Antologia
de textos de autores portugueses sobre os Estados Unidos, America, the Beautiful, com organização de Carla Baptista, mostra o
quão longe estamos do outro lado do Atlântico. De projeção em projeção, é de
uma terra distante e exótica que ali se fala (ainda mais agora, na era Trump).
Antes
de irmos para Ocidente, até à América, vamos até ao Oriente, mais precisamente
até ao território desconhecido que Marco Polo percorreu no século XII e de que
deu conta ao seu colega de cela, Rusticiano de Pisa, no que seria depois
publicado como Il Milione, A Descrição do Mundo ou somente As Viagens de Marco Polo. Sendo um dos
primeiros ocidentais a percorrer a Rota da Seda, Polo viajara através de um
território real que o imaginário medieval povoara de seres fabulosos e
efabulados. Daí que o relato das suas viagens se situe entre a realidade então descortinada
e o gosto fantasioso da época. Polo tanto descreve com minúcia unicórnios,
amazonas ou centauros, como desmistifica a figura do rinoceronte, grande como
um elefante, com pelo de búfalo e cabeça de porco selvagem, amante do lodo e da
lama, e que, diz ele: «De facto, não se parece com a ideia que temos nem com o
que dizemos quando o descrevemos como animal que se deixa agarrar pelos braços
de uma virgem: é precisamente o oposto.»
Ora,
vem isto a propósito de America, the
beautiful, antologia organizada por Carla Baprista (docente da
FCSH/Universidade de Lisboa, jornalista freelance,
investigadora no Centro de Investigação Media e Jornalismo, especialista em
história do jornalismo em Portugal e argumentista de cinema. Trata-se de uma recolha
de registos de escritores portugueses sobre a América do Norte, de Eça de
Queirós, em 1866, a José Rodrigues Miguéis, em 1972, passando por Antero de
Figueiredo, António Ferro, Natália Correia, Joaquim Paço d’Arcos, Norberto
Lopes ou Jorge de Sena, entre outros. São 15 testemunhos pessoais, compostos
sobretudo em viagem, sobre um território e um povo que, então, como creio que
ainda hoje acontece, nos permanecem essencialmente desconhecidos. Como a Ásia o
era para o Ocidente no século XII, a América foi e continua a ser em grande
parte um país verdadeiramente exótico para os portugueses. Uma terra povoada
por amazonas e rinocerontes (sim, é uma analogia atual) ou, melhor, povoada por
centauros e por coelhos, ao jeito de John Updike.
Lê-se
na contracapa deste livro, para dar o tom: «A América era longe e linda.
Oferecia uma paisagem imensa e uma energia surpreendente aos viajantes.» América,
terra longe, linda, remota e excêntrica. Eduardo Lourenço retratou-a como uma
«entidade quase estranha, paradoxal, complexa», como «um incontornável
histórico» ou como o «continente futurante por excelência». E já Tocqueville
havia ido até à América porque acreditava que ela representava o futuro – o que
ali acontecia, aconteceria no futuro na Europa e no mundo. Ali aportaram os primeiros
peregrinos como numa nova Canãa, num novo paraíso, um novo mundo onde o plano
de Deus se podia realizar, e realizou, numa conjugação singular de abundância
material, liberdade individual e cumprimento ético e religioso. No sonho e na
realidade americana, as igrejas assemelham-se a bancos e as lojas de fast food parecem igrejas. Uma
conjugação única e inimaginável, pelo menos pelos europeus, até ela, por
imitação, chegar às suas cidades e às suas autoestradas e as ocupar em nome da
mundialização - que é o mesmo que dizer em nome da americanização do mundo. O
que aqui vai escrito sobre a América precede esta contaminação da Europa pela
cultura pop e por uma ideologia e prática
americanas de consumo, que afinal nos mantêm ignorantes sobre o verdadeiro american way of life, mas que
contaminaram o discurso intelectual europeu sobre os Estados Unidos nas últimas
quatro décadas, não englobadas neste livro. Até à década de 1970, a América
correspondeu essencialmente a uma «beautiful
idea»: a de um espaço de democracia e de sonho, onde tudo há e onde tudo
acontece.
Miguel
Torga, referido no prefácio por Carla Baptista, refere a «fascinação
consciente» do intelectual europeu pela América, nestes termos: «Do Alasca à
Patagónia surge-lhe um tesouro de cintilações diversas que o encandeiam […] A
voz de Walt Whitman deixa de ser uma modulação íntima e metrificada em quadras
e tercetos. É um desbordamento continental, uma torrente que inunda como um rio
de águas indisciplinadas. Nem misticismos maceradores, nem sentimentalismos
ambíguos, nem satânicos requintes. Versos de aço como linhas de
caminho-de-ferro, por onde o progresso desliza, trepidante e optimista.» Este
fascínio é visível em cada um dos textos antologiados, ainda que aqui e ali
temperado por um olhar crítico, ambíguo sobre essa «oficina sombria e
resplandecente», como lhe chamou Eça de Queirós. Nova Iorque, é uma cidade que
em parte eu amo e que em parte eu detesto, disse ele. «Querida Nova Iorque! —
Não, odiada Nova Iorque!» Natália Correia, no registo mais crítico desta
antologia, declara que se descobriu europeia na América, mas não escapa a
deslumbrar-se com a «diversidade do espetáculo humano», com a vida autêntica da
classe média, o «gozo das coisas ingénuas», a interdependência social, a
valorização individual, a meritocracia, o espírito de «viver e deixar viver», o
respeito pela liberdade de cada um. De regresso a Portugal, reconhece que
existe uma alma por debaixo da face insípida, uniformizada que a América primeiro
lhe mostrara. E conclui: «A América é um problema de que só ela tem a chave. […]
Os americanos transmitem-nos a angústia do inacabado. Eles não são
completamente generosos, nem completamente egoístas; não são completamente
cordiais, nem completamente hostis. São seres por revelar. […] É tão impossível
gostar da América como não gostar. Isso traduz-se num sentimento abstrato: o da
fascinação.»
A
ambiguidade talvez não seja mais do que um sinal de que, na América, o viajante
europeu, e em concreto o viajante português, é invadido pela projeção do desejo
de ser outro, tal qual o peregrino prestes a embarcar na viagem épica. Na
maioria dos casos, as conquistas da sociedade americana são apresentadas pelos
autores dos textos reunidos neste livro como gloriosas, porque derivam de uma
notória conjugação entre individualismo («o myself,
eu mesmo, eu cidadão americano, de resto nada», de que fala Eça), uma notória
conjugação, dizia, entre o contributo individual e a consciência de missão
coletiva, entre a audácia e o valor pessoal e a organização geral de muitos, o
respeito pelos valores democráticos inexistente no Portugal sob a ditadura.
«Na
América, tem-se culpa de tudo, é-se responsabilizado por tudo», diz António
Ferro. Vários são os autores que referem a importância da
autorresponsabilização, o incentivo à formação da personalidade, a religião de
consciência honesta, que estimula a cooperação, mais do que a competição, entre
profissionais, que permite a ascensão social, que incentiva a camaradagem entre
professores e alunos, «a instrução que não é tortura mas que faz parte do ar
que se respira» (o segredo dos Estados Unidos, segundo António Ferro).
Espanta-os a organização e o método, que resolvem tudo na América. Fidelino de
Figueiredo salienta o «bom humor, saudável e cortês, o triunfo devido a
qualidades reais […], a aristocracia da inteligência e a da riqueza quase se
confund[indo].» Manuel Rodrigues explica que a «chave para a compreensão do
sistema político norte-americano está no facto de este se basear não no
princípio de maioria, mas no consentimento mútuo e no compromisso». Friedrich
Wohlwill destaca também o «sentimento democrático», presente na vida de cada
dia, e também os avanços na ciência médica, aproveitando «os grandes meios financeiros
[do] país, a maior parte dos quais provêm de homens ou de instituições
particulares.» Joaquim Paço d’Arcos apresenta o Presidente Truman como exemplo
acabado do self made man e evidencia
a forma como, nos Estados Unidos, «estão ao alcance da grande massa as melhores
riquezas [do país]; como estas estão preservadas e defendidas para usufruto
colectivo; como é constante o pensamento de fornecer a todos o bem-estar e as
regalias que dantes eram pertença de alguns.» A América, esta América onde
ainda impera o princípio de «equal
opportunity for all» e onde a livre expressão do pensamento é um direito
básico é um retrato inverso do Portugal de então.
Como
esclarece Umberto Eco sobre Marco Polo e as representações da Ásia no século
XII, «o novo olhar analítico do artista e do letrado esmiúça, pouco a pouco,
com a dúvida do seu relativismo, o universo fantástico e maravilhoso feito de
símbolos e de sentidos figurados que caracterizou a cultura cristã medieval» e,
acrescente-se, que determinou durante séculos a visão da Ásia no Ocidente.
Sendo a América o novo mundo desconhecido dos séculos XIX e XX, aplica-se-lhe
também esta perspetiva.
Já
no século XXI, concretamente em 2005, chegado a Newport, Rhode Island, onde
Tocquevile aportou na América, o filósofo francês Bernard Henri-Levy
espantou-se com a profusão de bandeiras americanas. Bandeiras por todo o lado.
Nas janelas, nos pórticos, nos jardins, nas lojas, nas bicicletas, nos barcos, nos
carros, ... Vindo de um país onde não é comum exibir-se a bandeira nacional,
espanta-o esta epidemia americana. E põe-se a pensar. A primeira hipótese que
formula é a de esta obsessão tem que ver com a fragilidade de uma nação que se
estende por 50 estados e é composta por gente vinda de todos os cantos do
mundo. Mas, depois, conclui que a grandeza da América como nação não tem nada a
ver com a evidência do seu corpo enquanto nação, nem com o facto de os seus
habitantes partilharem raízes comuns no mesmo espaço. A grandeza da américa
como nação, corrige ele, tem a ver com uma ideia e com contratos. Tem a ver com
a vontade de ser americano. Porque, diz ele: «Nós não nascemos americanos,
tornámo-nos americanos, o que resulta numa espécie de incerteza, numa espécie
de fragilidade. A compensação para ela é a radical exibição da bandeira.» A
hipótese de Bernard Henri-Levy deriva de uma projeção da sua realidade de
origem e de uma reconversão de símbolos. O mesmo podemos dizer que acontece
como ponto de partida para todas as hipóteses formuladas pelos autores destes
textos (e trata-se sempre de hipóteses, visto serem visões pessoais, grande
parte das vezes após limitado tempo de observação). O que se descobre sobre a
América estando na América transporta, no caso de cada um deles, a mitologia da
Estados Unidos enquanto história próxima e reconhecível, mas, afinal, tão
distante e desconhecida.
Num
país imenso, um povo muitíssimo heterogéneo compõe uma nação de contrastes e
contradições. O gigantismo do seu feito tem o seu contraponto na uniformização
de costumes, urbanística e até de mentalidades, que, aponta Jorge de Sena,
«pode levar o turista a supor que, após milhares de quilómetros, está, por
piada, no mesmo lugar». A uniformização, diz Sena, é o corretivo social da
magnitude da América. É, provavelmente, o que suscita as maiores críticas por
parte dos autores dos textos antologiados. Talvez porque essa uniformização
contraria a imagem dos Estados Unidos enquanto invenção total, de cada homem e
de uma ideia defendida e concretizada por um conjunto de homens por ela unidos.
O sonho da América, como defende Eduardo Lourenço, é um «sonho quase messiânico
de um outro mundo, de qualquer coisa de outro». É ele que guia o confronto ou o
encontro do viajante com o território da América, uma terra povoada por
amazonas e rinocerontes, por centauros e por coelhos, onde, como aqui defende
Guilherme Pereira da Rosa, «há tanta coisa para ver que se perde a conta;
coisas tão diferentes por lá, como o são a noite e o dia, o ruído e o silêncio,
o tudo e o nada»: America, the beautiful,
é impossível conhecê-la - ainda mais agora, no advento da era Trump.
America, the Beautiful, Carla Baptista, Tinta-de-China, 368 págs., 16.90 euros
Jornal «i», 31-10-2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)