Pierre Lemaitre: «Os soldados regressados
foram recebidos como leprosos»
«Albert alistara-se numa guerra
sthendaliana e dera consigo numa matança prosaica e bárbara que, durante
cinquenta meses, provocou um milhar de mortos por dia.» Albert Maillard, de
origens modestas, é um dos dois protagonistas de «Até nos Vermos lá em Cima», de Pierre Lemaitre, vencedor do
Goncourt 2013 e agora editado pela Clube do Autor. Na frente de combate, no
final da Grande Guerra, Edouard Péricourt, um pintor, filho da alta burguesia,
salva Albert de morrer soterrado, mas perde metade do rosto. Os dois soldados
viverão o imediato pós-guerra juntos em Paris, num tempo dominado pelo luto,
por homenagens frustes e negociatas macabras (como o «escândalo dos cemitérios», um caso de caixões de madeiras de
quinta categoria, demasiado pequenos e com identidades trocadas). Pierre
Lemaitre (n. 1951), antes conhecido como especialista do policial francês, explica
porque criou este requiem da guerra,
em celebração da emoção e da amizade.
Logo após o anúncio do Goncourt, foram
muito salientadas as suas raízes no género polar,
considerado comercial e menor. Isso incomodou-o?
De
todo. Estou ciente dos preconceitos envolvidos, mas eu mesmo reivindiquei essa
origem. Sabe, estou em muito boa companhia: Georges Simenon, Jean Vautrin
[Goncourt 1989]...
No romance, refere que «uma guerra mundial
nunca era mais do que uma tentativa de homicídio generalizada à escala de um
continente». As estratégias do policial mantêm-se...
O
meu principal desafio era a ignorância generalizada sobre esta guerra, que
provocou 40 milhões de mortos, feridos, viúvas e órfãos, o equivalente à
população total da França em 1914. Queria que os meus leitores vivessem o sentimento de injustiça que
acompanhou o regresso dos soldados. Por isso, a minha estratégia foi, antes de
mais, levá-los até à frente de combate.
Porquê um protagonista homossexual (Edouard)?
Queria
uma personagem trágica e, para isso, precisava de um motivo plausível para uma
oposição forte entre um pai e um filho, no início do século XX. A homossexualidade
pareceu-me uma opção evidente: prática do ponto de vista narrativo e útil do
ponto de vista social. Fora de certos círculos sociais restritos, mantém-se ainda
hoje como um problema e uma fonte de injustiças.
Por seu turno, Albert é uma personagem
dramática. O romance segue regras clássicas, mas a estratégia de ligação ao leitor
é realista. Como é que conjugou emoção e técnica?
A
literatura é uma máquina de descodificação do mundo. Mas o seu principal instrumento
não é a teoria, a razão ou a abstracção: é a emoção. Fazer compreender algo ao
leitor implica criar emoções, positivas ou negativas. O meu maior desafio
técnico consiste em pôr o texto ao serviço da emoção que quero transmitir... Contudo,
é impossível não falhar, dada a imprevisibilidade da reacção do leitor.
Fazer-se entender através da emoção é dificílimo e, neste aspecto, a estratégia
realista, muito assente em arquétipos, surge como a mais eficaz.
Porquê escrever sobre o imediato pós-guerra?
Nas
múltiplas abordagens à Primeira Guerra, aquilo a que se chama hoje a «saída da
guerra», entre 1918 e 1922, tem sido uma espécie de ângulo morto. É um momento
pouco conhecido, durante o qual todos tiveram de aprender a viver com a paz. Segundo
Freud, fazemos o luto de algo que amámos. Ali, houve que fazer o luto de algo detestável.
No caso francês, ao entusiasmo inicial
seguiu-se a barbárie do combate e, por fim, o sentimento de vitória. Talvez por
isso não se permitiu aos combatentes contarem as suas histórias...
O
entusiasmo morreu rapidamente nas trincheiras e na lama. Os soldados voltaram
extenuados. O mais cruel é que os jornais lhes prometeram honras e compensações,
mas eles foram, afinal, recebidos como se fossem leprosos.
O seu livro mostra o fim de uma certa épica
social e o modo como a burguesia lucrou com a guerra. Foi intencional a
aproximação a A Grande Ilusão, de
Jean Renoir?
Sim,
até porque, se Renoir não o tivesse usado, esse título seria o ideal. [ri] Esta
guerra, a última tradicional e primeira moderna, coincidiu com o advento do
capitalismo [exemplificado pela família Péricourt e satélites]. Constatei-o de
facto quando, durante quatro anos, imergi nos jornais da época [disponibilizados
online pela Bibliothèque nationale de
France] e naquele quotidiano.
François Hollande optou por não reabilitar
os 740 soldados franceses condenados pela justiça militar e fuzilados em 1914-18.
É possível saldarem-se de vez as contas com uma guerra?
Quando
o passado foi muito doloroso, essa pacificação é muito lenta. No caso dos
fuzilados, as mentalidades estão muito mais avançadas do que o governo e o
discurso político – o que, aliás, é uma constante em França. De qualquer forma,
a consciência social já compreendeu o que se passou com aqueles homens e já os
reabilitou: essa é a verdadeira paz que pode ser feita com uma guerra.
O actual momento francês é derrotista?
Os
franceses estão muito deprimidos e prontos para cair nos braços da extrema
direita, por falta de perspectivas, de vontade e de fé. A falta de memória,
devida à (des)educação dos mais jovens como indivíduos empregáveis e não como
cidadãos responsáveis, pode lançar a França numa aventura terrífica. Perante
tudo isto, a literatura francesa porta-se bem... Sobretudo porque já percebeu
que para dar a entender e a viver o mundo é preciso voltar a criar personagens
e a contar histórias.
SOL / 11-07-2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)