Como
se exprimem e se fazem entender as pessoas com deficiências limitativas da
capacidade de comunicação? As neurociências tentam explicá-las, enquanto se
apuram métodos e ferramentas para lhes dar apoio. As galerias recebem as suas expressões
artísticas. O romance português contemporâneo dá-lhes atenção especial. Fomos
conhecer Rares Iancu e Paulo Amores e encontrámos, a par de um mundo físico e
cognitivo cujas limitações podem ser conhecidas de fora, um teatro privado mais
ou menos enigmático. Onde não entra quem pode, só entra quem já lá está.
A crença de que a nossa perspectiva da
realidade é a única realidade existente é a mais perigosa de todas as ilusões. Paul
Watzlawick
Rares
tem um sorriso tão eficaz como um abraço ou uma extensa declaração escrita de
amor. É um miúdo raro. Paulo tem o olhar em fuga e o apelido de Amores. Desenha
engenhosas autoestradas de signos, com destino infinito. Nos dois casos, o que
sei de teoria e factos que os caracterizem é-me relatado ou descrito por
terceiros. Nem Rares, nem Paulo conseguem verbalizar a sua vida interior. Contudo,
poucas pessoas imprimem a sua presença de forma tão excecional e misteriosa naqueles
que se dispõem a conhecê-las, racional ou intuitivamente.
Ao
encontro de Rares e Paulo e de umas quantas personagens de ficção, esta é uma incursão
num mundo contíguo ao nosso, nos limites da comunicabilidade, da razão e da
autoconsciência. Uma visita, guiada por uma pergunta: Como se exprimem e se
fazem entender, e como são representadas na literatura, as pessoas com
deficiências limitativas da capacidade de comunicação?
Quando
estava dentro da barriga da mãe, Rares erguia uma das mãos e parecia acenar-lhe
através do ecrã ecográfico. «Foi uma criança muito desejada. Sempre soube que
seria um menino e sempre quis que se chamasse Rares.» Porquê Rares? Carmen não
faz ideia, tão pouco conhecia a raiz da palavra romena, descendente do latim rarus (incomum; com muito mérito). Nisto
como em todo o percurso acidentado do filho de seis anos, o instinto e o lado
prático da mãe mostraram-se bem mais importantes do que quaisquer explicações.
Carmen
nasceu a cerca de duzentos quilómetros de Bucareste, em Curtea de Argeș,
a cidade-natal do injustiçado escritor absurdista romeno Urmuz (vale a pena ler
o poema heroico-erótico Fuschiada;
começa com o nascimento de uma criança que opta por sair pelo canal auditivo da
avó, dado que a mãe não possui qualquer ouvido
musical). Carmen imigrou para Portugal com o marido, Ion Iancu, há onze
anos. Rares nasceu em 2008, no Hospital Amadora Sintra, com recurso a ventosas,
após cerca de vinte e quatro horas de trabalho de parto. Desde os três anos de
idade, é seguido no Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (CADin), em
Cascais, devido a um atraso global do desenvolvimento, crê-se que de origem
genética, sem diagnóstico conclusivo, mas com indicação de comprometimento
grave da capacidade de expressão de sons da fala e ao nível da linguagem
compreensiva.
Rares
gosta de dar comida aos seus seis peixinhos logo de manhã, às vezes ajuda a mãe
a cozinhar, faz birra no supermercado se não o levam ao corredor das canetas,
adora livros e segue as histórias com atenção, tem pavor a cães ou gatos (até
os de peluche), prefere vegetais a chocolate, já teve uma namorada na escola e,
quando está zangado, refugia-se nalgum sítio sozinho, mas «só por uns
segundos». Quando lhe convém, finge ignorar uma ordem ou uma repreensão. Tem
tanto de curioso, quanto de teimoso. Quando se concentra numa tarefa, é muito
exigente consigo mesmo. Depois de uns olhares de reconhecimento e de vários
sorrisos sedutores, Rares toca-me no braço. Encosta-se, sorri, em segundos está
refastelado no meu colo, com um dos braços orgulhosamente em torno dos meus
ombros.
Sedento
por fazer passar a sua mensagem, Rares já tinha uma linguagem gestual própria
quando chegou ao CADin. «Foi descobrindo e criando os gestos. Começava por
complicar e depois ia simplificando até que o compreendêssemos.» Mão à frente
da boca; está zangado. Toca no peito; tem fome. Ao fim de três anos de
acompanhamento clínico especializado, consegue dizer cerca de dez palavras.
Através de um programa de comunicação aumentativa e alternativa, continua a enriquecer
aquilo que a mãe chama de «falar à Rares».
Quadrados
com figuras simples e coloridas, colados com velcro a folhas de papel, numa
sequência específica. Ana Rita Gonzalez, terapeuta da fala, mostra o caderno de
comunicação de Rares, criado a partir do programa informático Boardmaker, que
disponibiliza bibliotecas universais de mais de cinco mil Símbolos Pictográficos
para a Comunicação (SPC). Depois de ter apurado a comunicação gestual (através
do método Makaton) e a expressão de palavras de conteúdo, sem elementos de
ligação, Rares está a tentar construir algo semelhante a frases. Não é possível
avaliar a amplitude da sua compreensão verbal (que surpreende a terapeuta), mas
a mãe assegura que a capacidade de expressão emocional e social aumentou
significativamente. «Ele já consegue pôr a cabeça e os pés, só falta o tronco.»
Falta-lhe o mais subtil: a vírgula que prolonga a frase, a pontuação que
determina a narrativa.
No
caso de Rares, a mãe é a principal tradutora, ao mesmo tempo, do universo
infantil e do mundo externo que chega até ele. É impossível prever qual será o grau
de desenvolvimento da capacidade de comunicação ou expressão ou de autonomia de
Rares quando for adulto. Por enquanto, «a sua maior arma é o afecto». Uma arma,
garanto-vos, poderosa. Se soubesse desenhar, dedicava-lhe uma banda desenhada, dava-lhe
o papel do herói e lançava-o à descoberta do conserto do mundo.
Em
2010, no ensaio controverso The Tell-Tale
Brain: A Neuroscientist’s Quest for What Makes Us Human, o neurocientista
indiano Vilayanur S. Ramachandran dedicou um capítulo ao autismo e intitulou-o
«Onde está o Steven?». A pergunta foi-lhe colocada por uma mãe, mas exprime um
lamento partilhado por muitos pais de crianças autistas. «Doutor, eu sei que o
Steven está preso algures lá dentro. Se ao menos o senhor conseguisse encontrar
uma maneira de dizer ao nosso filho o quanto o amamos, talvez o conseguisse
trazer cá para fora.»
Paulo
Amores entra na oficina de artes da APPDA-Lisboa, com os olhos postos no chão.
Move-se com rapidez, senta-se com o corpo enviesado à secretária, em frente da
terapeuta ocupacional. Sem levantar o olhar, repete os cumprimentos, dela e
meu: «Olá. Olá. Olá. Olá.» Isabel põe sobre a mesa um conjunto de sacos
dobrados de papel reciclado e um estojo de canetas de feltro («este é só
dele»). Paulo inclina-se sobre a mesa e deita mãos à obra. Nos dez minutos
seguintes, desenha traços contínuos e descontínuos, signos, letras e números
mais ou menos definidos, mais traços, mais signos, horizontalidades,
verticalidades, riscos sequenciais, com cores alternadas, até cobrirem toda a
superfície do papel. O empenhamento físico na tarefa é evidente e, com uma
cadência particular, acompanha a coordenação de cada composição. Ritmo
contínuo, pausa curta, respiração. Paulo avalia o conjunto e prossegue,
determinado, atento ao detalhe e à posição precisa de cada elemento. Gere e
preenche o espaço disponível. De novo. De novo.
Naquele
mesmo ensaio, Ramachandran sugeriu que a perda de neurónios-espelho está na origem de grande parte dos sintomas e
características das perturbações do desenvolvimento do espectro do autismo
(PEA, agrupadas em três: síndroma de Asperger, Autismo e Transtorno global do
desenvolvimento sem outra designação). Primeiro identificados em macacos, em
1994, por um grupo de neurofisiologistas italianos, os neurónios-espelho são células localizadas no córtex motor e
ativadas tanto quando o sujeito realiza uma ação como quando ele vê um outro
realizar essa mesma ação. Graças a neurónios-espelho
com um funcionamento mais sofisticado do que o dos macacos, o cérebro humano é
capaz de simular uma ação e aprender
por imitação. São eles que nos permitem reconhecer e interpretar, criar um
modelo interno das ações e intenções das outras pessoas, logo, estabelecermos
relações afectivas e sociais.
Para
Ramachandran, uma disfunção ao nível do sistema dos neurónios-espelho implica a perda da empatia com os outros. Aliada
à perda de «reverberação» entre o
cérebro e o resto do corpo, ela implica a perda do Eu apurado que caracteriza
os humanos. O resultado é a redução do sujeito ou, mais radicalmente, o seu
encerramento numa realidade ou espaço não-racionalizados ou racionalizáveis.
Daí que sintamos que aqueles que sofrem perturbações do espectro do autismo
habitam, ainda que em níveis diferentes, um outro
mundo, do qual não conseguem escapar e ao qual não conseguimos aceder.
Paulo
Amores tem quarenta e nove anos de idade e há quarenta e dois que reside e é
acompanhado em permanência na sede da APPDA (Associação Portuguesa para as
Perturbações do Desenvolvimento e do Autismo) em Lisboa. Aparentemente nada o
diferenciou das outras crianças até aos cinco anos de idade, quando lhe foram
diagnosticados distúrbios do espectro do autismo. Situada no Alto da Ajuda, a sede
da APPDA-Lisboa inclui quatro lares-residências, um Centro de Atividades
Ocupacionais, uma Escola de Educação Especial, um Pavilhão Ajudautismo, uma
estufa (para atividades de hortofloricultura) e uma piscina terapêutica
com cobertura. Bem-vindos à casa
do Paulo.
Há
dezassete anos que Isabel Costa trabalha aqui. Na oficina das artes, onde
estamos agora, acompanhou a aprendizagem funcional, a familiarização de Paulo
com utensílios, materiais, limites e estruturas (através da modelagem do
barro), o percurso de desenvolvimento até à criação livre que ele prefere:
bidimensional e com canetas de feltro ou tintas.
«Gostas
de pintar, Paulo? Sim?» «Sim.» «Não gostas de pintar, pois não?» «Não.» A
expressão verbal é marcada pela ecolalia: a repetição automática de palavras ou
sons escutados, como um eco. O olhar é rápido, fugaz quando encontra outro. Paulo
reage, responde, mas não toma a iniciativa do contacto. Agora, tem o olhar
fixado no papel e no deslizar da caneta. Continua a desenhar. Isabel toca-lhe
ao de leve na mão; é uma das poucas pessoas a quem ele permite o toque, das
poucas capazes de descrever a sua personalidade: «O Paulo tem um sentido de
humor extraordinário. Um humor subtil. É um gozão; gosta de rir do que acontece
aos outros. Está sempre alerta, sempre na expectativa do que vai acontecer. Há
sempre uma ansiedade latente. Mas, se ele grita e, em resposta, eu o assusto,
ele ri-se.»
Na
pintura, Paulo não se interessa pela figura humana. Quando pinta com canetas,
gasta a escolhida até se acabar e é raro optar pela cor preta. Quando usa
tintas, mobiliza o corpo todo, ajusta a posição dos pés, debruça-se sobre a
bancada; muitas vezes, o gesto fica marcado na textura dos trabalhos. Quando parece
estar menos bem, usa apenas uma cor ou pinta só de uma maneira. Recentemente,
uma exposição de obras de Paulo Amores inaugurou uma galeria em Cascais, a Raw,
na Cidadela Art District. «Há coisas que ele faz que não se ensinam. Acredito
que ele é um experimentador da expressão», diz Sílvia Perloiro, a professora de
Artes Plásticas que também o acompanha na oficina da APPDA-Lisboa. Ali, ganha
forma a singularidade do universo de Paulo.
«[A vida] é uma história
contada por um idiota, cheia de som e
fúria. E sem sentido», escreveu
Shakespeare (Macbeth, Cena V, Ato V).
Tal como as pessoas na
vida real, na história da literatura as personagens com deficiências (motoras, mentais,
visuais, auditivas, da fala ou orgânicas)
não compõem um quadro homogéneo. Até muito recentemente, a sua presença servia
quase em exclusivo de alerta para a vulnerabilidade e para a imperfeição
da condição humana. Assumia um objetivo funcional, moral ou jocoso e, na
maioria das vezes, este sobrepunha-se à definição da personagem enquanto sujeito, à tradução-revelação do seu
mundo interno.
Veja-se,
por exemplo, Benjamin, o autista do clã Compson, em O Som e a Fúria, e o modo como William Faulkner se lhe referiu (em
entrevista à Paris Review): «A única
emoção que consigo ter por Benjy é de aflição e de pena por toda a humanidade.
Não se consegue sentir nada por Benjy porque ele não sente nada. A única coisa
que consigo sentir por ele, pessoalmente, é uma preocupação em saber até que
ponto ele é credível tal como o criei. Ele é um prólogo, tal como o coveiro nos
dramas isabelinos. Cumpre o seu papel e vai-se embora. Benjy é incapaz do bem e
do mal porque não tem conhecimento do bem e do mal.»
E,
no entanto, Benjy e a expressão literária da sua desordenada corrente da consciência (notavelmente
pontuada por registos sinestésicos) serve e justifica o registo modernista, a
incoerência da gestão do tempo e do espaço no romance, qualificado pelo
escritor norte-americano como o seu «mais esplêndido fracasso». Em termos
alegóricos, Benjy é uma figura crística, o símbolo da redenção perante o
declínio e a morte, ao mesmo tempo o sinal da impotência de Cristo e da Graça
no mundo moderno. Faulkner, que na verdade nunca foi bom a explicar-se, aponta
de forma bastante desumana a sua criação mais humanista.
De
segunda a sexta, Miguel e Luciana passeavam-se numa valsa estranha pelos
corredores da APPACDM (Associação de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente
Mental), onde se tinham apaixonado. «Primeiro o Miguel sempre arrastou os pés
com os braços descaídos e a barriga para a frente. Depois, não se acompanhavam
lado a lado, ela colocava-se atrás dele e usava-o como escudo. Em fila indiana,
ele esticava o braço para trás e agitava os dedos em busca dos dedos agitados
dela. Seguiam caminho e, como um fole, aproximavam-se e afastavam-se ao ritmo
do andamento.» No dia em que Luciana quis fugir da instituição, Miguel
agarrou-a e fê-la voltar. À noite, fechado no quarto, repetia em voz alta a
façanha: «Um heroi, um homem. Nao é bebe.»
Miguel
é o irmão do narrador, sem nome, da primeira obra de ficção de Afonso Reis
Cabral (24 anos), vencedora do Prémio Leya 2014. O Meu Irmão, romance marcante pela humanidade e domínio
estilístico, faz um uso indireto da experiência autobiográfica do autor, que tem,
ele mesmo, um irmão com síndroma de Down (também designado Trissomia do
cromossoma 21). «Foi um desafio dar voz a quem não a tem ou tem-na de uma
maneira muito pouco eficaz. Mas eu não sou, nem quis ser, porta-voz de nada.
Apenas fui absorvido por um tema, um estado de espírito inicial: o do conflito
entre dois irmãos, acentuado pela clara desvantagem de um deles», explica
Afonso.
Quando
morrem os pais, Miguel, 40 anos, fica à guarda do irmão, professor
universitário, divorciado, um ano mais novo e há vinte separado dele. O que se
passa a seguir entre os dois, no Porto ou numa minúscula aldeia de xisto, perto
do rio Paiva e com apenas mais três habitantes (um casal e o filho), é contado na
primeira pessoa do singular. Miguel não tem capacidade de expressão, por isso o
irmão-narrador assume-se como voz e intérprete: «Muitas vezes omite-lhe a
expressão, noutras impõe-lhe uma linguagem [há um nós que preenche a ausência de diálogo entre os dois irmãos].
Trata-se de um mau intérprete, com falhas de carácter, alguém com dificuldades
em aceitar-se e que, por isso, se vê em combate permanente com o outro e o usa como ferramenta das suas próprias
frustrações.»
Em O Meu Irmão, a inveja é um motor
dramático, explorado por oposição à entrega constante e ao amor incondicional
gerado ou oferecido por Miguel aos outros. Num romance português anterior, Autismo (2012, Abysmo), de Valério
Romão, o tratamento pouco convencional do tema da deficiência surgira mais cru
e sombrio, focado no conflito entre a abnegação completa de uma mãe em função
do filho autista e os sentimentos de rejeição e ciúme do pai em relação a ele.
Ali, o sujeito deficiente surge apenas como personagem secundária, sem voz.
No
caso de Miguel, o «mongolóide» de O Meu
Irmão, Afonso Reis Cabral procurou deixar a personagem em aberto, não
exercer sobre ela qualquer tipo de autoridade. Como? «Foi um bocado sair da
frente e não lhe pôr muitos obstáculos.» O silêncio de Miguel era uma
dificuldade implícita, mas também não havia garantias de que a transposição das
suas dificuldades de fala funcionasse, sem parecer forçada. «Optei por partir o
português o mais possível, incluir gralhas, adaptar a pontuação. Era isso ou
deixá-lo calado.»
Na
sua linguagem afectiva pura, Miguel representa
o «amor em carne, amor em força bruta». É como «um anjo na terra», Caim que
sucumbe a Abel, empenhado em destruir a inocência, a bondade natural, a
«condição de felicidade» do irmão. O lirismo da história de amor entre ele e
Luciana, com um tom ultrarromântico, quase camiliano, funciona, segundo o autor,
«porque eles são personagens inocentes, que nem sequer entendem o próprio
conceito de pureza». O final do romance é inconclusivo, mas Miguel, ainda que
vulnerável, revela-se um «heroi»,
cuja linguagem moral transcende todas as outras.
Uma
rapariga. Catorze anos. Olhos: pretos. Cabelo: castanho. «Estou à procura do
meu pai.», diz. A rapariga traz consigo uma pequena caixa e, lá dentro, muitas
fichas, cada uma com um tópico, seguido de um conjunto de passos, atividades ou
questões. Por exemplo: explorar objetos; indicar a parte do corpo que dói; ir à
casa de banho por iniciativa própria; andar pelos passeios; dar gritos,
vocalizações diferenciadas para desconfortos específicos, sorrir ou vocalizar
em resposta à presença de uma pessoa ou situação agradável;... Trata-se de um
catálogo-guia para a Aprendizagem das Pessoas com Deficiência Mental.
Marius
encontra a rapariga perdida na rua. Chama-se Hannah. Este é o nome que está
escrito, mas ela não o reconhece e, por isso, Marius retira-lhe o H final. Em
fuga não se sabe de quê, o homem decide ajudar a rapariga a procurar um pai que
está algures, não se sabe onde. Hanna, com síndroma de Down, protagoniza Uma Menina Está Perdida no Seu Século à
Procura do Pai, o romance mais recente de Gonçalo M. Tavares. Mais uma das
suas investigações ficcionais sobre a História, o Mal, as categorias racionais
e os seus limites irracionais, o corpo restringido pelo espaço e pela
velocidade, a sombra e a luz.
Há
vários anos que o escritor português está ligado a uma cadeira de reabilitação
psicomotora e participa em ateliers com a lisboeta Crinabel (Cooperativa
de Educação de Crianças Inadaptadas de Sta. Isabel) e com a companhia de dança
madeirense Dançando com a Diferença. Esta experiência de contacto determinou e
modelou a criação de Hanna e, com certeza, alargou a reflexão sobre linguagem,
corpo e pensamento.
«No início do contacto, temos tendência a
adaptar completamente o discurso. Ao fim de algum tempo, e até para criar
à-vontade e evitar uma forma de tratamento paternalista, passamos a falar
normalmente. Quando se controla muito a linguagem, a relação pessoal fica muito
limitada.» Para Gonçalo M. Tavares, a presença afectiva é uma das
características mais marcantes dos portadores de trissomia 21 (saliente-se:
possuem personalidades muito distintas entre si). Existe um alheamento ao nível
da linguagem, mas não ao nível físico e corporal. Esta outra maneira de estar, com simplicidade desarmante, condiciona e
determina todos aqueles que contactam com ela.
Marius
e Hanna passeiam por uma rua de Berlim. Primeiro contam coisas iguais; depois,
contam as pessoas que passam por eles a sorrir. Marius constata: «De uma forma
objectiva, eram muito mais as pessoas que sorriam quando mais próximas de nós.
Poderia pensar que se tratava de um puro acaso e que o facto simples era que as
pessoas que estavam a maior distância estariam mais neutras ou infelizes, mas o
que se passava realmente era que Hanna como que fazia batota, induzindo, sem
consciência, o aparecimento de expressões simpáticas.»
Ao
longo de Uma Menina Está Perdida no Seu
Século à Procura do Pai, Hanna é quase sempre o centro corporal. A força
desta presença física chega ao ponto de alterar o comportamento das pessoas.
Por outro lado, como quase não intervém, ela é uma observadora. Estando de fora
de todas as linguagens, apresenta-se como um mistério. Gonçalo M. Tavares
clarifica: «Há qualquer coisa que ela não consegue explicar, um segredo, uma
coisa quase perversa. Marius tem uma carga agressiva que, estranhamente, fica
mansa ao lado de Hanna. No início, ele é um homem acossado, perseguido não sabe
por quê. De repente, desacelera a sua velocidade e vai com Hanna procurar
alguma coisa. Muita da sua violência fica neutralizada. Hanna provoca um
intervalo na vida de Marius, mas, no final, ele sente vontade de voltar à sua
individualidade, à sua dor.»
«Quando
se consegue entrar no olhar de um autista, ele fixa-nos e nós entendemos que lá
dentro está a pessoa», diz Sílvia Perloiro. Acontece que, para se conseguir
trazer a pessoa autista, por exemplo, até uma qualquer forma de expressão
criativa, é preciso tempo e recursos habitualmente indisponíveis. Reconhecer e incentivar
este tipo de capacidade de expressão implica um investimento e uma dedicação
semelhantes aos que a mãe põe ao serviço do bebé, até conseguir identificar os
mil cambiantes do seu choro.
Grande
parte do respeito pela diferença das expressões artísticas das pessoas com
deficiência passa por dar espaço a outras
formas de sensibilidade. Jean Dubuffet definiu as obras de arte bruta como
criações marginais, expressões de uma «operação artística completamente pura,
bruta, cujas frases são totalmente reinventadas pelo autor, a partir somente
das suas próprias pulsações». Pensem nisto: uma visita à Collection de l’Art
Brut (mais de sessenta mil obras de mil autores), instalada no Chatêau de
Beaulieu, em Lausanne, vale tanto como uma ida ao Prado ou ao Louvre. E vão lá.
Edgar
Gonçalves Pereira, psicólogo clínico, primeiro doutorado português em autismo
na área da psicologia, é diretor pedagógico da APPDA-Lisboa. Enquanto
conversamos sobre Paulo Amores e as características atípicas do seu autismo (manifestas
ao nível do desenho), conduz-me por um périplo teórico, ilustrado com imagens e
quadros explicativos exibidos no ecrã de um computador. Percebe-se a cautela. Metemos
muitos coelhos e muito diferentes no mesmo saco, se generalizamos sobre as pessoas
com deficiências limitativas da capacidade de comunicação. Reformule-se, pois,
a pergunta: como pode a arte funcionar como câmara escura de um mundo que é
diferente do nosso devido aos condicionalismos de uma deficiência?
«Muito
do que é valorizado em arte é o valor que esta tem de transmitir um simbolismo
qualquer, adquirido em milhões de anos de experiência adaptativa.» A
necessidade de preservação da espécie e o decorrente desenvolvimento de
sistemas de alarme fez evoluir as nossas capacidades de tratamento e
transmissão de informação. Assim, evoluímos na constituição de módulos cerebrais
especializados em agrupamento, contraste ou isolamento, na resolução de
invisibilidades, na discriminação de coincidências, na identificação de
regularidades ou simetrias. «A transmissão pela metáfora intra-espécie permitiu
que o homem evoluísse de um fechamento em si próprio para a abertura de uma
ligação ao exterior.» Primeiro usados com funções adaptativas, aqueles recursos
e operações passaram a servir também a criação de arte: a expressão artística a
partir do símbolo e da metáfora.
Eis
o que mais importa. As pessoas com autismo típico não chegam ao nível da
metáfora. «Se tivéssemos de pensar à la
Ramachandran, a expressão mais pura de uma pessoa com autismo típico seria a de
alguém que apenas desenha o que vê [algo muito figurativo]. Pensaríamos na linha
da surpresa que a relação dessa pessoa com a realidade nos traz a nós, ditos
normais.»
Paulo
Amores guardou referências do período anterior ao diagnóstico de perturbações
do espectro do autismo. Filho de um engenheiro matemático, com certeza que o
viu muitas vezes a escrever, a fazer contas ou a desenhar. O cérebro de Paulo, que
então foi impregnado por séries de símbolos gráficos, fá-los renascer agora, quando
se lhe deparam canetas e papel. Os seus trabalhos serão sobretudo paisagens de lembranças
desse tempo, uma «fixação da qual não é possível sair com facilidade». Quando
ele as exprime, é porque as associa a uma emocionalidade, a um certo conforto
afectivo. É neste sentido que o seu universo
expressivo é absolutamente incomum e excepcional: em suma, raro.
Então,
como definir o mundo interno das pessoas com perturbações do espectro do
autismo? Edgar Gonçalves Pereira explica: «Não existe nenhum organismo
multicelular vivo, sem ser planta, que não tenha mundo interno. A partir da
lagosta para cima, em formas mais mamíferas, é possível haver certas
representações da externalidade na internalidade dos processos biológicos,
embora não tão complexas como as que o cérebro humano faz.» Nos humanos, a
capacidade de percepção do exterior evoluiu para a capacidade de percepção do
interior, ou seja, para que conseguíssemos pensarmo-nos a nós próprios, em
termos linguísticos ou imagéticos. Acrescentemos as funções dos neurónios-espelho e estamos perante um
ser que se pensa, pensa os outros, mimetiza e cria empatia. É precisamente no
acesso à capacidade perceptiva (logo, à possibilidade de completar este
percurso de capacidades adaptativas e capacidades perceptivas para o outro e
para si próprio) que o autismo se traduz em graves problemas funcionais
internos. Logo, o mundo interno das pessoas com perturbações do espectro do
autismo «provavelmente não será igual ao nosso».
Faço
Sílvia Perloiro repetir: «Quando se consegue entrar no olhar de um autista, ele
fixa-nos e nós entendemos que lá dentro está a pessoa». Porque não é possível
não comunicar, cabe-nos a nós procurar o outro.
E perguntar: Quem está aí?
LER Março 2015
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)