Tido
como um monumento da literatura australiana e universal, Voss é um romance iluminado pelo clarão brilhante, mas opaco, das grandes
obras modernistas.
Enquanto
na pintura as formas, as cores e os materiais se sobrepunham à expressão do
real, na literatura, as palavras, os ambientes, as personagens e até os objetos
adquiriam vida própria, formando composições estranhas e visões distorcidas.
Trabalhando a presença da visão da personagem sobre o mundo como se de um
objeto a três dimensões se tratasse, o modernismo elevou a vida interior sobre
a exterior e fez da reprodução da ambiguidade fundamental do eu e do comportamento
humano o seu objetivo e tema principais. Em Voss,
a obra-prima escrita pelo australiano Patrick White (Londres, 1912 - Sydney,
1990) em 1957, as características modernistas servem como metáfora do
equipamento e companhia com os quais o explorador alemão Johann Ulrich Voss se apetrecha
para se aventurar na desconhecida Austrália central. Compelido para dentro daquele
país, Voss é, como Charles Marlow de O
Coração das Trevas de Joseph Conrad ou o «rapaz» de Meridiano de Sangue de Cormac McCarthy, o estrangeiro que penetra
no mistério indomável. A Austrália, pátria de desterrados, é o território
perturbador onde «é mais fácil descartar o supérfluo e tentar o infinito» e
onde se torna possível a viagem de Voss à procura do seu génio — «Serás muito
provavelmente queimado, verás a tua carne arrancada dos ossos, e é provável que
sejas torturado de muitas formas horríveis e primitivas, mas perceberás qual o
génio que, por vezes, pensas possuir, e do qual não me dirás ter medo».
Voss baseia-se na biografia do naturalista prussiano
Ludwig Leichhardt que, em meados do século XIX, realizou três expedições ao
interior da Austrália (procurando percorrer o território de Brisbane a Perth) até
desaparecer sem deixar rasto e sem que o seu corpo fosse jamais encontrado. O
romance termina 20 anos depois, com uma festa em honra do explorador
protagonista, a quem é erigida uma estátua. Logo nas primeiras páginas e depois
num certo encontro na escuridão de um jardim (que podia ser o do paraíso),
revelara-se uma estranha afinidade entre o seu mundo particular, «feito de
deserto e de sonhos», e o universo sensível da orfã Laura Trevelyan, sobrinha
do seu maior patrocinador, o Sr. Bonner. E é Laura, acompanhada por Mercy, a filha
adotiva (nascida de Rose, a criada liberta), quem termina por dizer que Voss,
como outros homens, tinha em si um pouco de Cristo: «Se era composto de mal
juntamente com o bem lutou contra esse mal. E falhou.» Pleno de simbolismos, Voss é um longo exercício de prova de
que «as palavras são somente compassivas quando livres das suas obrigações»,
uma missão exploratória também levada a cabo pelos modernistas.
Patrick
White, Nobel da literatura em 1973 (o primeiro australiano a receber esta
distinção), afirmou que escrevia sempre três versões dos seus livros: «A
primeira é agonia e ninguém a perceberia. Com a segunda atinjo uma forma, mais
ou menos certa... A terceira é a que ilumina de algum modo esse sofrimento.»
Tão enigmática como certas passagens de Voss,
esta afirmação fornece uma chave importante para a compreensão do efeito
estranho que o romance provoca no leitor. A descoberta do eu como recurso
estilístico abriu campo para que o escritor trouxesse o tempo e o espaço para
dentro de si mesmo, como um microcosmo, misterioso e pessoal (Daniel Boorstin).
A riqueza do pensamento, do que passa pela nossa cabeça num só minuto, é tão
enigmática que só através do fluxo livre da escrita talvez alguma vez a
alcancemos, recriando-a num outro espaço e tempo. É daí que vem a convicção de
Virginia Woolf de que «nada acontece verdadeiramente até estar escrito». Ou o
lamento de Laura: «Oh, Céus, se ao menos pudesse descrever em palavras simples
a imensidão do conhecimento simples...» O processo de transposição do mistério
para uma forma mais ou menos racional implica necessariamente insucesso e sofrimento
e, segundo White, alguma forma de contrição. Voss e Laura sabem-se habitados
por uma centelha rara, um vento traiçoeiro, relampejos de intuição que os
aproximam ainda mais enquanto estão separados (e estão-no durante todo o
romance) e apenas podem comunicar entre si por cartas e nos sonhos.
«Debatemo-nos com a cartilagem e os ossos antes de nos aventurarmos a assumir a
carne», escreve ele, numa carta que o velho negro Dugald rasgará em mil
pedacinhos «de maus pensamentos do homem branco», antes de partir com os da sua
tribo e ser absorvido por completo pelo presente.
Patrick
White criou um painel vivo, estacionado em Sidney ou em movimento através do
coração da Austrália, procurando descrever um país que nunca se deixará
submeter por completo ao aborígene ou ao colono e que sempre conterá um deserto
implacável, capaz de sugar todos os Voss «obcecados pelo seu sonho de distância
e com o futuro». O tempo do romance é o tempo da expedição à natureza
psicológica e espiritual de cada personagem: do poeta secreto Frank Le Mesurier,
o simplório Harry Robarts, o ornitólogo Palfreyman, o bêbado Turner, o jovem
proprietário Ralph Angus, o condenado liberto Judd, caráter oposto ao de Voss, dos
aborígenes Jackie e Dugald aos habitantes do círculo social de Potts Point,
Sydney. Na gruta ou no deserto, comparáveis à impenetrabilidade e ao vazio da
alma humana (onde se revelam as verdades mais profundas), o estilo de White
assume-se mais críptico e elíptico, por vezes quase incompreensível, como o são
as palavras em alemão que Voss dirige aos nativos ou as almas desaparecidas e
representadas por pinturas nas grutas. A vastidão das distâncias e a paisagem
hostil são metáforas poderosas da solidão espiritual humana. Após o dilúvio,
saídos da gruta, os homens percorrem pastagens líricas até reentrarem no
deserto redentor. «A região diabólica, inicialmente plana, depressa irrompeu em
barrancos tortuosos, não particularmente profundos, mas suficientemente
íngremes para esforçar as costas dos animais que tinham de os atravessar, e
desgastar os corpos e os nervos dos homens com o movimento frenético que tal
acção envolvia. Não havia como evitar o caos fazendo um desvio.» Só lhes resta
conservar a esperança.
Profundamente
original, Patrick White influenciou decisivamente todas as gerações seguintes
de autores australianos (David Malouf e Peter Carey tornaram pública a sua
dívida para com ele; o primeiro dedicou-lhe até o libreto de uma ópera), mas é
hoje quase ignorado pelos leitores europeus. Voss, narrativa simbólica, acompanha uma história de amor e a
tentativa épica de um homem (Voss) em imaginar-se divino, quando, afinal, a sua
salvação reside na possibilidade de se perder no deserto. O combate de Voss e
Laura contra a arrogância e a fragilidade que os definem num primeiro momento
acompanha a revelação progressiva da sua verdadeira natureza. O seu casamento
(Laura aceita por carta a proposta feita por Voss) é uma ilusão, tão imaterial
e ilusória como as palavras que dirigem um ao outro ou a sua «filha», Mercy. A
plenitude atingida através do sacrifício (da cadela, do pássaro, do cavalo, de
Le Mesurier) e do sofrimento é uma forma de auto transcendência, que prescinde
de Deus. Sobre Laura, diz-se logo no início: «Já em menininha se mostrara algo
céptica, talvez devido ao tédio: sufocava com a penugem da fé. Acreditava
contudo, de modo palpável, na madeira, com os reflexos que nela se reproduziam,
e na clara luz do dia, e na água. Ainda hoje em dia reflectia fanaticamente num
qualquer problema matemática só pela excitação que lhe proporcionava, para
assim o solucionar e conhecer.» Voss
é, igualmente, uma expedição, modernista, em rutura com todas as relações
óbvias com os objetos comuns da nossa experiência, à procura de uma corrente de
consciência que reproduza as composições invulgares do pensamento humano. Ou,
como confessará a Menina Laura Trevelyan: «O conhecimento nunca foi uma questão
de geografia. Antes pelo contrário: inunda todos os mapas existentes. O
verdadeiro conhecimento talvez surja apenas da tortura no país da mente.»
Voss, Patrick
White, E-Primatur, 489
págs., 19.90 euros, *****
Jornal «i», 28-11-2016
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