Romancista de origem judia ucraniana refugiada em Paris em 1919 e
falecida em Auschwitz em 1942, Irène Némirovsky é hoje uma lenda controversa.
Aclamada em vida, esquecida durante 60 anos e recuperada graças ao romance
inédito e inacabado Suite Francesa, há quem a acuse de
antisemitismo. Outros salientam a importância literária ou documental dos seus
livros.
A Relógio d’Água está a publicar-lhe a obra (quase) toda.
Em 2004, o Prix Renaudot, um dos mais importantes prémios
literários franceses, criado em 1926 e atribuído, entre outros, a Aragon,
Céline, Le Clézio ou Perec, destacou pela primeira vez uma obra póstuma. Suite
Francesa, incompleto roman fleuve que retrata as provações
dos franceses durante a ocupação alemã entre 1940 e 1941, havia sido escrita cerca
de sessenta anos antes pela judia ucraniana Irina Leonidovna Nemirovskaïa
(1903-1942), cuja vida fora romanesca e terminara de forma trágica.
Nascida e criada em Kiev (Ucrânia), filha única de um especulador
e banqueiro judeu (não-praticante) e educada por uma perceptora francesa, Irina
viveu em Paris entre os nove e os onze anos e a partir dos dezasseis, quando a
família ali se instalou definitivamente, em fuga às perseguições antissemitas e
às convulsões políticas na Rússia. Em criança, fala quatro línguas e aprende o
francês antes do russo. Licenciada em Letras pela Sorbonne, estreia-se,
sob o nom de plume de Irène Némirovsky, em 1927, com a
novela breve L’Enfant Prodige, e, em 1929, publica o romance David
Golder (recém-editado pela Relógio d’Água), o seu maior best
seller em vida. Seguem-se vários outros romances, todos escritos em
francês, acolhidos com relativo sucesso durante toda a década de 1930. Ao longo
deste tempo, Irène frequenta a burguesia rica de Paris, mantém distância para
com a comunidade de emigrados judeus russos e cultiva amizade quase apenas com
pessoas influentes de direita e até mesmo de extrema direita. Em 1938, quando
ela e o marido, o judeu russo Michel Epstein (engenheiro físico que se tornou
banqueiro), solicitam a nacionalidade francesa para si e para as duas filhas,
nascidas em França, não obtêm resposta, o que os lança na perigosa condição de
judeus, russos e apátridas. Em 1939, o casal converte-se ao catolicismo e
batiza as filhas. Em 1940, recusam fugir (para os EUA) pela fronteira de Andaia
e Irène escreve ao marechal Pétain (sem resposta), pedindo-lhe que «a distinga
dos indesejáveis», enquanto estrangeira «respeitável» (honorable) que é
e nomeando vários amigos influentes. Todavia, estes esforços para,
reconhecidamente, «quebrar os laços com um povo cuja estranha identidade sempre
[lh]e pareceu incompreensível», de nada servem.
Em 1940, Albin Michel (virá a ser tutor das órfãs da escritora)
edita o romance de inspiração autobiográfica no qual Némirovsky descreve os
judeus de Kiev, a sua feroz divisão por classes e a sua insistência, mesmo
perante o aumento da violência dos pogroms e raides cossacos,
em funcionarem entre si como cães e lobos. Os três protagonistas, depois
emigrados em Paris, vivem um triângulo amoroso sempre condicionado por aquelas
divisões originais. Os Cães e os Lobos (recém-publicado pela
Relógio d’Água) será a última ficção da escritora editada em vida, devido à
interdição aos judeus de editar ou receber direitos autorais entretanto
decretada. Note-se que o único editor que ainda publicará o seu trabalho é
Horace de Carbuccia, fundador da ostensivamente antissemita revista Gringoire,
onde ela passa a colaborar, sob pseudónimo (e até Fevereiro de 1942). Em 1941,
obrigada a usar a estrela amarela, a escritora instala-se com a família num
hotel modesto numa pequena vila de Issy-l’Evêque (região da Borgonha,
administrada pelos alemães), onde começa a escrever Suite Francesa.
Em Julho de 1942, com 39 anos de idade, é presa pela polícia francesa local,
logo enviada para o campo de trânsito nazi de Pithiviers e, dali, como «artista
judia degenerada», para o campo de concentração de Auschwitz, onde morre, um
mês depois, crê-se que vítima de tifo. O marido ainda escreve ao embaixador
alemão, argumentando: «[A]pesar de a minha mulher ter ascendência judia,
na sua obra, ela refere-se aos judeus sem qualquer tipo de afeição.» Capturado
em Novembro, é também enviado para Auschwitz, onde morre, logo à chegada, na
câmara de gás.
Contendo apenas duas das cinco partes previstas, o pequeno caderno
manuscrito da ficção Suite Francesa, repleto de uma letra minúscula
e febril, quase ilegível, e feito de mau papel desse tempo de penúria,
conservou-se, sempre em França, dentro de uma pequena mala que Michel havia
entregado à filha mais velha, Denise Epstein (n. 1929). Acompanhou-a enquanto
esta esteve escondida em colégios internos, com a irmã (Elizabeth Gilles,
1937-1996, autora de Mirador, biografia imaginária da sua mãe,
publicada em 1994), e, depois, durante 59 anos, até Denise arranjar coragem
para o transcrever, ler, depositar no arquivo IMEC e dar a
publicar. Em 2004, Suite Francesa torna-se um retumbante êxito
comercial e impulsiona a revelação ou reedição de todas as ficções de Némirovsky.
Ganha rápido destaque o romance de estreia, David Golder,
cujo protagonista homónimo é um ávido homem de finanças judeu originário do
gueto de Kiev e instalado em França. Já velho e após entrar em bancarrota com
um negócio na Califórnia, reconstitui parte da fortuna, apenas para satisfazer
os desejos de uma filha estouvada, cruel e promíscua. Num último estertor,
vêem-lhe à boca palavras em iídiche e há uma voz que o chama de regresso a
casa. Assim que ressurge, a personagem Golder, com muitas analogias com Père
Goriot, de Balzac, é lida por vários grupos judeus e por vários críticos como
uma criação profundamente antissemita, também comparável a Shylock, o agiota de O
Mercador de Veneza, de Shakespeare. Outros traços de antisemitismo são
depois apontados na obra de Némirovsky. Em 2008, o Musée d’Art et d’Histoire du
Judaisme parisiense recusa-se a exibir a exposição evocativa da escritora antes
produzida pelo Musem of Jewish Heritage de Nova Iorque e comissariada por
Olivier Philipponnat, co-autor da importante biografia La vie d’Irène
Némirovsky (a mostra será acolhida pelo Mémorial de la Shoah, em
2011). Sempre que ressuscitam pelo mundo fora (existem
traduções em 38 línguas), os livros de Irène continuam a suscitar polémica.
A dúvida é premente: até que ponto a carga emocional e a
complexidade da personalidade, da vida e da morte de Irène Némirovsky, um dos
75 mil judeus enviados da França para os campos nazis, influenciou, por
exemplo, a atribuição póstuma de um Renaudot e poderá ofuscar uma apreciação
crítica estritamente literária? O destino dos judeus na Europa no século XX, a
Shoá (significa «calamidade» em iídiche) ou Holocausto (de origem grega,
significa «sacrifício pelo fogo»), permanecem centrais na problemática mais
profunda e essencial da cultura europeia. O suicídio de Paul Celan, Primo Levi, Jean Améry, Stefan Zweig ou
Walter Benjamin ensombram para sempre a discussão sobre as potencialidades da
expressão artística. É inegável que a maior parte da força das ficções de
Némirovsky, tal como a maior parte das críticas que lhe são feitas, advém da
sua circunstanciação feita na atualidade. Em 1933, Irène escreveu
no diário: «Existem suficientes recordações
e poesia na minha vida para compor um romance.» De facto, poucas obras como a
dela se relacionam de forma tão indestrinçável com a biografia do seu autor.
A obra de Irène Némirovsky é determinada por uma tortuosa
busca de identidade, com origem na sua dificílima relação com a mãe, que sempre
a viu como uma rival. O pai estava quase sempre ausente em viagens de negócios
e Fanny Némirovsky, obcecada pela sua própria beleza e capacidade de sedução,
acumula amantes e humilha a filha desde pequena. No baile de debute desta,
apresenta-se como sua irmã. Proíbe-lhe a vocação de escritora (Irène só a
assume após o casamento). Quando ela engravida, insta-a a abortar, porque não
quer ser avó. Quando as netas a procuram após a guerra, em Nice, onde manteve
todos os privilégios (provavelmente à custa do desvio da herança paterna de
Irène), fecha-lhes a porta, alegando que o lugar delas é num orfanato. A
escritora dirá em 1937, à futura historiadora e escritora Dominique Desanti: «Detestar
uma ausência e não uma presença: é um ódio muito mais fácil de suportar.» No
entanto, o trauma da relação com a mãe projeta-se em todos os livros; sobretudo
e de forma magistral na novela tragicómica O Baile, de 1930,
terrível contra-conto-de-fadas, recém-publicado pela Relógio D’Água.
Irène demonstra também complexos e ambíguos sentimentos
quanto ao passado vivido na Ucrânia. Não nutre simpatia nem pelos judeus do shtetl,
nem pela burguesia russo-judia. As agitações pós-Revolução de 1917 levam-na a
fugir, com a mãe, de Kiev em direção a Paris, passando pela Finlândia e Suécia,
trajeto relatado no livro mais autobiográfico, O Vinho da Solidão (redigido
em 1934, dois anos após a morte do pai). Odiará para sempre o comunismo.
Entretanto, a sua adorada perceptora, Marie, suicidara-se, deixando-a órfã aos
catorze anos. Irène desejará para sempre ser adoptada em pleno direito pela
França. Até ao fim, lê mal os sinais à sua volta e duvida que possa ser
abandonada por esse país que tanto ama, onde o pai reconstruiu a fortuna (a
partir de uma sucursal do seu banco ucraniano) e onde, como judia assimilada,
atingira uma situação social de privilégio.
Helène, a protagonista de O Vinho da Solidão, exclama:
«Passei a vida a bater-me contra um sangue odioso, mas tenho-o cá dentro.
Corre-me no corpo. […] E se não aprender a vencer-me a mim mesma, este sangue,
acre e maldito, será mais forte do que eu...» Progressivamente, em permanente
ruptura com essa parte da sua herança, Irène Némirovsky divorcia-se da
judeicidade. O desenraizamento interior e exterior das personagens
torna-se o tema central. Até Suite Francesa (editado pela Dom
Quixote em 2005) os romances vão-se esvaziando de personagens judias. Num
movimento semelhante ao de muitos autores secularistas, a escritora rejeita a
religião e contrapõe-lhe o pragmatismo. Quer mostrar as pessoas-personagens como
elas são, nos seus contextos precisos, e aceita o preço desta atitude: «[T]emo
sobretudo a objecção dos próprios judeus: “Porquê falar de nós?”, perguntarão
eles, “Por acaso ignora a perseguição de que somos vítimas, o ódio que nos
persegue? Se falamos de nós, ao menos que seja só para glorificar as nossas
virtudes e carpir as nossas provações!” A isto, eu responderia que não existem
temas tabu em literatura. Por que há de um povo recusar-se a
ser visto tal como ele é, com as suas qualidades e os seus defeitos? Creio que
alguns judeus irão reconhecer-se nas minhas personagens. Provavelmente irão
desprezar-se? Mas eu sei que digo a verdade.» Os seus livros nascem de
anotações prévias e minuciosas do perfil completo e do percurso de cada
personagem. A David Golder e às figuras presas a formatos de
caricatura, sucede-se uma complexificação gradual dos retratos psicológicos.
Devido a um impregnado conservadorismo de direita, Irène convive
muito pouco com os artistas modernistas ou experimentais ou com os intelectuais
pós-dreyfusianos seus contemporâneos. Não se identifica com eles. Ainda que
procure descrever o seu tempo com fidelidade, o mundo da sua ficção é ainda
movido de forma cega pelo desejo e pelo impulso das personagens. Em Tchékov (a
quem dedica um ensaio biográfico), diz ter aprendido a escrever com acuidade,
mas também com distanciamento. Com Balzac, treina a sensibilidade. Em Tolstoi,
descobre a técnica de fazer sobressair o detalhe na massa e no movimento
indiferenciados, conferindo uma força poderosa ao painel por fim composto.
Némirovsky situa-se sem dúvida entre o romantismo e o realismo, o que se
confirma quando contrapõe a sua relação com a guerra enquanto escreve Suite
Francesa à atitude de Tolstoi perante os acontecimentos históricos
integrados em Guerra e Paz: «Ele estava-se nas tintas. Já eu, eu
trabalho sobre lava ardente. Seja qual for de nós que tem razão, acredito que o
que distingue a arte do nosso tempo da de outros, é que nós esculpimos o
imediato, trabalhamos sobre coisas em brasa. Pode ser questionável, claro, mas
é precisamente disto que a Arte de hoje em dia precisa.» Nas ficções de
Némirovsky, a realidade medíocre contrasta com o brilho e a sensibilidade da
prosa, habitada por um contraditório lirismo cru e por uma ironia devastadora.
Quando se associa Irène Némirovsky ao que se crê ser a literatura
judaica, convém deixar claro que esta denominação engloba variadíssimos
objetivos e formas (literatura bíblica, rabínica, ética, filosófica ou mística,
escrita nos idiomas judaicos, com temáticas relativas ao judaísmo ou produzida
por judeus) e é indissociável da questão judaica, isto é, da questão
do outro; de uma reflexão sobre as facetas de alteridade perante o outro,
perante si próprio ou perante as suas próprias projecções. Mais ou menos
determinada pela tradição religiosa ou por um judaísmo secular humanista, pelo
passado de sofrimento, exílio e diáspora, em resposta ao antisemitismo ou,
depois da Solução Final, pelo imperativo do testemunho, a literatura dita
judaica interroga a identidade, a origem e o sentimento de pertença a uma
comunidade. O denominador comum de todas as suas formas pode encontrar-se
nestas oposições binárias entre o mesmo e o outro e, neste sentido, como
salientou o filósofo político Leo Strauss, «o problema judeu é a ilustração
mais simples e a mais profunda do problema humano».
Depois, como explicar a um goyim (não-judeu) que
a identificação de alguém com uma herança de cultura judaica possa cimentar-se
desde a infância, por exemplo e entre muitos outros factores de pertença,
na trivialidade de anedotas pró-semitas ou antissemitas muitas vezes repetidas
nas reuniões familiares? Como esta, escatológica: dois judeus estão sentados
num banco de jardim e um diz para o outro: «Deste um pum» e o outro responde,
rápido: «Eu? Só se caiu». Ou esta: um goyim pergunta a um
judeu: «Porque é que vocês, judeus, estão sempre a questionar tudo?», e ele
retruca: «Porque é que tu achas isso?» Tal como melhor o exemplificou Sholem
Aleichem (1859-1916, autor dos contos que inspiraram o libreto de Um
Violino no Telhado), figura de proa da literatura iídiche, o humor judaico
é uma combinação única de espírito de resistência e de tendência
auto-depreciativa. Trágico, nasce tanto do riso como do choro, da reflexão e da
autocrítica (Victor Malka, Lire 2008). Criadas e
transmitidas de judeu para judeu, as anedotas judaicas são in-jokes que,
em boa parte, exploram quase pateticamente estereótipos negativos atribuídos
durante séculos pelos gentios aos judeus e relativos a características físicas
(físico enfezado, rosto doente, nariz curvo, avantajado e rubicundo) ou
psicológicas e de carácter (histeria, neurastenia, avareza, cobiça, ambição,
inteligência perversa ou intrujice). O sujeito constitui-se, ele mesmo, em
matéria risível porque procura entender, responder e resistir a um mundo que o
caricatura e que o rejeita. O riso é, assim, uma arma contra o destino. A
ironia judaica é amarga e dolorosa, mas exorcizante. Nela, como Milan Kundera
assinalou, «o homem pensa[-se] e Deus ri[-se]».
Se a situarmos num contexto de prevalência da questão da identidade
e da alteridade, como forçosamente o temos que fazer, por exemplo, em relação a
Spinoza, a obra de Irène Némirovsky poderá ser melhor entendida. A escritora e
crítica Carmen Callil, uma das suas mais acérrimas defensoras contra as
acusações de antisemitismo, argumenta: «Isso apenas é motivo de discussão
porque a nossa cultura está hoje impregnada de politicamente correto. Ela não
tinha aversão aos judeus. Ela tinha aversão a alguns judeus. O que faz toda a
diferença.» Irène vê e refere os judeus como outros a/em si mesma.
No que escreve, é fiel ao que sente. Não imagina, nem poderia imaginar, o que o
futuro lhe reserva. Como as personagens de Suite Francesa, ela
caminha, de forma inconsciente, para a catástrofe. Numa entrevista, em 1935,
deixa dito: «Se já existisse Hitler nessa altura [em que escreveu David
Golder], eu [te-lo-ia] com toda a certeza aligeirado […], e não
o teria escrito da mesma forma […] Contudo, isso teria sido um erro, uma
fraqueza indigna de um verdadeiro escritor!.» Mesmo aqueles que rejeitam a
ideia de uma escola literária judia, não negam que «um escritor não
se demite da sua identidade» (Alain Finkielkraut). Última nota, para um
testemunho de Maxim Biller, autor alemão, nascido em Praga (1960) de pais
russos: «Como distingo o que, em mim, é judeu daquilo que depende só do meu
carácter? A sociedade em que vivo, essa, sabe perfeitamente dar a resposta.
Para ela, eu sou e permaneço um Judeu, quer o queira ou não, e isso faz mais de
mim um Judeu do que aquilo que talvez exista de realmente judeu em mim - a
hipocondria, o radical, o feminino – e que herdei do meu avô arménio.»
LER Março 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)