Não Vai Nascer (1990), editada pela Presença. Os dados biográficos dizem-nos que, em 1944, com 15 anos, Kertész foi deportado para Auschwitz, e, dali, para Buchenwald. Após a libertação, regressou à Hungria, trabalhou como jornalista e serviu no exército, até 1953, quando optou em exclusivo pela escrita. Durante o Regime Comunista, sobreviveu num apartamento de uma assoalhada em Budapeste, graças à venda de traduções e peças de teatro, criando a sua obra em segredo e sem audiência. Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose é mais um contributo do seu excepcional questionamento sobre a condição humana e a Europa. Um texto na primeira pessoa, escrito depois dos 70 anos, por alguém que ainda 'é' apenas porque conseguiu tornar-se «um outro».

Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose, Imre Kertész, Editorial Presença, 102 págs.

SOL/ 19-06-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)

Imre Kertész | Eu é outro



















Dizem-nos que os pássaros não cantam no que foi o campo de concentração de Auschwitz. Mas a verdade - e, sim, cantam - só pode ser confirmada in loco, no mais veemente museu-testemunho da barbárie humana. Em Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose (1997), diário ficcional do judeu húngaro Imre Kertész entre 1991 e 1995, o escritor, Prémio Nobel da Literatura em 2002, alerta: «Já notaram que, neste século (o XX), tudo se tornou mais verdadeiro, e ele mesmo mais verdadeiro? O soldado tornou-se um assassino profissional; a política, delinquência; o capital, fábrica para destruir os homens, equipada com fornos crematórios; a lei, regra de um jogo de patetas; a liberdade universal, prisão dos povos; o anti-semitismo, Auschwitz; o sentimento nacional, genocídio.» Para quem, como Kertész, viveu a experiência-limite de um campo de concentração, impôs-se a «violência de um imperativo imediato de fazer os 'outros' participarem» (Primo Levi). Nessa luta por testemunhar, tornou-se evidente a ineficácia da linguagem para dizer a 'verdade', já que o relato bruto da realidade pode provocar um efeito de ficção. Desde o primeiro romance, Sem Destino (terminado em 1965, publicado numa edição limitada dez anos depois), Kertész rendeu-se à criação literária como metáfora de 'quase-verdade'.
Kértesz recusa os seus livros como autobiográficos. No entanto, é o seu fantasma real que habita todos os enredos e personagens, sobretudo o possível alter ego, György Köves. O essencial da 'verdade ficcionada' está todo na trilogia Sem Destino, A Recusa (1988) e Kaddish Para uma Criança Que Não Vai Nascer (1990), editada pela Presença. Os dados biográficos dizem-nos que, em 1944, com 15 anos, Kertész foi deportado para Auschwitz, e, dali, para Buchenwald. Após a libertação, regressou à Hungria, trabalhou como jornalista e serviu no exército, até 1953, quando optou em exclusivo pela escrita. Durante o Regime Comunista, sobreviveu num apartamento de uma assoalhada em Budapeste, graças à venda de traduções e peças de teatro, criando a sua obra em segredo e sem audiência. Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose é mais um contributo do seu excepcional questionamento sobre a condição humana e a Europa. Um texto na primeira pessoa, escrito depois dos 70 anos, por alguém que ainda 'é' apenas porque conseguiu tornar-se «um outro».

Um Outro: Crónica de Uma Metamorfose, Imre Kertész, Editorial Presença, 102 págs.

SOL/ 19-06-2009
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)