Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quinta-feira, setembro 25, 2014

Isto não é televisão. É literatura!


Com legiões de fãs, as séries televisivas de autor tornaram-se uma fonte de inovação da cultura popular. O segredo do sucesso está na extrema qualidade, criatividade e irreverência dos guiõesoes﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ de argumentostadores inteligentes. ilions essenciais: liberdade e tempo.ões, que desafiam todas as convenções sociais e narrativas. Está aberta uma nova era no entretenimento.

Entrevistado pelo escritor Nick Hornby em 2007, o repórter policial David Simon, criador, argumentista e produtor da série The Wire, clarificou: «A regra que sigo para tentar ser verosímil é simples e descobri-a mal comecei a escrever prosa narrativa [para televisão]: que se foda o leitor médio.»
Do tele-lixo à tele-literatura, vai o caminho desta redefinição drástica do público-alvo. Em 1990, David Lynch deu o mote, com a tele-série surrealista Twin Peaks, mas ficou-se por uma temporada, devido ao desinvestimento do canal ABC. No final dessa década, o canal por assinatura Home Box Ofice separou em definitivo as águas, com um grito de guerra: It’s not TV, It’s HBO!
Desde então, as séries dramáticas elevaram a televisão norte-americana do posto mais baixo no ranking da cultura, o do prime-time generalista, até ao mais alto píncaro da intelectualidade. Evoluíram das tramoias primárias de J.R. Ewing (Dallas) e do virtuosismo do canivete suíço de Angus McGyver até à associação da personagem Walter White (protagonista de Breaking Bad) ao Capitão Ahab, de Moby Dick, ou à filiação de Donas de Casa Desesperadas no universo de tédio, sensualidade e traição de Madame Bovary. No El País, o escritor e argumentista argentino Marcelo Figueras elucidou-nos quanto a esta progressão: «Sou daqueles que, obrigados a exilarem-se numa ilha, levariam consigo todo o Shakespeare, o Citizen Kane, e, agora, algo mais: todas as temporadas de Prime Suspect  e The Wire
Dirigidas a nichos diminutos e muito específicos, mas fiéis, de espetadores, as tele-séries de autor vão na terceira década de desenvolvimento técnico e progressivo sucesso. A chamada tele-literatura nasceu nos EUA, mas expandiu-se entre os espetadores mais instruídos e literatos, como um fenómeno de culto mundial (Segurança Nacional e In Treatment, por exemplo, têm autoria original israelita).
Atualmente, a serialização dramática define a idade de ouro dos canais por cabo e revoluciona a criação narrativa. Reconstrói géneros, remodela ícones, enobrece o rigor dos diálogos e experimenta novas noções de progressividade da personagem e do enredo. Apropria-se da grande estética do cinema: a filmagens quase exclusivas em reduzidos cenários interiores faz suceder o uso de exteriores e de planos panorâmicos, trabalhados como material dramático. A figuras de papelão e estereótipos, contrapõe anti-heróis e novos arquétipos. Mad Men, a série preferida do presidente Barack Obama, é um exemplo excelente desta inovadora combinação de artificialismo e tridimensionalidade.
O sucesso assenta em três pilares: liberdade, exigência e tempo. Enquanto os modelos de negócio das editoras, da televisão generalista e das grandes produtoras e distribuidoras de cinema e de música prosseguiam o garimpo do máximo lucro através de fórmulas estafadas e do empobrecimento cultural massivo, uma pequena, mas muito expressiva, percentagem dos seus públicos aplaudia a militância dos canais por cabo na excelência de conteúdos. Enquanto Hollywood se esvaía em orçamentos milionários e em milionárias máquinas de avaliação e promoção dos produtos, os produtores e criadores independentes descobriam o potencial dos espetadores inteligentes.
Os guionistas foram os principais beneficiários deste inesperado impulso à criatividade. Hoje, todas as circunstâncias lhes são favoráveis. O trabalho em equipa, os prazos muito apertados e os orçamentos limitados permitem-lhes, afinal, escapar a qualquer tipo de censura (a HBO exibe sexo, nudez e violência desde que foi criada, em 1975). Argumentos cada vez mais elaborados e com a máxima qualidade intelectual e estética cimentam o seu estatuto de autores (e produtores) arrojados e suscitam aclamação cada vez mais entusiasta por parte de uma elite de consumidores.
De repente, o fenómeno das séries incentivou quem ainda se interessa por contar histórias com espessura e profundidade. O contributo de Richard Price ou George Pelecanos, ambos autores consagrados de policiais, foi decisivo para o sucesso de The Wire. Salman Rushdie está a escrever uma série de ficção científica «paranoide», intitulada The Next People e destinada a um canal por cabo. Martin Scorcese venceu um Emmy com o episódio-piloto de Boardwalk Empire e trabalha agora na adaptação de Gangues de Nova Iorque. Os irmãos Coen investem na versão seriada de Fargo. Em Julho, estreia nos EUA a primeira temporada de Extant, produzida por Steven Spielberg, com Halle Berry no papel de uma astronauta que regressa à Terra após uma longa missão.
O investimento nas tele-séries pode revolucionar a carreira de um ator, como aconteceu com James Gandolfini (1961-2013, o Tony de Os Sopranos). A indústria americana de entretenimento verga-se a esta evidência e integra-as nas categorias mais importantes dos Golden Globe Awards ou dos Emmy. A televisão redefine-se como uma forma de arte, a custo e preço acessíveis e em íntima relação com o consumidor. A liberdade oferecida pelos aparelhos DVD e DVR baratos e pela possibilidade de gravação automática de programas reforça ainda mais a opção de um certo público pela máxima comodidade e privacidade do sofá da sala.
O acolhimento tão apaixonado de uma nova linguagem televisiva tem outro motivo: pura exaustão. Os dez milhões de espetadores que assistiram ao último episódio de Breaking Bad, em Outubro de 2013, estão com certeza fartos de notícias em tempo real, de celebridades em talk shows, de concursos ou reality shows a exibir as-pessoas-tal-como-elas-são-no-seu-pior ou como-poderiam-ser-se-o-mundo-fosse-mais-justo. Estão fartos de ser infantilizados, que é com quem diz: enganados.
As tele-narrativas de autor mostram de novo o mundo como um território onde a ficção é possível. Essa é a sua maior prova de respeito pelas faculdades do público. Porquê? Porque os novos argumentos não pretendem imitar a realidade. Desafiam todos os preceitos aristotélicos e, quando muito, expõem-na a partir das caraterísticas e das ambições de cada personagem.
As coisas são como são porque o sujeito as vive e as vê assim. O desenvolvimento do enredo é character-driven: progride a partir das necessidades internas e da perspetiva da personagem, determinantes para o tratamento de todas as peças da narrativa. Agora, a realidade segue o sujeito, e não o contrário. O centro é a personagem (somos nós, que nos identificamos com ela) e não a ação. Assistimos a uma espécie de reality slow.
Em contrapartida, a tele-série pode ser muito rápida a apresentar-nos o protagonista, e a forçar-nos a acompanhá-lo e a simpatizar com ele. O truque é humanizá-lo. Trabalhá-lo como passe emocional para a história. Exibir-lhe os defeitos, sem filtros, luvas de pelica ou convenções sociais. Torná-lo personagem trágica, ignorante da sua imagem exterior, totalmente cega pelas obsessões. No palco, brilham os narcísicos, os extravagantes, os excluídos, os deficientes, os génios, os criminosos, todos os carateres diferentes e reprováveis. E nós adoramo-los.
Desde X-Files que nos familiarizámos com o sobrenatural e o grotesco. Desde Seinfeld que nos habituámos à trivialidade urbano-neurótica do non-sense. A Dra. Temperance Brennan (Bones) ou Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) deram-nos a conhecer a realidade do síndrome de Asperger. O Dr. House tornou-nos peritos em diagnósticos selvagens. E Carrie Bradshaw (O Sexo e a Cidade), a primeira anti-heroína televisiva, ensinou-nos a comprar (ou a invejar) sapatos.
Veneramos o mafioso Tony Soprano, o psicopata Dexter Morgan, os niilistas rudes Beavis and Butt-head, o indigente Homer Simpson, o polígamo Will Sheffer (Big Love), a disfuncional enfermeira Jackie ou o inconvenientíssimo Larry David (Curb Your Enthusiasm). Rimos com eles, sofremos com eles, tropeçamos com eles, festejamos com eles, identificamo-nos com eles. E o arco de progressão do mundo vai-se redesenhando, à volta deles.
O ator Rainn Wilson interpreta Dwight Schrute, em The Office, e define-o como «um nerd fascista». Diz: «Esta é a época dos cromos, dos Inadaptados. […] Eles são, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum de nós». Walter White é a aquisição mais recente e valiosa na caderneta. Professor de Química, um zé-ninguém que não inspira qualquer respeito à sua volta, Walt descobre que tem cancro e torna-se um virtuoso fabricante de MA-metanfetamina «99 por cento pura»; um marginal implacável. Seguem-se quase seis anos de produção (de 2008 a 2013), cinco temporadas e 62 episódios. Em 2013, a série entrou no Guiness World Records  como a melhor recebida de sempre, com um score de 99 em 100 pontos, registado no site Metacritic para a quinta temporada. Breaking Bad  fica para a história do audiovisual como um western contemporâneo e uma verdadeira odisseia dramática.
Na prática, os enredos televisivos serializados viciam os espetadores porque os argumentistas abandonaram as aventuras episódicas a favor dos grandes arcos narrativos. E fizeram-no sem dispensar a flexibilidade da substância narrada. Nas telenovelas, por exemplo, a trama desenvolve-se por multiplicação de aventuras e estruturas episódicas, enredos e subenredos, alguns abertos e logo fechados num único dia ou semana de emissão, outros dilatando-se eternamente. Por ser tão ramificado o percurso e existirem tantas estações e apeadeiros, é fácil apanharmos o comboio da ação em andamento.
Nas séries de autor, a narração por encadeamento impede-nos de entrar a meio da história (experimentem ver, ou perder, um só episódio de A Guerra dos Tronos, e perceberão do que falo). Esta inevitabilidade de fidelização impele-nos para o consumo compulsivo de episódios gravados ou em formato DVD.
O controlo dos novos argumentistas-criadores-produtores sobre a extensão e o destino da narrativa assemelha-se ao dos autores de quartos isabelinos (Shakespeare publicou neste formato de folha dobrada em várias páginas impressas) ou de romances realistas e folhetinescos do século XIX (Dickens paira por aqui, já o veremos). Todas as personagens, do protagonista ao figurante ocasional, possuem pleno molde humano. Para perceber tudo, temos que acompanhar tudo: todas as piadas, sugestões, figuras e ideias recorrentes, todas as camadas de sentidos. Não podemos falhar a colocação de nenhum tijolo no arco do enredo. Também por isso, aproximamo-nos mais do que vemos.
«O final de Dexter deu-me vontade de cortar o meu corpo em pedaços, embrulhá-los em sacos do lixo pretos & atirá-los ao mar», lê-se num dos muitos comentários negativos twittados na noite do último episódio. Os fãs das novas séries de autor são assim: odeiam lugares-comuns, moralismos e pieguices e têm olho clínico para incongruências e erros de raccord. Os últimos minutos de Os Sopranos em black out total do ecrã amadureceram-nos. Fizeram-nos abominar soluções fáceis, como a gradual concessão de O Sexo e a Cidade ao género cor-de-rosa ou o fogo de artifício cowboiesco e sentimentalóide do final de Breaking Bad. Hoje, os fãs enraivecem-se em público, como se cada série fosse sua exclusiva propriedade privada.
No ano passado, perante o atraso no lançamento nos EUA da série dinamarquesa Borgen (centrada no desempenho de uma primeira-ministra independente), o New York Times publicou um comentário crítico, obviamente destinado àqueles que já a haviam pirateado. O interesse não era alheio à atualidade da mensagem principal da série:  «Como chegar ao poder e manter-se fiel a si próprio?»
A nova televisão modela opiniões e comportamentos e é cada vez mais subversiva. A maioria das séries televisivas alimentam-se de todas as declinações cómicas, dramáticas e sociais da América moderna. As melhores, afirmam-se pelo potencial de desconstrução.
No documentário America in Prime Time (2011), Vince Gilligan, criador de Breaking Bad, apresenta Walt como «génio borderline». Versão atualizada de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, a personagem compõe, com o ajudante Jesse Pinkman, «o par absurdo do século». Uma das leituras possíveis do arco da personagem é a de que a sublime competência de Walt como cozinheiro equilibra na balança a brutalidade dos seus atos. Em subtexto, condena-se a penalização e a falta de controlo estatais sobre o comércio das drogas ou, segundo alguns, defende-se a supremacia branca.
David Simon, por seu turno, quis fazer de The Wire um vasto comentário social à distopia de uma cidade. Para tal, recorreu à rejeição de um único protagonista e à fragmentação da cidade, peça a peça, figura por figura, em instantâneos quase neo-realistas. Por fim, eis Baltimore e a denúncia da pobreza, da marginalização, dos esquemas dos gangues e dos traficantes de droga como nunca ninguém os tinha visto.
Nove anos após a despedida de Seinfeld (onde chegou ao limite de testar uma referência explícita a masturbação), o humorista Larry David apostou numa  refinadíssima paródia aos reality shows. Em Curb Your Enthusiasm, decidiu interpretar o papel de um alter ego colado a si mesmo e ao seu quotidiano e concedeu-se todas as liberdades de um puto malcriado e egocêntrico. «A série permitiu-me não ser adulto […] e usar o humor confessional de um ser humano terrível», afirma, num dos extras dos DVD da série.
Quando lhe perguntam se é judeu, o protagonista dispara: «Queres que te mostre o meu prepúcio?» É capaz de dizer as coisas mais ignóbeis na cara dos outros e dos gestos de egoísmo mais absurdamente divertidos. Quanto mais o insultam, mais ele se ri. Quanto mais ele insulta, mais os outros se sentem confortáveis para trocar a surpresa pela raiva.
A genialidade de Curb nasce de um compromisso radical com a improvisação. Cada episódio de meia hora parte de um guião só com sete páginas. Entre um ponto de arranque e um ponto de chegada definidos pelo argumentista, o espaço abre-se todo ao improviso pelos atores e à comédia de personalidade e circunstância. Larry é o soberano absoluto deste reino da personagem e da demolição das expectativas e dos constrangimentos convencionais. Se fosse vivo, Charles Dickens não desdenharia tê-lo incluído no clube Pickwick.
«Shake me up, Judy! Oh, mi bônes and sockets!» O agiota Mr. Smallweed contorce-se na sua cadeira portátil, enquanto aguarda que a neta lhe aplique uma variante da manobra de Heimlich e, por ajuste quiroprático, o alivie da pressão osteo-lombar. O som de estalar de ossos não interrompe o discurso da infame criatura. O recurso expressivo é perfeito para ilustrar o virtuosismo das criações humanas de Dickens, mas a sua autoria cabe inteiramente a Andrew Davies, o argumentista da série Bleak House, lançada pela BBC em 2005.
«Um livro não é propriedade exclusiva do seu autor. Em tempos diferentes, ocorrem interações diferentes com os leitores.» Foi com este espírito confiante e libertário que Davies adaptou para televisão e cinema clássicos como Moll Flanders, Middlemarch, Orgulho e Preconceito, Vanity Fair ou Doutor Jivago. Quando se decidiu a abordar A Pequena Dorrit, guilhotinou o livro em duas partes, para tornar a sua leitura menos enfadonha. Depois, não hesitou em trocar páginas e páginas por uma única imagem sugestiva. Para conquistar um novo espaço convém, de facto, abrir-se antes um espaço vazio ou alargar-se os espaços pré-existentes. A literatura e a tele-literatura convivem hoje sem conflito, porque se juntam para namorar, mas dormem separadas.
Anuncia-se para breve o início da adaptação programática das obras de William Faulkner, o autor canónico que foi argumentista em Hollywood. As séries dramáticas serão assinadas por David Milch e produzidas pela HBO. Milch escreveu e produziu as três temporadas do western  barroco Deadwood, brilhante e ignoradíssimo.
A simultânea dureza e compaixão com que as novas tele-séries tratam as personagens não anda longe dos caminhos de Faulkner. Nas mãos de David Milch, Yoknapatawpha vai deixar de ser um condado fictício, para tristeza de alguns literatos e name-dropistas. Mas irá tornar-se uma paisagem tão escrita quanto real, como só a nova televisão as tem conseguido criar. Shake our bones!

LER / Março 2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)