Em mais um romance futurista, Don DeLillo especula
sobre a capacidade humana de superação do medo e da morte ou, apenas, de cada
história individual. Quando a catástrofe se tornou uma canção de embalar.
Facto:
chama-se Alcor Life Extension Foundation, é a líder mundial em investigação,
tecnologia e conservação criónica, tem sede no deserto do Arizona e um grupo de
apoiantes em Portugal (www.alcorportugal.com), visa o desenvolvimento da ciência criónica (do
grego kyros, que significa «frio»), isto
é, da tecnologia de preservação de corpos e órgãos humanos post mortem, com recurso a baixas temperaturas e por tempo
indeterminado, até que a ciência possa redespertá-los.
Neste momento, a Alcor tem a seu cargo cerca de centena e meia de corpos conservados
em nitrogénio líquido. Ficção: chama-se Convergência, é um complexo/comunidade
instalado num local ultrassecreto, algures entre o Quirguistão e o Cazaquistão,
com a missão de preservar a vida através da crionização, e está no centro de Zero K, décimo sétimo romance de Don
DeLillo (nasceu em 1936, no Bronx, descendente de imigrantes italianos). «Todos querem ser donos do fim do mundo»,
esclarece Ross Lockhart, multimilionário e financiador do projeto. «Tecnologia
assente na fé. Eis do que se trata. Outro deus. Não muito diferente, no fim de
contas, de alguns dos deuses anteriores. Só que este é palpável, é genuíno,
premeia os fiéis.»
O
narrador de Zero K é Jeff (Jeffrey),
o filho que Ross abandonou com 13 anos e que, agora, aos 34, está de visita à
Convergência, chamado a acompanhar os últimos dias da madrasta, Artis, arqueóloga,
vítima de esclerose múltipla e prestes a ser encapsulada e crionizada.
Circulando por corredores bordejados de portas fechadas, estranhas performances-vídeo
(registando as mais diversas catástrofes naturais ou provocadas pelo homem), palestras,
encontros, episódios e conversas, Jeff é aos poucos tomado pela atmosfera claustrofóbica
que o rodeia (não há janelas), até perceber o peso e alcance daquela tentativa
de superação do tempo e da História. Uma das «mentes fulcrais» do projeto
afirma: «Isto é o futuro, este cariz remoto, esta dimensão subterrânea, oculta.
Sólida, mas também esquiva, de certo modo. Um conjunto de coordenadas
cartografadas do espaço. E um dos nossos objetivos é instaurar uma consciência
que se funda com o ambiente.» A descrição poderia ser também aplicada à escrita
de Don DeLillo, que continua a questionar todo o aparato de assimilação
contemporâneo («usando o quadro todo, a cultura toda») no sentido da integração
ou desintegração do ser humano. Os temas centrais mantêm-se, desde o primeiro
romance, Americana, de 1971: a solidão,
o anonimato, a alienação, a paranoia, a distopia, a procura de catarse, a
intervenção política e artística. Permeando todos eles, o habitual tom
meditativo e sombrio, um desassossego crónico e insidioso e a suspeita
permanente de conspiração. DeLillo é uma «alma profética» (Martin Amis), com
uma profundidade críptica.
A
entrada na unidade especial Zona K, onde Ross voluntariamente se tornará, antes
do tempo, um «eu puro suspenso em gelo», será o culminar de um percurso de vida
criteriosamente pensado e concretizado como um desafio (desde quando inventou
um nome falso ou começou a construir fortuna). «O casulo seria o derradeiro
santuário das prerrogativas do meu pai», afirma Jeff. A habilidade narrativa de
DeLillo contrapõe o balanço da existência de Ross à rememoração e exame de
consciência feitos pelo seu filho nos dias passados na Convergência. O panorama
geral do romance, especulativo e universal, apoia-se na narração muito
particular da história de vida e da relação entre os dois, e de Jeff com a mãe
(a cuja morte assistiu pouco tempo antes da ação do romance), abandonados por
Ross. O diálogo pai-filho é o verdadeiro labirinto de Zona K, trabalhado como uma metáfora para a identidade e a
viabilidade humanas. «A vida contemporânea é tão etérea. Consigo trespassá-la
com um dedo espetado», diz o Monge. Na Convergência, procura-se uma
alternativa, um sistema com novos significados, perceções e possibilidades,
quando, afinal, o caminho da humanidade parece estar cada vez mais próximo de
um fim, irreversível.
Don
DeLillo é o desmancha-prazeres da (pouca) ficção contemporânea interessada em
refletir de fato sobre o novo milénio. A cada livro, o grande pessimista
parece-se dizer-nos de forma mais convicta que nenhum novo realismo, ficção
científica ou pós-pós modernismo superará a lucidez pura a que o artista pode
aceder, ao serviço da humanidade. Ainda que sem o alcance ou a densidade de
outras obras (Ruído Branco, Mao II, Submundo ou O Corpo Enquanto Arte), Zero
K é um clássico DeLillo, conjugação rara de ficção e reflexão, a pedir
digestão lenta e com o impacto de um meteorito.
Zero K, Don DeLillo, (trad.) Paulo Faria, Sextante, 270 págs., 17.70 euros, ****
Jornal «i», 16-12-2016
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