Música barroca e moderna,
Velho e Novo Mundo, índios, negros e músicos setecentistas. É um pequeno grande
delírio realista-barroco-surrealista e cabe em pouco mais de cem páginas. Obra-máxima
da literatura sul-americana, escrita por Alejo Carpentier em 1974, Concerto Barroco sai agora pela
Antígona.
Numa noite de Carnaval na
Veneza setecentista, ocorre uma peculiar jam
session. Na Sala da Música do convento e orfanato Ospedalle della Pietà, um
mineiro e negociante de pratas mexicano, um criado negro cubano, dois
compositores italianos, um compositor saxão e setenta virtuosas pupilas instrumentistas
compõem o concerto mais surpreendente e a mais desconjuntada farândola que se
possa imaginar. Sobre tudo e em tudo, vibra o toque irónico de Carpentier
(1904-1980), musicólogo e ficcionista, mestre em sinestesia (cruzamento de
planos sensoriais), catacreses (atribuição de sentidos pouco usuais às
palavras), História e fantasias paradoxais.
Imaginemos os arpejos e
floreados dispersos pelas mãos de Domenico Scarlatti no teclado do clavicórdio
e as deslumbrantes vibrações de Georg Friedrich Händel no baixo contínuo.
Enquanto isso, o frade ruivo Antonio Vivaldi rasgava no violino «arcadas do
alto, como se as arrancasse do ar com brio cigano, mordendo as cordas,
brincando em oitavas e notas dobradas, com o virtuosismo infernal que as
discípulas já lhe conheciam». Entram depois os trinta e dois compassos de
improviso do negro Filomeno numa bateria de tachos de cobre. No final, o Amo
crioulo, fantasiado de Montezuma (imperador asteca), distribui por todos uma
bebida que acaba de criar, «misturando de
tudo um pouco». É esta a tónica de Concerto
Barroco, relato da espantosa viagem de dois sul-americanos até Veneza, a
cidade que no final se afunda aos poucos e ao som do trompete de Louis
Armstrong.
Carpentier, nascido na
Suíça, cubano de coração, conviveu com os surrealistas franceses e combinou nas
suas ficções a revitalização do «espírito
barroco» e a teorização do «real
maravilhoso». Este último, a não confundir com realismo mágico, explora a
crença de que, para os de fora, «tudo o
que é de lá [da América Latina] é fábula». Funambulando nessa linha onde
a fantasia toca a realidade e a palavra justa toca o absurdo, Concerto Barroco é um apuradíssimo
desconcerto.
Concerto
Barroco, Alejo
Carpentier, Antígona, 125
págs., 13 euros
SOL/ 24-01-2014