O suicídio por encomenda pode ser um negócio
lucrativo?
Kim Young-ha diz que sim, pelo menos na Coreia do Sul.
Duas mortes assistidas e o ano
fica garantido. Ao narrador e protagonista, anónimo, de Tenho o Direito de Me Destruir, basta-lhe pesquisar, identificar e
concretizar os desejos mórbidos de dois clientes, saudáveis mas acometidos por
um tédio-desespero fatal. Passa o resto do tempo a escrever sobre cada caso, a
viajar e a cultivar-se (é apaixonado pela expressão da energia assassina na
pintura).
«Só há duas maneiras de ser um deus: através da
criação ou do assassínio.» Ele cumpre-as
bastante bem, a julgar por este seu relato, sobre dois gémeos (Kim e C) apaixonados
por uma prostituta viciada em chupa-chupas (Judite/Se-yeon), uma performer que nunca deixa que registem a
sua imagem (Mimi) ou uma chinesa que não pode beber água.
Aos dez anos de idade, Kim Young-ha sofreu uma
intoxicação com gás carbónico e perdeu toda a memória retrógrada. Estudou
Gestão em Seul e foi detetive da polícia militar, antes de se estrear, em 1996,
com Tenho o Direito de Me Destruir, e
se tornar a coqueluche da literatura sul-coreana. Hoje, comparam-no a Kafka,
Camus ou Sartre, que é como quem diz que trabalha uma forma de ficção
existencialista bastante estranha ao ocidente (que a trata até como ficção
científica), mas tão cativante quanto em Murakami.
Tenho o
Direito de Me Destruir possui
uma mistura rara de sensibilidade e estranheza, compaixão e cinismo. Neste
romance curto, a atração pela morte é como o desejo de lamber o metal de uma faca,
ácido mas vibrante. Kim é taxista e venera o deus da velocidade ao ponto de
ficar com os olhos raiados de sangue. C já só consegue ver a realidade
enquadrada por um ecrã de vídeo. Judite ou Mimi são musas eróticas, no limite
da solidão. O quotidiano é patético (de pathos-clímax-excessivo),
sem qualquer escapismo sentimental.
Em 2011, houve 30 suicídios por dia na Coreia do
Sul e os índices de infelicidade na juventude eram os mais altos do mundo. O
choque da tradição com a competitividade mais feroz produzira uma sociedade
histérica, mas totalmente destemida. Em Tenho
o Direito de Me Destruir, explora-se esse limite. O suicídio é assistido
por um profissional e a arte e a morte surgem do desespero, não do medo. São
realidades lúcidas, nunca absurdas. Pelo meio, há apenas borboletas mortas.
Tenho o Direito de Me Destruir, Kim
Young-ha, Teorema, 135 págs., 11.61 euros
SOL/ 28-02-2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)