Thomas
Bernhard recria a infância e adolescência numa «sociedade da morte»:
a Aústria
do fanatismo nazi e religioso.
Thomas
Bernhard escreveu a última peça, Heldenplatz
(Praça dos Heróis), para assinalar os 50 anos da anexação da Áustria
pelas tropas de Hitler, então festejada por 250 mil pessoas na praça em frente
do Burgtheater. Em 1988, em cena naquela mesma sala, alguém gritaria: «Existem mais nazis hoje em Viena do que em
1938!» Dias antes da estreia, um grupo de protesto despejou um monte de
esterco em frente do teatro; na noite da estreia, a vaia durou quase uma hora.
Três meses depois, o escritor cometeu suicídio assistido. Em testamento, interditou
a publicação ou representação futuras da sua obra na Áustria.
Saem
agora, reunidos num só, os cinco volumes autobiográficos de Thomas Bernhard (A Causa, A Cave, A Respiração, O Frio, Uma Criança, publicados entre 1975 e 1982). É lá que está a raiz desta
relação complexa, assumida pelo escritor, assim: «O passado do Império dos Habsburgo é o que nos enforma. No meu caso, é
O
cenário é o da infância e adolescência, no final e pós-Segunda Guerra. Estamos
em Salzburgo, a cidade «aniquiladora do
homem criativo», um «solo de morte arquitectónico-arquiepiscopal-estúpido-nacional-socialista-católico»,
onde as pessoas têm um «fundo
inteiramente inimigo». Thomas vive no internato dirigido pelo sádico nazi
Grünkranz (depois troca-se o retrato de Hitler por um crucifixo e surge o «Tio Franz»), nas grutas de abrigo
anti-aéreo (onde se morre de asfixia ou de medo), numa cave-refúgio, como
aprendiz de comerciante. A cronologia distende-se até aos 18 anos e ao sanatório,
onde uma pleurisia degenera em tuberculose, a doença que vitima a mãe e o avô (única
figura de amor) e de que o escritor sofrerá toda a vida.
Bernhard
retrata, sob o olhar parcial de adulto pessimista (nunca «falsificando», diz), a evolução de um «eu» ou «ele», traumatizado
e literário. Um humor cru, satírico, se não trágico, perpassa o ritmo frásico,
tão singular. A densidade emocional do relato é proporcional à sua importância
histórica. Este é um «palco doido» onde
todas as figuras são Bernhard, desde pequeno na sombra da doença, da morte e do
medo: um «desmancha-prazeres».
SOL 28-03-2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)