Philip Marlowe nasceu num mundo onde
a honestidade passou de moda. Mas a honra, não
Hard-boiled: escaldado. É curioso que
tenha sido o mais inglês dos grandes autores norte-americanos (estudou num
colégio londrino) aquele que firmou a única escola literária exclusiva dos EUA.
Raymond Chandler publicou a primeira história policial num pulp magazine aos 44 anos e o primeiro romance, À Beira do Abismo, aos 51. Antes disso,
ascendeu numa companhia de petróleo, de contabilista a vice-presidente, até ser
despedido, acusado de alcoolismo e assédio sexual. Quando criou o detective
Philip Marlowe, estava na pior, mas mantinha uma muito clara noção de dignidade
e perfeccionismo. Traduzido para literatura, isso significava profundidade de
foco em vez de velocidade, personagem em vez de acção, sagacidade em vez de suspense. Foi com esta massa que moldou
um novo herói, sem nenhuma das qualidades heróicas tradicionais, mas realmente humano.
À Beira do Abismo é o melhor cartão de
visita de Marlowe, um dos duros, misantropo, o justiceiro da era do crime
organizado e das veleidades cínicas e assassinas de Los Angeles. Mal entra na
mansão do velho milionário Sternwood, vítima de chantagem e prestes a contratá-lo,
o detective exibe o seu humor descarado. «Sou
sabujo», diz. Ao longo de sete romances rendilhados, esta sabujice desconcertante
aliar-se-á a uma apurada percepção do absurdo, compondo a solidão melancólica
de um idealista, cheio de incertezas, até à máxima amargura.
Marlowe
será sempre superior aos rodriguinhos dedutivos britânicos: «Não
sou nenhum Sherlock Holmes nem nenhum Philo Vance e não espero percorrer uma
pista que a Polícia já percorreu.» Herdou a sua inteligência directamente do
coldre do cowboy, onde repousa,
pronto a disparar, um certo código de
honra, instintivo e inevitá vel. Chandler definiu em The Simple Art of Murder os seus ditames teóricos: distanciamento
afectivo, plausibilidade, «autêntico
sabor da vida», violência, discurso comum e um herói redentor. Com Philip
Marlowe, «um homem completo e um homem
comum, mas também um homem extraordinário», criou uma fórmula rara de
crueza e lirismo, com pancadaria a sério, mortos com história e um orgulho que
dispensa a piedade. Páginas a milhas de «crimes
a cheirar a magnólia» feitos para agradar a senhoras velhinhas. Um realismo
escaldado.
À Beira do Abismo, Raymond Chandler, Porto Editora, 240 págs., 15.50 euros
SOL 20/06/2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)