Fala, Memória, a autobiografia de Nabokov, é um supremo exercício
literário.
Só comparável em importância às Confissões
de Santo Agostinho ou de Rousseau.
Nada
de paixões por reflexos em fontes ou de madalenas mergulhadas no chá. Para Vladimir
Nabokov (1899-1977), uma autobiografia honesta e perene nasce, não de um gesto
egocêntrico ou narcótico, mas de um ato «excêntrico»: o de moldar um conteúdo individual
a uma forma impessoal e artística. Para ser verdadeira, a criação
autobiográfica deve, antes de mais, tomar a rememoração como exercício técnico
de procura, exploração e análise de «sendas ou correntes temáticas» nas regiões
mais remotas da vida passada. Segundo este método, a retrospecção é uma
tentativa de transformar uma evidência numa conclusão.
No
apêndice-posfácio, ou 16º capítulo, escrito em 1950 para a autobiografia Fala, Memória (publicada e várias vezes
revista e reescrita entre 1951 e 1967, com vários títulos, entre eles Evidência
Conclusiva), Nabokov faz-se passar por um crítico e dedica à obra uma
pseudo-recensão. Assim, ele (que odiava as teorias de Freud) deixa claro que,
nestas memórias, o jogo e intenção é «projetar o seu eu mais precioso, no
quadro que compõe»; projetar-se enquanto
tema para si próprio, cindir-se a si mesmo. Esclarece: «Uma vez determinado,
este ou aquele tema é seguido ao longo dos anos. À medida que se desenvolve,
conduz o autor a novas regiões da vida. O padrão diamantino da arte e os
músculos de uma memória sinuosa combinam-se num movimento livre e flexível e
produzem um estilo que parece deslizar por entre as ervas e as flores até à
pedra quente e lisa sobre a qual exibirá o fulgor dos seus anéis.» Não é à toa
que, para muitos críticos e leitores, este é o mais elegante e mais artístico
de todos os livros de memórias alguma vez escritos.
Talvez
o segredo da beleza e mestria de Fala,
Memória esteja no facto de ser uma das mais poderosas homenagens ao poder
da sensibilidade de uma criança, aqui traduzido numa acumulação de detalhes
rememorados com extrema exactidão pelo adulto. É deles e da sua busca e aperfeiçoamento
metódicos que nasce a perfeição da forma deste livro. «A imaginação, suprema
delícia do imortal e do imaturo, devia ser limitada», defende o escritor. Sim,
a literatura nasce do poder de observação. Paradoxalmente, este aumenta em
proporção à posição distanciada do observador e à riqueza do objeto observado. Nesta
perspetiva, o caso de Nabokov é único: a passagem para a idade adulta dá-se com
a perda violenta (do pai, da pátria, de fortuna, privilégios e poder) e o
distanciamento radical e definitivo (o exílio) da riqueza paradisíaca de um
«passado perfeito». Esta cisão será o tema central desta autobiografia e a raiz
do seu método.
Fala, Memória, dedicado pelo escritor à sua mulher (a judia
russa Véra; a quem corresponde um enigmático «tu» que surge de repente no
texto), partiu de um primeiro texto escrito em francês e publicado numa revista
parisiense em 1933. Nabokov juntou-lhe onze capítulos (escritos em inglês, para
publicação na revista New Yorker,
entre 1948 e 1950) para abranger o período compreendido entre 1903 (quatro anos
de idade) e 1918, ou seja, entre a infância e adolescência idílicas nos
domínios de uma família russa aristocrática, culta e liberal e a estadia na
Crimeia, em fuga aos bolcheviques. Os três
restantes capítulos (Partisan Review e Harper’s Magazine, entre 1949 e 1951)
cobrem o exílio em Cambridge, Berlim e Paris, até à partida para a América em
1940.
Nabokov
não chegará a escrever a continuação de Fala,
Memória, anunciada no prefácio de 1966, como Continua a Falar, Memória. A última ficção que publica antes de
morrer é Look at the Harlequins!
(1974), uma desconstrução autobiográfica (resposta crítica à biografia Nabokov: His Life in Part, de Andrew
Field), onde a paródia surge a partir da criação de um narrador-duplo-biógrafo:
Vadim Vadimovich (VV). A obra de Vladimir Nabokov conclui-se, assim, não num
fechamento em círculo, mas como uma espiral aberta, premonitoriamente observada,
analisada e descrita em Fala, Memória.
Assim: «A espiral é um espiritualizado círculo. Na forma espiral, o círculo [da vida?] desenrascado,
intacto, deixou de ser vicioso; foi posto em liberdade. […] Uma espiral de cor numa pequena bola de vidro, ora
aqui está como vejo a minha própria vida.»
LER Maio 2013© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)