Acima de tudo, Abdul Husain percebia de lixo. Num país em espantoso progresso económico, os pobres sonhavam com uma vida melhor. A mãe Zehrunisa não fugia à regra. O seu sonho era ter uma bancada de pedra, aonde as ratazanas não chegassem. Quando Abdul tentou fixá-la à precária parede da barraca, a divisória cedeu. A vizinha, a Perneta, louca de inveja, auto-imolou-se para acusar a família Husain. Abdul, 16 anos, intermediário dos catadores de lixo, o pai e a irmã, foram acusados e presos. Os seus sonhos dissolveram-se porque «os mais miseráveis tentavam castigar os que eram ligeiramente menos miseráveis recorrendo a um sistema de justiça maligno que os afundava a todos».
Entre 2007 e 2010, a repórter Katherine Boo, membro da New Yorker e vencedora de um Pulitzer, seguiu a vida de Abdul e de uma dezena dos 3000 habitantes das 335 barracas de Annawadi, onde os «esgotos e a doença pareciam vida». O bairro de lata fica ao lado dos hotéis de luxo e dos jardins do aeroporto de Bombaim, cidade com um terço dos pobres do planeta, mas que produz 800 toneladas de lixo por dia. O Sonho de uma Outra Vida regista, sob a forma de romance, o trabalho de «jornalismo de imersão» de Boo (casada com um indiano), uma investigação única sobre a distribuição de oportunidades e a violência da corrupção na «cidade inferior».
Abdul e a sua família, os amigos Sunil, Sonu e Kalu. Asha, a professora primária que quer migrar de classe influenciando a comunidade e pactuando com a corrupção política, a sua filha idealista, Manju, e Meena, a primeira menina de Annawadi (suicida-se com veneno de rato). Katherine Boo, testemunha silenciosa do seu quotidiano, dá vida interior a esta galeria de personagens reais. A subtileza da abordagem resulta na exposição brutal das aspirações, da inteligência, da humanidade e da poesia existente nas vidas mais miseráveis. O Sonho de uma Outra Vida expõe o boicote da inata acção moral no mundo de hoje. É difícil não chorar ao ler este livro.
O Sonho de uma Outra Vida, Katherine Boo, Edições Asa, 288 págs., 14.90€
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© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
