Com legiões de fãs, as séries televisivas de autor tornaram-se uma fonte de inovação da cultura popular. O segredo do sucesso está na extrema qualidade, criatividade e irreverência dos guiões , que desafiam todas as convenções sociais e narrativas. Está aberta uma nova era no entretenimento.
Entrevistado pelo escritor Nick Hornby em 2007, o
repórter policial David Simon, criador, argumentista e produtor da série The Wire, clarificou: «A regra que sigo
para tentar ser verosímil é simples e descobri-a mal comecei a escrever prosa
narrativa [para televisão]: que se foda o leitor médio.»
Do tele-lixo
à tele-literatura, vai o caminho
desta redefinição drástica do público-alvo. Em 1990, David Lynch deu o mote,
com a tele-série surrealista Twin Peaks,
mas ficou-se por uma temporada, devido ao desinvestimento do canal ABC. No
final dessa década, o canal por assinatura Home Box Ofice separou em definitivo
as águas, com um grito de guerra: It’s
not TV, It’s HBO!
Desde então, as séries dramáticas elevaram a
televisão norte-americana do posto mais baixo no ranking da cultura, o do prime-time
generalista, até ao mais alto píncaro da intelectualidade. Evoluíram das
tramoias primárias de J.R. Ewing (Dallas)
e do virtuosismo do canivete suíço de Angus McGyver até à associação da
personagem Walter White (protagonista de Breaking
Bad) ao Capitão Ahab, de Moby Dick,
ou à filiação de Donas de Casa
Desesperadas no universo de tédio, sensualidade e traição de Madame Bovary.
No El País, o escritor e argumentista
argentino Marcelo Figueras elucidou-nos quanto a esta progressão: «Sou daqueles
que, obrigados a exilarem-se numa ilha, levariam consigo todo o Shakespeare, o Citizen Kane, e, agora, algo mais: todas
as temporadas de Prime Suspect e The
Wire.»
Dirigidas a nichos diminutos e muito específicos,
mas fiéis, de espetadores, as tele-séries de autor vão na terceira década de
desenvolvimento técnico e progressivo sucesso. A chamada tele-literatura nasceu nos EUA, mas expandiu-se entre os
espetadores mais instruídos e literatos, como um fenómeno de culto mundial (Segurança Nacional e In Treatment, por exemplo, têm autoria
original israelita).
Atualmente, a
serialização dramática define a idade de ouro dos canais por cabo e revoluciona
a criação narrativa. Reconstrói géneros, remodela ícones, enobrece o rigor dos
diálogos e experimenta novas noções de progressividade da personagem e do
enredo. Apropria-se da grande estética do cinema: a filmagens quase exclusivas em
reduzidos cenários interiores faz suceder o uso de exteriores e de planos
panorâmicos, trabalhados como material dramático. A figuras de papelão e
estereótipos, contrapõe anti-heróis e novos arquétipos. Mad Men, a série preferida do presidente Barack Obama, é um exemplo
excelente desta inovadora combinação de artificialismo e tridimensionalidade.
O sucesso assenta em três pilares: liberdade,
exigência e tempo. Enquanto os modelos de negócio das editoras, da televisão
generalista e das grandes produtoras e distribuidoras de cinema e de música prosseguiam
o garimpo do máximo lucro através de fórmulas estafadas e do empobrecimento
cultural massivo, uma pequena, mas muito expressiva, percentagem dos seus
públicos aplaudia a militância dos canais por cabo na excelência de conteúdos. Enquanto
Hollywood se esvaía em orçamentos milionários e em milionárias máquinas de avaliação
e promoção dos produtos, os produtores e criadores independentes descobriam o
potencial dos espetadores inteligentes.
Os guionistas foram os principais beneficiários deste
inesperado impulso à criatividade. Hoje, todas as circunstâncias lhes são favoráveis.
O trabalho em equipa, os prazos muito apertados e os orçamentos limitados
permitem-lhes, afinal, escapar a qualquer tipo de censura (a HBO exibe sexo,
nudez e violência desde que foi criada, em 1975). Argumentos cada vez mais
elaborados e com a máxima qualidade intelectual e estética cimentam o seu estatuto
de autores (e produtores) arrojados e suscitam aclamação cada vez mais entusiasta
por parte de uma elite de consumidores.
De repente, o fenómeno das séries incentivou quem
ainda se interessa por contar histórias com espessura e profundidade. O
contributo de Richard Price ou George Pelecanos, ambos autores consagrados de
policiais, foi decisivo para o sucesso de The
Wire. Salman Rushdie está a escrever uma série de ficção científica
«paranoide», intitulada The Next People
e destinada a um canal por cabo. Martin Scorcese venceu um Emmy com o episódio-piloto
de Boardwalk Empire e trabalha agora
na adaptação de Gangues de Nova Iorque.
Os irmãos Coen investem na versão seriada de Fargo. Em Julho, estreia nos EUA a primeira temporada de Extant, produzida por Steven Spielberg,
com Halle Berry no papel de uma astronauta que regressa à Terra após uma longa
missão.
O investimento nas tele-séries pode revolucionar a
carreira de um ator, como aconteceu com James Gandolfini (1961-2013, o Tony de Os Sopranos). A indústria americana de
entretenimento verga-se a esta evidência e integra-as nas categorias mais
importantes dos Golden Globe Awards ou dos Emmy. A televisão redefine-se como
uma forma de arte, a custo e preço acessíveis e em íntima relação com o
consumidor. A liberdade oferecida pelos aparelhos DVD e DVR baratos e pela
possibilidade de gravação automática de programas reforça ainda mais a opção de
um certo público pela máxima comodidade e privacidade do sofá da sala.
O acolhimento tão apaixonado de uma nova linguagem
televisiva tem outro motivo: pura exaustão. Os dez milhões de espetadores que
assistiram ao último episódio de Breaking
Bad, em Outubro de 2013, estão com certeza fartos de notícias em tempo
real, de celebridades em talk shows,
de concursos ou reality shows a exibir
as-pessoas-tal-como-elas-são-no-seu-pior ou
como-poderiam-ser-se-o-mundo-fosse-mais-justo. Estão fartos de ser infantilizados,
que é com quem diz: enganados.
As tele-narrativas de autor mostram de novo o
mundo como um território onde a ficção é possível. Essa é a sua maior prova de
respeito pelas faculdades do público. Porquê? Porque os novos argumentos não pretendem
imitar a realidade. Desafiam todos os preceitos aristotélicos e, quando muito, expõem-na
a partir das caraterísticas e das ambições de cada personagem.
As coisas são como são porque o sujeito as vive e
as vê assim. O desenvolvimento do enredo é character-driven:
progride a partir das necessidades internas e da perspetiva da personagem,
determinantes para o tratamento de todas as peças da narrativa. Agora, a
realidade segue o sujeito, e não o contrário. O centro é a personagem (somos
nós, que nos identificamos com ela) e não a ação. Assistimos a uma espécie de reality slow.
Em contrapartida, a tele-série pode ser muito rápida
a apresentar-nos o protagonista, e a forçar-nos a acompanhá-lo e a simpatizar
com ele. O truque é humanizá-lo. Trabalhá-lo como passe emocional para a
história. Exibir-lhe os defeitos, sem filtros, luvas de pelica ou convenções
sociais. Torná-lo personagem trágica, ignorante da sua imagem exterior, totalmente
cega pelas obsessões. No palco, brilham os narcísicos, os extravagantes, os excluídos,
os deficientes, os génios, os criminosos, todos os carateres diferentes e reprováveis. E nós adoramo-los.
Desde X-Files
que nos familiarizámos com o sobrenatural e o grotesco. Desde Seinfeld que nos habituámos à
trivialidade urbano-neurótica do non-sense.
A Dra. Temperance Brennan (Bones) ou
Sheldon Cooper (The Big Bang Theory)
deram-nos a conhecer a realidade do síndrome de Asperger. O Dr. House tornou-nos
peritos em diagnósticos selvagens. E Carrie Bradshaw (O Sexo e a Cidade), a primeira anti-heroína televisiva, ensinou-nos
a comprar (ou a invejar) sapatos.
Veneramos o mafioso Tony Soprano, o psicopata Dexter
Morgan, os niilistas rudes Beavis and Butt-head, o indigente Homer Simpson, o
polígamo Will Sheffer (Big Love), a
disfuncional enfermeira Jackie ou o inconvenientíssimo Larry David (Curb Your Enthusiasm). Rimos com eles,
sofremos com eles, tropeçamos com eles, festejamos com eles, identificamo-nos
com eles. E o arco de progressão do mundo vai-se redesenhando, à volta deles.
O ator Rainn Wilson interpreta Dwight Schrute, em The Office, e define-o como «um nerd fascista». Diz: «Esta é a época dos
cromos, dos Inadaptados. […] Eles são, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum de
nós». Walter White é a aquisição mais recente e valiosa na caderneta. Professor
de Química, um zé-ninguém que não inspira qualquer respeito à sua volta, Walt descobre
que tem cancro e torna-se um virtuoso fabricante de MA-metanfetamina «99 por
cento pura»; um marginal implacável. Seguem-se quase seis anos de produção (de
2008 a 2013), cinco temporadas e 62 episódios. Em 2013, a série entrou no Guiness World Records como a melhor recebida de sempre, com um score de 99 em 100 pontos, registado no site
Metacritic para a quinta temporada. Breaking Bad fica para a história do audiovisual como um western contemporâneo e uma verdadeira
odisseia dramática.
Na prática, os enredos televisivos serializados viciam
os espetadores porque os argumentistas abandonaram as aventuras episódicas a
favor dos grandes arcos narrativos. E fizeram-no sem dispensar a flexibilidade
da substância narrada. Nas telenovelas, por exemplo, a trama desenvolve-se por
multiplicação de aventuras e estruturas episódicas, enredos e subenredos,
alguns abertos e logo fechados num único dia ou semana de emissão, outros dilatando-se
eternamente. Por ser tão ramificado o percurso e existirem tantas estações e
apeadeiros, é fácil apanharmos o comboio da ação em andamento.
Nas séries de autor, a narração por encadeamento impede-nos
de entrar a meio da história (experimentem ver, ou perder, um só episódio de A Guerra dos Tronos, e perceberão do que
falo). Esta inevitabilidade de fidelização impele-nos para o consumo compulsivo
de episódios gravados ou em formato DVD.
O controlo dos novos argumentistas-criadores-produtores
sobre a extensão e o destino da narrativa assemelha-se ao dos autores de quartos isabelinos (Shakespeare publicou
neste formato de folha dobrada em várias páginas impressas) ou de romances
realistas e folhetinescos do século XIX (Dickens paira por aqui, já o veremos).
Todas as personagens, do protagonista ao figurante ocasional, possuem pleno
molde humano. Para perceber tudo, temos que acompanhar tudo: todas as piadas, sugestões,
figuras e ideias recorrentes, todas as camadas de sentidos. Não podemos falhar
a colocação de nenhum tijolo no arco do enredo. Também por isso, aproximamo-nos
mais do que vemos.
«O final de Dexter
deu-me vontade de cortar o meu corpo em pedaços, embrulhá-los em sacos do
lixo pretos & atirá-los ao mar», lê-se num dos muitos comentários negativos
twittados na noite do último
episódio. Os fãs das novas séries de autor são assim: odeiam lugares-comuns, moralismos
e pieguices e têm olho clínico para incongruências e erros de raccord. Os últimos minutos de Os Sopranos em black out total do ecrã amadureceram-nos. Fizeram-nos abominar soluções
fáceis, como a gradual concessão de O
Sexo e a Cidade ao género cor-de-rosa ou o fogo de artifício cowboiesco e
sentimentalóide do final de Breaking Bad.
Hoje, os fãs enraivecem-se em público, como se cada série fosse sua exclusiva propriedade
privada.
No ano passado, perante o atraso no lançamento nos
EUA da série dinamarquesa Borgen
(centrada no desempenho de uma primeira-ministra independente), o New York Times publicou um comentário
crítico, obviamente destinado àqueles que já a haviam pirateado. O interesse
não era alheio à atualidade da mensagem principal da série: «Como chegar ao poder e manter-se fiel a si
próprio?»
A nova televisão modela opiniões e comportamentos
e é cada vez mais subversiva. A maioria das séries televisivas alimentam-se de
todas as declinações cómicas, dramáticas e sociais da América moderna. As
melhores, afirmam-se pelo potencial de desconstrução.
No documentário America in Prime Time (2011), Vince Gilligan, criador de Breaking Bad, apresenta Walt como «génio
borderline». Versão atualizada de Dr.
Jekyll e Mr. Hyde, a personagem compõe, com o ajudante Jesse Pinkman, «o par
absurdo do século». Uma das leituras possíveis do arco da personagem é a de que
a sublime competência de Walt como cozinheiro
equilibra na balança a brutalidade dos seus atos. Em subtexto, condena-se a
penalização e a falta de controlo estatais sobre o comércio das drogas ou,
segundo alguns, defende-se a supremacia
branca.
David Simon, por seu turno, quis fazer de The Wire um vasto comentário social à
distopia de uma cidade. Para tal, recorreu à rejeição de um único protagonista
e à fragmentação da cidade, peça a peça, figura por figura, em instantâneos quase
neo-realistas. Por fim, eis Baltimore e a denúncia da pobreza, da marginalização,
dos esquemas dos gangues e dos traficantes de droga como nunca ninguém os tinha
visto.
Nove anos após a despedida de Seinfeld (onde chegou ao limite de testar uma referência explícita
a masturbação), o humorista Larry David apostou numa refinadíssima paródia aos reality shows. Em Curb Your
Enthusiasm, decidiu interpretar o papel de um alter ego colado a si mesmo e ao seu quotidiano e concedeu-se todas
as liberdades de um puto malcriado e egocêntrico. «A série permitiu-me não ser
adulto […] e usar o humor confessional de um ser humano terrível», afirma, num
dos extras dos DVD da série.
Quando lhe perguntam se é judeu, o protagonista dispara:
«Queres que te mostre o meu prepúcio?» É capaz de dizer as coisas mais ignóbeis
na cara dos outros e dos gestos de egoísmo mais absurdamente divertidos. Quanto
mais o insultam, mais ele se ri. Quanto mais ele insulta, mais os outros se
sentem confortáveis para trocar a surpresa pela raiva.
A genialidade de Curb nasce de um compromisso radical com a improvisação. Cada episódio
de meia hora parte de um guião só com sete páginas. Entre um ponto de arranque
e um ponto de chegada definidos pelo argumentista, o espaço abre-se todo ao
improviso pelos atores e à comédia de personalidade e circunstância. Larry é o
soberano absoluto deste reino da personagem e da demolição das expectativas e dos
constrangimentos convencionais. Se fosse vivo, Charles Dickens não desdenharia
tê-lo incluído no clube Pickwick.
«Shake me
up, Judy! Oh, mi bônes and sockets!» O agiota Mr. Smallweed contorce-se na
sua cadeira portátil, enquanto aguarda que a neta lhe aplique uma variante da
manobra de Heimlich e, por ajuste quiroprático, o alivie da pressão
osteo-lombar. O som de estalar de ossos não interrompe o discurso da infame criatura.
O recurso expressivo é perfeito para ilustrar o virtuosismo das criações
humanas de Dickens, mas a sua autoria cabe inteiramente a Andrew Davies, o
argumentista da série Bleak House,
lançada pela BBC em 2005.
«Um livro não é propriedade exclusiva do seu
autor. Em tempos diferentes, ocorrem interações diferentes com os leitores.» Foi
com este espírito confiante e libertário que Davies adaptou para televisão e cinema
clássicos como Moll Flanders, Middlemarch, Orgulho e Preconceito, Vanity
Fair ou Doutor Jivago. Quando se
decidiu a abordar A Pequena Dorrit,
guilhotinou o livro em duas partes, para tornar a sua leitura menos enfadonha.
Depois, não hesitou em trocar páginas e páginas por uma única imagem sugestiva.
Para conquistar um novo espaço convém, de facto, abrir-se antes um espaço vazio
ou alargar-se os espaços pré-existentes. A literatura e a tele-literatura convivem hoje sem conflito, porque se juntam para
namorar, mas dormem separadas.
Anuncia-se para breve o início da adaptação
programática das obras de William Faulkner, o autor canónico que foi argumentista
em Hollywood. As séries dramáticas serão assinadas por David Milch e produzidas
pela HBO. Milch escreveu e produziu as três temporadas do western barroco Deadwood, brilhante e ignoradíssimo.
A simultânea dureza e compaixão com que as novas
tele-séries tratam as personagens não anda longe dos caminhos de Faulkner. Nas
mãos de David Milch, Yoknapatawpha vai deixar de ser um condado fictício, para
tristeza de alguns literatos e name-dropistas.
Mas irá tornar-se uma paisagem tão escrita quanto real, como só a nova
televisão as tem conseguido criar. Shake our
bones!
LER / Março 2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)