Nikolaus
Wachsmann escreveu a obra tida como «definitiva» sobre os campos de
concentração geridos pela SS. Um portento de investigação, abordagem e rigor,
que acaba de vencer o prestigiado Wolfson History Prize, um dos mais importantes prémios
de não-ficção no Reino Unido.
Em 2004, após a edição da sua tese de doutoramento sobre o sistema legal nazi (Hitler's Prisons: Legal Terror in Nazi Germany, New Haven: Yale University Press), Nikolaus Wachsmann propôs-se uma tarefa ciclópica, que só finalizaria onze anos depois. Congregar tudo o que era conhecido ou estaria disponível (sobretudo após as desclassificações dos anos 80 e 90) sobre o sistema dos campos de concentração administrados pela SS, isto é, um manancial gigantesco de informação acessível através de bibliografia primária e secundária, fontes, suportes e arquivos (consultou 45) espalhados por todo o mundo. Tornar esta massa de dados acessível, de forma rigorosa, a todos os interessados pelo tema, do investigador mais especializado ao leitor menos conhecedor. Responder às várias teses históricas existentes, colocando-se à margem de abordagens literárias e filosóficas. Combater a unidimensionalidade das imagens mais populares sobre os campos, contrapondo-lhe os «pormenores complexos e os matizes subtis do conhecimento histórico académico». Ao mesmo tempo, assegurar uma aproximação humanizada, isto é, que incluísse a descrição de casos pessoais, concretos, de perpetradores e vítimas. Impunha-se, sobretudo, vencer a propalada incapacidade de dizer, e fixar, o indizível.
Em 2004, após a edição da sua tese de doutoramento sobre o sistema legal nazi (Hitler's Prisons: Legal Terror in Nazi Germany, New Haven: Yale University Press), Nikolaus Wachsmann propôs-se uma tarefa ciclópica, que só finalizaria onze anos depois. Congregar tudo o que era conhecido ou estaria disponível (sobretudo após as desclassificações dos anos 80 e 90) sobre o sistema dos campos de concentração administrados pela SS, isto é, um manancial gigantesco de informação acessível através de bibliografia primária e secundária, fontes, suportes e arquivos (consultou 45) espalhados por todo o mundo. Tornar esta massa de dados acessível, de forma rigorosa, a todos os interessados pelo tema, do investigador mais especializado ao leitor menos conhecedor. Responder às várias teses históricas existentes, colocando-se à margem de abordagens literárias e filosóficas. Combater a unidimensionalidade das imagens mais populares sobre os campos, contrapondo-lhe os «pormenores complexos e os matizes subtis do conhecimento histórico académico». Ao mesmo tempo, assegurar uma aproximação humanizada, isto é, que incluísse a descrição de casos pessoais, concretos, de perpetradores e vítimas. Impunha-se, sobretudo, vencer a propalada incapacidade de dizer, e fixar, o indizível.
KL: A História dos Campos de Concentração
Nazis, lançado em 2015, cumpre na íntegra estes objectivos e assume-se como
uma «história panóptica», uma janela aberta para avistar toda uma estrutura. Acaba
de vencer o prestigiado Wolfson History Prize,
um dos mais importantes prémios de não-ficção no Reino Unido, galardão com um
valor pecuniário de 30 mil libras. É o estudo mais completo até à data, e
dificilmente superável, do sistema dos KL (Konzentrationslager):
27 campos principais e mais de 1100 campos-satélites, em funcionamento entre
1933 e 1945 (o livro estende-se ao pós-guerra, à transformação temporária em
campos de internamento aliados e, por fim, em lugares de memória), por onde se
estima terem passado 2,3 milhões de homens, mulheres e crianças, e onde terão perecido
1,7 milhões de entre eles. Segundo o autor, Nikolaus Wachsmann, nascido em
Munique e formado no Birbeck College da Universidade de Londres, onde
actualmente lecciona História Moderna Europeia, «os campos de concentração
encarnam o espírito do nazismo como nenhuma outra instituição do Terceiro Reich.
[…] Foram lugares de terror desregrado onde nasceram e se refinaram algumas das
características mais radicais do regime». Sob o comando de Heinrich Himmler,
chefe da SS, tornaram-se um mundo à parte, com modelos de organização, funcionamento
e pessoal próprios e à margem do sistema legal. Um inferno sistematizado, cuja
criação abalou as fundações de «todas as filosofias assentes na bondade
intrínseca do homem» (François Mauriac, citado no prólogo).
Importa
vincar que o leitor não encontrará neste livro uma análise da totalidade do sistema concentracionário do Terceiro
Reich: campos de concentração, prisões, guetos e campos de extermínio (como Auschwitz-Birkenau,
Belzec, Treblinka, Chelmno ou Sorbibor). Wachsmann, que
pretendeu escrever uma «história integrada», circunscreveu o seu objecto
de estudo aos campos geridos pela SS (Schutzstaffel, a força paramilitar de elite do
partido nazi). A opção
prende-se com a natureza dinâmica e multifacetada destas estruturas, criadas seis
anos antes do início da guerra e depois espalhadas por toda a Europa ocupada
pelos nazis, usadas primeiro para encarceramento de «inimigos do Estado» (a
oposição de esquerda) e elementos «associais» (as vítimas mais esquecidas, cujo
sofrimento e condição Wachsmann reabilita), depois como reservas de mão-de-obra
forçada (Sachsenhausen, Dora, Buchenwald, Mauthausen, Flossenbürg ou
Ravensbrück) ou para experiências médicas, por fim, após 1941, como
auxiliares do extermínio em massa e do Holocausto (sobretudo Auschwitz
I e Majdanek).
Valorizados
pelos governantes nazis, os KL foram «instrumentos flexíveis de repressão ilegal
que se podiam adaptar facilmente às mudanças nos requisitos do regime». Neles
se concretizou toda a escalada da crueldade e do sofrimento de algozes e
vítimas. Na verdade, a sua plasticidade e evolução irregular no tempo e no
espaço espelhou todos os momentos, contextos-chave e especificidades da
progressão, auge e declínio do poder nazi. Wachsmann destaca exemplos
expressivos, como a história do campo-modelo de Dachau, a dos oficiais Theodor
Eicke, Oswald Pohl e Rudolf Höss ou a de dois sobreviventes: o «cronista de
Dachau» Edgar Kupfer e o judeu polaco Moritz Choinowski. Mas de mil casos e
detalhes é composto o panorama tremendo exposto em KL: A História dos Campos de Concentração Nazis.
No
início de 1944, o prisioneiro alemão Emil Mahl foi obrigado a participar em
execuções em Dachau: «Como um cadáver ambulante, tive de fazer coisas
horríveis», confessaria. «Nos KL, não havia espaço para a inocência», escreve
Wachsmann; em Birkenau, as crianças reclusas jogavam um jogo chamado «Câmara de
gás» e atiravam pedras simulando corpos para uma vala, enquanto imitavam os
gritos das vítimas. Em Auschwitz, no jardim da sua moradia, cujo mobiliário era
quase todo de madeira natural, a esposa do comandante Höss tinha um «paraíso de
flores» exóticas. Os alimentos, o vestuário e até os brinquedos vinham do
campo, bem como as reclusas que serviam como modistas, cabeleireiras e criadas
de Frau Höss. Após a guerra, uma
mulher, habitante da localidade de Dachau, declarou: «A chaminé do crematório
tresandava e tresandava, dia e noite.» Naquele mesmo campo, o ex-talhante Karl
Kapp «não foi um Kapo típico porque
não existiu tal coisa» (Wachsmann): castigou, torturou, executou, mas também
usou os seus poderes para ajudar presos e para manter «os brutamontes [SS] à
distância». Em 1940, Margaret Buber-Neumann, prisioneira no Gulag de Karaganda,
foi entregue pelas autoridades soviéticas aos nazis. Após percorrer 4500 km,
chegou ao campo de mulheres de Ravensbrück. Este, com cacifos, mesas,
cobertores, vestuário e roupa de cama mudados com regularidade, «parecia um
palácio» se comparado com Karaganda. A primeira refeição da reclusa consistiu
em papa de fruta, pão, uma salsicha, margarina e toucinho. Enquanto isso, no
campo de Sachsenhausen, os presos, famintos e famélicos, até fantasiavam comer
os cães dos SS...
Dividido
em prólogo, onze capítulos e um epílogo, KL
é um trabalho notável, pela sua acuidade, rigor e abrangência. Para o leitor
comum, sê-lo-á também pela extraordinária capacidade de descrição de casos
individuais, com o máximo de humanidade e isenção. A obsessão do historiador
com o detalhe é visível em cada uma das 850 páginas e pode, para muitos, ser um
entrave à leitura. E, no entanto, é essa a maior qualidade deste livro: a
conjugação entre os níveis macro e micro de aproximação. Não se trata apenas de
analisar com o máximo rigor e propriedade cada dado, momento e episódio.
Wachsmann apresenta a realidade dos campos SS com «textura humana» (Roger
Cohen), contextualizando-a no panorama global e variegado da história do terror
nazi. Daí que KL, organizado de forma
cronológica, forneça uma aproximação excepcional, ao mesmo tempo minuciosa e
abrangente, capaz de dissolver alguns dos mitos mais comuns sobre os campos de
concentração, nomeadamente o da sua invisibilidade, o da passividade absoluta
das vítimas (são múltiplos e expressivos os exemplos de resistência
assinalados), o da maior mortalidade dos judeus nos campos de concentração («a
grande maioria dos 5-6 milhões assassinados pelo regime nazi pereceu noutros
lugares, abatida a tiro em valas e campos espalhados pela Europa de Leste ou
gaseada em campos de extermínio específicos»; «os judeus nunca foram mais do
que 30% da população prisional registada nos campos») ou o da existência de um
«criminoso nazi típico». Acima de tudo, KL
esbate o mito de que o terror dos campos nazis jamais seria abarcável
enquanto objecto de estudo ou pesadelo humano. Wachsmann tornou palpável o que
antes era tido por inconcebível. E esse é só por si um feito monumental.
KL: A História dos
Campos de Concentração Nazis, Nikolaus Wachsmann, Publicações Dom Quixote,
853 págs., 34.90 €
Café com Letras Março 2016 | Jornal "i" - 12/07/2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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