A poesia inédita de Herberto Helder surge
de novo em edição limitada.
A restrição imposta pelo poeta resulta afinal num marketing infalível.
A restrição imposta pelo poeta resulta afinal num marketing infalível.
Quantos
serão agora os felizardos? A Porto Editora, nova chancela de Herberto Helder (por
três décadas foi a Assírio & Alvim), não o revela, mas é provável que só
5000 exemplares de A Morte Sem Mestre
cheguem aos leitores. O novo livro de poesia inédita traz um CD com cinco
poemas ditos pelo poeta madeirense. O design da capa reproduz o modo como
encaderna os volumes da sua biblioteca, em papel de embrulho e com os títulos
manuscritos a caneta de feltro vermelha. Por «vontade expressa» do autor de 83 anos, a sua poesia continua a ter
só primeiras edições, integradas, após correcções, em volumes de obra completa
e definitiva. O próximo sairá até ao final do ano, incluirá Servidões (de 2013 e cujo ebook está, «durante 30 dias», à venda na Wook) e talvez já A Morte Sem Mestre.
Há mais
de 40 anos que Herberto Helder não dá entrevistas. A fotografia que publicamos é
a mais recente, entre meia dúzia ainda acessíveis. Diz-se que é um misantropo
radical, não atende telefonemas e impede os outros de falarem de si. O que se
diz aumenta a aura mítica do auto-recluso, o maior poeta português vivo.
Entre
a estreia em 1958, com O Amor em Visita,
e o lançamento de A Faca Não Corta o
Fogo, em 2008, as primeiras edições da poesia de Herberto Helder dificilmente
se esgotavam. Serviam para o poeta avaliar o seu público, mas sobretudo para
confirmar a obra, o que justificava a ausência de reedições. Todavia, em Servidões, o livro mais confessional,
esta opção adivinha-se como compromisso com o valor ético da arte: «disseram: mande um poema para a revista
onde colaboram todos/ e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/
nada se reparte: ou se devora tudo/ ou não se toca em nada». Nos últimos três
livros, a expressão do poeta é cada vez mais directa, mais nua, menos rasurada.
Na epígrafe de A Morte Sem Mestre, diz:
«Tudo quanto neste livro possa parecer
acidental/ é de facto intencional.» Nos 28 poemas que se seguem, confirma o
abandono do mundo, a ascese de uma
identidade restrita às margens da poesia e de uma poesia votada à linguagem, não
ao diálogo. De acordo com o que disse ao Jornal das Letras e das Artes,
em 1964: «Um artista consciente saberá
que o êxito é prejuízo. […] Decepcionar é garantir o movimento.»
Seremos
poucos com primeiro acesso aos seus poemas, talvez em nome da preservação do
universo interior do poeta, onde reside a justificação para tão vital recusa da
visibilidade. Mas os tempos, cada vez menos permeáveis ao que é singular,
secreto e intocado, corrompem qualquer viabilidade dos gestos rebeldes à margem
da comunicação e do marketing. Thomas Pynchon, o mais esquivo autor
norte-americano, aceitou participar, em 2004, em dois episódios de The Simpsons, dando a própria voz à sua
caricatura, que surgiu com um saco enfiado na cabeça. Como tantas vezes alertou
Mário Cesariny: «Já não há escândalo.»
Grão de sal em bocas impuras
A
poesia nasceu de um espanto, disse Aristóteles. Com base na ilusão, surge um
objecto que figura uma interpretação da vida e da reação do poeta perante os
estímulos e a provocação. Medo, defesa e elaboração estão na raiz poética desde
os tempos primitivos, negociando com o amor e a morte do corpo. Neste caso, o
poeta dedicou-se a condensar fragmentos do mundo em movimento primitivo e, para
tal, deu a sua própria vida à linguagem. Hoje, diz-se e diz-nos: «filhos não te são nada, carne da tua carne
são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo, […] filha é a palavra carregada que arrancas
aos dicionários quando dormem,/ essa palavra escolheu-te e tu escolheste as
roucas linhas/ onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte».
Agora,
o poeta está nu, no final da vida como no começo do mundo (ou na poesia da
juventude) e por isso pede «que um
qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do
bom leitor impuro». Mais irónica, livre, fulgurante e moderna do que nunca,
a metapoesia de Herberto Helder é a confissão magnífica de quem «queria fechar-se inteiro num poema/
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena».
A Morte Sem Mestre é uma elegia, um
lamento confessional, alimentado pela mensagem fúnebre dos poemas antigos, «tão fortes eram que sobreviveram à língua
morta» e ainda vibram «entre os
objectos técnicos no apartamento,/ rádio, tv, telemóvel,/ relógios de pulso».
O poeta continua a cantar o presente das coisas mesmas, ainda em busca de uma
luz de dentro, iluminando e despedaçando tudo. O acaso, o hermético, o concreto
uniram-se após décadas de experiência da palavra, garimpando poesia como «um organismo internamente coerente e
bastante» (ao JLA, 1964). O que espanta
é o arrojo, a vitalidade furiosa e orgânica deste livro, escrito aos 83 anos do
poeta, e na sua melhor forma.
A
Morte Sem Mestre, Herberto
Helder, Porto
Editora, 64 págs.,
22 euros
SOL 12-06-2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)