Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

sábado, fevereiro 22, 2014

A questão Irène Némirovsky



Romancista de origem judia ucraniana refugiada em Paris em 1919 e falecida em Auschwitz em 1942, Irène Némirovsky é hoje uma lenda controversa. Aclamada em vida, esquecida durante 60 anos e recuperada graças ao romance inédito e inacabado Suite Francesa, há quem a acuse de antisemitismo. Outros salientam a importância literária ou documental dos seus livros. 
A Relógio d’Água está a publicar-lhe a obra (quase) toda.

Em 2004, o Prix Renaudot, um dos mais importantes prémios literários franceses, criado em 1926 e atribuído, entre outros, a Aragon, Céline, Le Clézio ou Perec, destacou pela primeira vez uma obra póstuma. Suite Francesa, incompleto roman fleuve que retrata as provações dos franceses durante a ocupação alemã entre 1940 e 1941, havia sido escrita cerca de sessenta anos antes pela judia ucraniana Irina Leonidovna Nemirovskaïa (1903-1942), cuja vida fora romanesca e terminara de forma trágica.
Nascida e criada em Kiev (Ucrânia), filha única de um especulador e banqueiro judeu (não-praticante) e educada por uma perceptora francesa, Irina viveu em Paris entre os nove e os onze anos e a partir dos dezasseis, quando a família ali se instalou definitivamente, em fuga às perseguições antissemitas e às convulsões políticas na Rússia. Em criança, fala quatro línguas e aprende o francês antes do russo. Licenciada em Letras pela Sorbonne, estreia-se, sob o nom de plume de Irène Némirovsky, em 1927, com a novela breve L’Enfant Prodige, e, em 1929, publica o romance David Golder (recém-editado pela Relógio d’Água), o seu maior best seller em vida. Seguem-se vários outros romances, todos escritos em francês, acolhidos com relativo sucesso durante toda a década de 1930. Ao longo deste tempo, Irène frequenta a burguesia rica de Paris, mantém distância para com a comunidade de emigrados judeus russos e cultiva amizade quase apenas com pessoas influentes de direita e até mesmo de extrema direita. Em 1938, quando ela e o marido, o judeu russo Michel Epstein (engenheiro físico que se tornou banqueiro), solicitam a nacionalidade francesa para si e para as duas filhas, nascidas em França, não obtêm resposta, o que os lança na perigosa condição de judeus, russos e apátridas. Em 1939, o casal converte-se ao catolicismo e batiza as filhas. Em 1940, recusam fugir (para os EUA) pela fronteira de Andaia e Irène escreve ao marechal Pétain (sem resposta), pedindo-lhe que «a distinga dos indesejáveis», enquanto estrangeira «respeitável» (honorable) que é e nomeando vários amigos influentes. Todavia, estes esforços para, reconhecidamente, «quebrar os laços com um povo cuja estranha identidade sempre [lh]e pareceu incompreensível», de nada servem.
Em 1940, Albin Michel (virá a ser tutor das órfãs da escritora) edita o romance de inspiração autobiográfica no qual Némirovsky descreve os judeus de Kiev, a sua feroz divisão por classes e a sua insistência, mesmo perante o aumento da violência dos pogroms e raides cossacos, em funcionarem entre si como cães e lobos. Os três protagonistas, depois emigrados em Paris, vivem um triângulo amoroso sempre condicionado por aquelas divisões originais. Os Cães e os Lobos (recém-publicado pela Relógio d’Água) será a última ficção da escritora editada em vida, devido à interdição aos judeus de editar ou receber direitos autorais entretanto decretada. Note-se que o único editor que ainda publicará o seu trabalho é Horace de Carbuccia, fundador da ostensivamente antissemita revista Gringoire, onde ela passa a colaborar, sob pseudónimo (e até Fevereiro de 1942). Em 1941, obrigada a usar a estrela amarela, a escritora instala-se com a família num hotel modesto numa pequena vila de Issy-l’Evêque (região da Borgonha, administrada pelos alemães), onde começa a escrever Suite Francesa. Em Julho de 1942, com 39 anos de idade, é presa pela polícia francesa local, logo enviada para o campo de trânsito nazi de Pithiviers e, dali, como «artista judia degenerada», para o campo de concentração de Auschwitz, onde morre, um mês depois, crê-se que vítima de tifo. O marido ainda escreve ao embaixador alemão, argumentando: «[A]pesar de a minha mulher ter ascendência judia, na sua obra, ela refere-se aos judeus sem qualquer tipo de afeição.» Capturado em Novembro, é também enviado para Auschwitz, onde morre, logo à chegada, na câmara de gás.
Contendo apenas duas das cinco partes previstas, o pequeno caderno manuscrito da ficção Suite Francesa, repleto de uma letra minúscula e febril, quase ilegível, e feito de mau papel desse tempo de penúria, conservou-se, sempre em França, dentro de uma pequena mala que Michel havia entregado à filha mais velha, Denise Epstein (n. 1929). Acompanhou-a enquanto esta esteve escondida em colégios internos, com a irmã (Elizabeth Gilles, 1937-1996, autora de Mirador, biografia imaginária da sua mãe, publicada em 1994), e, depois, durante 59 anos, até Denise arranjar coragem para o transcrever, ler, depositar no arquivo IMEC e dar a publicar. Em 2004, Suite Francesa torna-se um retumbante êxito comercial e impulsiona a revelação ou reedição de todas as ficções de Némirovsky.
Ganha rápido destaque o romance de estreia, David Golder, cujo protagonista homónimo é um ávido homem de finanças judeu originário do gueto de Kiev e instalado em França. Já velho e após entrar em bancarrota com um negócio na Califórnia, reconstitui parte da fortuna, apenas para satisfazer os desejos de uma filha estouvada, cruel e promíscua. Num último estertor, vêem-lhe à boca palavras em iídiche e há uma voz que o chama de regresso a casa. Assim que ressurge, a personagem Golder, com muitas analogias com Père Goriot, de Balzac, é lida por vários grupos judeus e por vários críticos como uma criação profundamente antissemita, também comparável a Shylock, o agiota de O Mercador de Veneza, de Shakespeare. Outros traços de antisemitismo são depois apontados na obra de Némirovsky. Em 2008, o Musée d’Art et d’Histoire du Judaisme parisiense recusa-se a exibir a exposição evocativa da escritora antes produzida pelo Musem of Jewish Heritage de Nova Iorque e comissariada por Olivier Philipponnat, co-autor da importante biografia La vie d’Irène Némirovsky (a mostra será acolhida pelo Mémorial de la Shoah, em 2011). Sempre que ressuscitam pelo mundo fora (existem traduções em 38 línguas), os livros de Irène continuam a suscitar polémica.
A dúvida é premente: até que ponto a carga emocional e a complexidade da personalidade, da vida e da morte de Irène Némirovsky, um dos 75 mil judeus enviados da França para os campos nazis, influenciou, por exemplo, a atribuição póstuma de um Renaudot e poderá ofuscar uma apreciação crítica estritamente literária? O destino dos judeus na Europa no século XX, a Shoá (significa «calamidade» em iídiche) ou Holocausto (de origem grega, significa «sacrifício pelo fogo»), permanecem centrais na problemática mais profunda e essencial da cultura europeia. O suicídio de Paul Celan, Primo Levi, Jean Améry, Stefan Zweig ou Walter Benjamin ensombram para sempre a discussão sobre as potencialidades da expressão artística. É inegável que a maior parte da força das ficções de Némirovsky, tal como a maior parte das críticas que lhe são feitas, advém da sua circunstanciação feita na atualidade. Em 1933, Irène escreveu no diário: «Existem suficientes recordações e poesia na minha vida para compor um romance.» De facto, poucas obras como a dela se relacionam de forma tão indestrinçável com a biografia do seu autor.
A obra de Irène Némirovsky é determinada por uma tortuosa busca de identidade, com origem na sua dificílima relação com a mãe, que sempre a viu como uma rival. O pai estava quase sempre ausente em viagens de negócios e Fanny Némirovsky, obcecada pela sua própria beleza e capacidade de sedução, acumula amantes e humilha a filha desde pequena. No baile de debute desta, apresenta-se como sua irmã. Proíbe-lhe a vocação de escritora (Irène só a assume após o casamento). Quando ela engravida, insta-a a abortar, porque não quer ser avó. Quando as netas a procuram após a guerra, em Nice, onde manteve todos os privilégios (provavelmente à custa do desvio da herança paterna de Irène), fecha-lhes a porta, alegando que o lugar delas é num orfanato. A escritora dirá em 1937, à futura historiadora e escritora Dominique Desanti: «Detestar uma ausência e não uma presença: é um ódio muito mais fácil de suportar.» No entanto, o trauma da relação com a mãe projeta-se em todos os livros; sobretudo e de forma magistral na novela tragicómica O Baile, de 1930, terrível contra-conto-de-fadas, recém-publicado pela Relógio D’Água.
Irène demonstra também complexos e ambíguos sentimentos quanto ao passado vivido na Ucrânia. Não nutre simpatia nem pelos judeus do shtetl, nem pela burguesia russo-judia. As agitações pós-Revolução de 1917 levam-na a fugir, com a mãe, de Kiev em direção a Paris, passando pela Finlândia e Suécia, trajeto relatado no livro mais autobiográfico, O Vinho da Solidão (redigido em 1934, dois anos após a morte do pai). Odiará para sempre o comunismo. Entretanto, a sua adorada perceptora, Marie, suicidara-se, deixando-a órfã aos catorze anos. Irène desejará para sempre ser adoptada em pleno direito pela França. Até ao fim, lê mal os sinais à sua volta e duvida que possa ser abandonada por esse país que tanto ama, onde o pai reconstruiu a fortuna (a partir de uma sucursal do seu banco ucraniano) e onde, como judia assimilada, atingira uma situação social de privilégio.
Helène, a protagonista de O Vinho da Solidão, exclama: «Passei a vida a bater-me contra um sangue odioso, mas tenho-o cá dentro. Corre-me no corpo. […] E se não aprender a vencer-me a mim mesma, este sangue, acre e maldito, será mais forte do que eu...» Progressivamente, em permanente ruptura com essa parte da sua herança, Irène Némirovsky divorcia-se da judeicidade. O desenraizamento interior e exterior das personagens torna-se o tema central. Até Suite Francesa (editado pela Dom Quixote em 2005) os romances vão-se esvaziando de personagens judias. Num movimento semelhante ao de muitos autores secularistas, a escritora rejeita a religião e contrapõe-lhe o pragmatismo. Quer mostrar as pessoas-personagens como elas são, nos seus contextos precisos, e aceita o preço desta atitude: «[T]emo sobretudo a objecção dos próprios judeus: “Porquê falar de nós?”, perguntarão eles, “Por acaso ignora a perseguição de que somos vítimas, o ódio que nos persegue? Se falamos de nós, ao menos que seja só para glorificar as nossas virtudes e carpir as nossas provações!” A isto, eu responderia que não existem temas tabu em literatura. Por que há de um povo recusar-se a ser visto tal como ele é, com as suas qualidades e os seus defeitos? Creio que alguns judeus irão reconhecer-se nas minhas personagens. Provavelmente irão desprezar-se? Mas eu sei que digo a verdade.» Os seus livros nascem de anotações prévias e minuciosas do perfil completo e do percurso de cada personagem. A David Golder e às figuras presas a formatos de caricatura, sucede-se uma complexificação gradual dos retratos psicológicos.
Devido a um impregnado conservadorismo de direita, Irène convive muito pouco com os artistas modernistas ou experimentais ou com os intelectuais pós-dreyfusianos seus contemporâneos. Não se identifica com eles. Ainda que procure descrever o seu tempo com fidelidade, o mundo da sua ficção é ainda movido de forma cega pelo desejo e pelo impulso das personagens. Em Tchékov (a quem dedica um ensaio biográfico), diz ter aprendido a escrever com acuidade, mas também com distanciamento. Com Balzac, treina a sensibilidade. Em Tolstoi, descobre a técnica de fazer sobressair o detalhe na massa e no movimento indiferenciados, conferindo uma força poderosa ao painel por fim composto. Némirovsky situa-se sem dúvida entre o romantismo e o realismo, o que se confirma quando contrapõe a sua relação com a guerra enquanto escreve Suite Francesa à atitude de Tolstoi perante os acontecimentos históricos integrados em Guerra e Paz: «Ele estava-se nas tintas. Já eu, eu trabalho sobre lava ardente. Seja qual for de nós que tem razão, acredito que o que distingue a arte do nosso tempo da de outros, é que nós esculpimos o imediato, trabalhamos sobre coisas em brasa. Pode ser questionável, claro, mas é precisamente disto que a Arte de hoje em dia precisa.» Nas ficções de Némirovsky, a realidade medíocre contrasta com o brilho e a sensibilidade da prosa, habitada por um contraditório lirismo cru e por uma ironia devastadora.
Quando se associa Irène Némirovsky ao que se crê ser a literatura judaica, convém deixar claro que esta denominação engloba variadíssimos objetivos e formas (literatura bíblica, rabínica, ética, filosófica ou mística, escrita nos idiomas judaicos, com temáticas relativas ao judaísmo ou produzida por judeus) e é indissociável da questão judaica, isto é, da questão do outro; de uma reflexão sobre as facetas de alteridade perante o outro, perante si próprio ou perante as suas próprias projecções. Mais ou menos determinada pela tradição religiosa ou por um judaísmo secular humanista, pelo passado de sofrimento, exílio e diáspora, em resposta ao antisemitismo ou, depois da Solução Final, pelo imperativo do testemunho, a literatura dita judaica interroga a identidade, a origem e o sentimento de pertença a uma comunidade. O denominador comum de todas as suas formas pode encontrar-se nestas oposições binárias entre o mesmo e o outro e, neste sentido, como salientou o filósofo político Leo Strauss, «o problema judeu é a ilustração mais simples e a mais profunda do problema humano».
Depois, como explicar a um goyim (não-judeu) que a identificação de alguém com uma herança de cultura judaica possa cimentar-se desde a infância, por exemplo e entre muitos outros factores de pertença, na trivialidade de anedotas pró-semitas ou antissemitas muitas vezes repetidas nas reuniões familiares? Como esta, escatológica: dois judeus estão sentados num banco de jardim e um diz para o outro: «Deste um pum» e o outro responde, rápido: «Eu? Só se caiu». Ou esta: um goyim pergunta a um judeu: «Porque é que vocês, judeus, estão sempre a questionar tudo?», e ele retruca: «Porque é que tu achas isso?» Tal como melhor o exemplificou Sholem Aleichem (1859-1916, autor dos contos que inspiraram o libreto de Um Violino no Telhado), figura de proa da literatura iídiche, o humor judaico é uma combinação única de espírito de resistência e de tendência auto-depreciativa. Trágico, nasce tanto do riso como do choro, da reflexão e da autocrítica (Victor Malka, Lire  2008). Criadas e transmitidas de judeu para judeu, as anedotas judaicas são in-jokes que, em boa parte, exploram quase pateticamente estereótipos negativos atribuídos durante séculos pelos gentios aos judeus e relativos a características físicas (físico enfezado, rosto doente, nariz curvo, avantajado e rubicundo) ou psicológicas e de carácter (histeria, neurastenia, avareza, cobiça, ambição, inteligência perversa ou intrujice). O sujeito constitui-se, ele mesmo, em matéria risível porque procura entender, responder e resistir a um mundo que o caricatura e que o rejeita. O riso é, assim, uma arma contra o destino. A ironia judaica é amarga e dolorosa, mas exorcizante. Nela, como Milan Kundera assinalou, «o homem pensa[-se] e Deus ri[-se]».
Se a situarmos num contexto de prevalência da questão da identidade e da alteridade, como forçosamente o temos que fazer, por exemplo, em relação a Spinoza, a obra de Irène Némirovsky poderá ser melhor entendida. A escritora e crítica Carmen Callil, uma das suas mais acérrimas defensoras contra as acusações de antisemitismo, argumenta: «Isso apenas é motivo de discussão porque a nossa cultura está hoje impregnada de politicamente correto. Ela não tinha aversão aos judeus. Ela tinha aversão a alguns judeus. O que faz toda a diferença.» Irène vê e refere os judeus como outros a/em si mesma. No que escreve, é fiel ao que sente. Não imagina, nem poderia imaginar, o que o futuro lhe reserva. Como as personagens de Suite Francesa, ela caminha, de forma inconsciente, para a catástrofe. Numa entrevista, em 1935, deixa dito: «Se já existisse Hitler nessa altura [em que escreveu David Golder], eu [te-lo-ia] com toda a certeza aligeirado […], e não o teria escrito da mesma forma […] Contudo, isso teria sido um erro, uma fraqueza indigna de um verdadeiro escritor!.» Mesmo aqueles que rejeitam a ideia de uma escola literária judia, não negam que «um escritor não se demite da sua identidade» (Alain Finkielkraut). Última nota, para um testemunho de Maxim Biller, autor alemão, nascido em Praga (1960) de pais russos: «Como distingo o que, em mim, é judeu daquilo que depende só do meu carácter? A sociedade em que vivo, essa, sabe perfeitamente dar a resposta. Para ela, eu sou e permaneço um Judeu, quer o queira ou não, e isso faz mais de mim um Judeu do que aquilo que talvez exista de realmente judeu em mim - a hipocondria, o radical, o feminino – e que herdei do meu avô arménio.»

LER Março 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)