Uma estrela a quatro dimensões colapsou para um buraco negro a três dimensões e
fê-lo expelir as entranhas? Esta é a mais recente especulação sobre a proto-história
do nosso universo. Sabia que a singularidade da teoria do big bang está a passar de moda?
Deitados de costas no terraço, numa noite
especialmente estrelada. Diz o miúdo: «Ó mãe, o céu tem fim?» Resposta: «Não
sabemos.» Longa pausa. E, de novo, o miúdo: «Nenhum animal sabe? Nem os cães?»
Resposta: «Não, nenhum sabe.» Pausa ainda mais longa. «Era mesmo bom se soubéssemos...»
A mãe não resiste, e pergunta: «Então, e para quê?» E, ele, muito sério: «Olha,
para depois contarmos aos cães!»
Em 1981, no prefácio a Um Pouco Mais de Azul, um dos mais
criativos, acessíveis e poéticos livros de divulgação científica sobre a história
do universo, o astrofísico Hubert Reeves foi cabal. «O universo ultrapassa-nos
desmedidamente. Em todos os planos. Não devemos portanto fazer cerimónia. A
aproximação mais frutuosa é por vezes a mais infantil — o que não quer dizer a
mais acriançada.» Tinha razão. Passaram-se 98 anos sobre a publicação da teoria
da Relatividade Geral, de Einstein, uma das bases para a formulação da teoria do big bang. Sabemos hoje bastante mais sobre
o que se terá passado depois daquela explosão que há cerca de 15 mil milhões de
anos expeliu todo o espaço e toda a matéria. A nossa Galáxia é composta por
mais de mil milhões de estrelas dispersas. Juntas, elas formam um disco com cem
mil anos-luz de diâmetro e cinco mil anos-luz de espessura. A mais velha imagem
do universo, captada em 1992 pelo satélite Cobe da Nasa, mostra uma radiação
fóssil emitida 300 mil anos após o big
bang.
Mas, e antes do big bang? Entre nós e esse antes,
está o muro do tempo zero. «Olhando
para “longe”, vemos o “cedo”.» Para lá, haverá só mesmo dragões e imaginação
delirante?
A mais recente teoria sobre a
pré-história da origem do universo foi proposta em meados de Setembro último. O
paper intitula-se «Out of the White
Hole: A Holographic Origin For the Big Bang». Foi escrito por Razieh Pourhasan,
Niayesh Afshordi e Robert B. Mann, do departamento de Física e Astronomia da
Universidade de Waterloo e do inovador Instituto Perimeter de Física Teórica,
Ontário, Canadá. Está em apreciação pelo JCAP (Journal of Cosmology and Astroparticle Physics) e acessível no site
da Cornell University Library. É um desenvolvimento do modelo de gravidade DGP
(2000, físicos Gia Dvali, Gregory Gabadadze e Massimo Porrati). Segundo este, o
nosso universo a três dimensões (3D) encontra-se suspenso como uma espécie de
membrana (ou p-brana) de um universo maior, com quatro dimensões (4D)
espaciais.
Vamos por partes. Primeiro, o básico sobre
a informação espacio-temporal. Os sentidos humanos só são capazes de
percepcionar três dimensões longas e compridas de espaço (esquerda-direita;
cima-baixo; frente-trás – latitude, altitude e longitude). Estas são as 3D da
nossa experiência comum, verificáveis por experiência direta. A elas, Einstein
juntou uma quarta dimensão, de tempo (futuro-passado). Em 1919, numa carta
enviada ao próprio Einstein, o matemático polaco Theodor Kaluza fez uma
sugestão curiosa. O tecido espacial poderia ter uma quarta dimensão, esta de
espaço: estendida e enrolada. Porque esta dimensão é circular e
(impossivelmente) minúscula («semelhante aos pequenos laços circulares de fio
que constituem a espessura de uma carpete muito bem tecida», Brian Greene), não
é detectável nem pelos instrumentos mais sofisticados. Ainda que seja
impossível visualizar-se o que vem a seguir, passemos à etapa seguinte.
A recente proposta dos três
astrofísicos é de uma audácia (ou alucinação) inusitada. O tal universo maior conteria estrelas a 4D. Após
explodirem, as camadas internas dessas estrelas colapsam e formam buracos
negros 4D. Então, estes buracos negros ejectam detritos das camadas exteriores
— o comportamento assemelha-se ao ciclo de vida das estrelas massivas 3D que,
no nosso universo, sofrem colapsos gravitacionais pelo esgotamento da reserva
de hidrogénio e explodem como supernovas, enquanto as camadas internas se
transformam em buracos negros.
E, agora, atenção para o mais
importante: o universo em que vivemos poderá advir de detritos ejectados após a
implosão de uma dessas estrelas 4D para um buraco negro. Assim, o nosso
universo pode ser como uma película 3D composta por aqueles detritos. Formou-se em redor da
superfície-limite-fronteira 3D (o chamado horizonte
de eventos, que separa o que está dentro e o que está fora) em expansão desse
buraco negro. E é por ser resultante de um universo 4D que o nosso universo
estranhamente possui uma temperatura mais ou menos uniforme. Suposição
revolucionária? Ficção científica? Puro delírio? Talvez sim. Talvez não.
Em poucos dias, esta proposta dos
astrofísicos Pourhasan, Afshordi e Mann fez que se escrevessem artigos em todo
o mundo. Entusiasmou sobretudo os leigos, já que os especialistas, esses, a
encaram genericamente como apenas mais uma especulação. Explica o físico,
professor universário, divulgador e ensaísta Carlos Fiolhais: «Um buraco negro
a quatro dimensões a colapsar para um big
bang a três dimensões do nosso
universo? Se é verdade, provavelmente nunca o saberemos. O big bang é o fim da nossa Física; não sabemos e provavelmente nunca
saberemos o que estava antes, por ser impossível obter informação. Mas é
interessante e até divertido especular: o nosso big bang é um buraco branco
(fonte de matéria e energia) que seria o outro lado de um buraco negro,
perdendo-se uma dimensão nesta passagem pelo túnel do tempo.»
Num episódio recente da série Horizon da BBC, intitulado The Ultimate Guide to Black Holes, perguntou-se
a vários cientistas e divulgadores: De que são feitos os buracos negros? Todos
ficaram, hilariantemente, sem palavras... menos Ramesh Narayan, do
Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, que disse, sem rodeios: «Amo os
buracos negros porque não os compreendo.»
Nas últimas três décadas, ou seja,
desde a formulação da teoria da inflação
cósmica, nenhuma das propostas vindas da Astrofísica, da Astronomia, da
Cosmologia, da Física Teórica ou da Mecânica Quântica constituiu um progresso ou
um contributo revolucionário na física fundamental. Isto não exclui que, como
Jorge Buescu defende em relação à Matemática (em Casamentos e outros Desencontros), não representem «uma intensa aventura intelectual, com os seus altos
e baixos, momentos de desânimo e descobertas, frustrações e epifanias». É por
isso muito pouco defensável que qualquer cidadão do século XXI que se diga
informado olhe para as novidades científicas como algo reduzido ao absurdo por
mera ignorância própria. E que
não procure conhecer os princípios básicos, a evolução e os contributos de cada
uma das disciplinas.
Para o leitor exclusivo de livros em
português, a coleção «Ciência Aberta» da Gradiva é (quase) o único antídoto
contra a ignorância nestas matérias (pertencem-lhe todos os títulos aqui referidos).
Criada há 31 anos por Guilherme Valente e com mais de 200 títulos, é hoje
dirigida por Carlos Fiolhais. É ele que define o futuro da coleção: «Procurarei
trazer as últimas novidades do cosmos, contadas em primeira mão pelos melhores
cientistas e escritores. E desejo que apareçam cientistas portugueses com
talento para a escrita. Nestes trinta anos a ciência teve uma espécie de big bang entre nós, havendo hoje
investigadores nacionais de muito mérito de quem aguardamos a escrita.» Fica
feito o convite.
Regressemos àquelas novidades muito
lisonjeiras para o papel desempenhado por um buraco negro antes do primeiro
milésimo de segundo do nosso universo. Ou seja, antes do big bang. A hipótese corresponde ao fim da física e da cosmologia ou
marca uma nova concepção da ciência? Eis a questão.
Para início de viagem, Albert Einstein
e Leopold Infeld aconselham-nos, em A
Evolução da Física: «O grande romance policial do universo está ainda sem
solução. E nem sequer podemos afirmar que comporte uma solução. A sua leitura
já nos deu muito; ensinou-nos os rudimentos da língua da natureza;
habilitou-nos a apreendermos numerosos fios da meada e tem sido uma fonte de
excitação e deleite na difícil marcha da ciência [...] o cientista que lê o
livro da natureza tem de achar a solução por si mesmo; não pode, como o
impaciente leitor de novelas, saltar as páginas para ver o desfecho.» No
entanto, é preciso aceitarmos que, se seguir apenas uma estratégia metódica, o
físico moderno desemboca num beco sem saída... a uma distância gigantesca da
idade de ouro da física (segunda metade do séc. XIX), quando o universo se
apresentava ainda como eterno e praticamente imutável.
Em Big
Bang: A descoberta científica mais importante de todos os tempos e porque
precisa de a conhecer (2004), Simon Singh (doutorado em física de
partículas, ex-produtor da BBC e divulgador importante) abriu-nos o caminho.
Ali, percebermos de uma forma extremamente acessível a história das ideias,
técnicas, observações e evidências científicas sobre a origem e evolução do Universo
até ao modelo do big bang, cenário
cosmológico padrão e paradigma científico ainda dominante. No final de cada um
dos cinco capítulos, somos até presenteados com esquemas de sistematização da
matéria dada. Mas, Singh coloca-nos no nosso devido lugar, lá para o epílogo:
«A verdade é que, embora exista vida na Terra há alguns milhares de milhões de
anos, a espécie humana tem escassas centenas de milhares de anos de idade. Para
dar uma ideia mais concreta, se representarmos a história do universo por uma
linha que vá de uma mão à outra de uma pessoa com os braços abertos, a história
da humanidade seria ínfima ao ponto de se poder apagá-la com uma única passagem
de uma lima de unhas.»
Numa tira de banda desenhada de Bill
Watterson, Calvin diz a Hobbes, referindo-se aos defensores da teoria do big bang: «São um punhado de empiristas
a tentar descrever coisas inimaginavelmente fabulosas.» Será um exagero, claro,
porque este modelo cosmológico deriva de experiências de laboratório e
observações do cosmos, de provas concretas. Mas os limites da sua validade
evidenciam-se quanto mais se torna indecifrável o problema da singularidade inicial. Os adeptos do big bang procuram explicar como o cosmos
evoluiu a partir de um estado (ou região) inicial, quente, denso e compacto.
Mas, e antes? E antes?
No final da equação, Einstein
desembocou no infinito. Sabemos hoje que toda a massa de um buraco negro está
contida num ponto infinitamente pequeno, sem qualquer espaço e com densidade e
gravidade infinitas. Este ponto chama-se singularidade
e será um estado não-físico, ou seja, pré-espaço-tempo.
Foi o que encontrámos à medida que nos movemos para trás até ao big bang. O estado inicial de densidade
e temperatura infinitas não pode ser matematicamente tratado, como bem nos
explica o cosmólogo e poeta brasileiro Orfeu Bertolami (um dos poucos físicos a
trabalhar na teoria da relatividade geral e do campo unificado em Portugal) no
seu O Livro das Escolhas Cósmicas
(2006).
Uma temperatura
pré-big bang na ordem dos cem triliões
de triliões de graus e um universo milhões e milhões de vezes menor do que um
átomo no instante 10-43 segundos após o big
bang: eis o chamado «muro de Planck», «a fronteira imposta à nossa marcha
de exploração do universo antigo» (H. Reeves, Crónica dos Átomos e das Galáxias, 2007). Eis a noz, o busílis
embaraçoso perante o qual a física dobra os joelhos.
«Não se pode imaginar um começo a
partir do nada. Os cientistas deviam refletir no problema lógico que se põe
quando discutem», defendeu Edgar Morin. A relatividade de Einstein revelou-se incompatível
com a mecânica quântica (para saber o essencial sobre a teoria de supercordas, leia-se O Universo Elegante, de Brian Greene, de
1999, revisto em 2003). O estudo do infinitamente grande colidiu com o estudo
do infinitesimalmente pequeno e provocou um colapso parcial das duas teorias. O
modelo do big bang pode ser válido,
mas está incompleto. Corremos o risco de regressar à escolha entre a génesis e a eternidade. Como refere Simon Singh, estamos embrulhados num dilema
já identificado por Santo Agostinho no séc. IV: «Que fez Deus antes de criar o
universo? Antes de criar os Céus e a Terra, criou o Inferno para quem faz
perguntas como essa.»
Lee Smolin, físico teórico, também com
formação em filosofia, assegura-nos que nas duas últimas décadas mais não
fizemos no campo experimental do que «descobrirmos que os neutrinos têm massa e
que o universo é dominado por uma energia escura misteriosa que parece estar a
acelerar a sua expansão». Quanto a um maior conhecimento das leis da natureza:
nada, nenhum progresso real. Trata-se de uma declaração de guerra à teoria das cordas e, compreensivelmente, o ensaio
chama-se O Romper das Cordas: Ascensão e
queda de uma teoria e o futuro da física (2006).
Smolin garante-nos que, afinal, a
grande esperança da física nos últimos anos nem sequer é uma teoria, «mas sim
uma imensa compilação de cálculos aproximados» e de conjeturas. A teoria das cordas nunca foi realmente escrita, não
possui princípios fundamentais e implica o uso de uma linguagem por inventar.
Mais, ela cinde a comunidade científica e ata as mãos dos investigadores mais
céticos («tem uma posição de tal forma dominante nas instituições académicas
que, se um jovem físico teórico não escolher esse campo, está praticamente a
desistir da sua carreira»). No limite, está comprometido o futuro da física
teórica. De acordo com Smolin, perante uma total impossibilidade de teste, temos
de aceitar a necessidade de correr riscos. A ciência tem de se abrir a formas
não-pragmáticas. E inaugurar uma era pós-cordas.
Michio Kaku é o autor do indispensável
ensaio de divulgação O Cosmos de Einstein
(2005), no qual explica a relatividade restrita e geral e as aspirações do
criador de E = mc2 a uma teoria física unificada. No
documentário acima referido, Kaku suspira e diz: «Algo está radicalmente
errado. A natureza é mais esperta do que nós.» Então, se não podes vencê-la,
junta-te a ela. A opção parece infantil, mas tem cada vez mais adeptos. Robert
B. Laughlin (Prémio Nobel da Física, colectivo, em 1998), assume-se um deles,
em Um Universo Diferente: Reinventar a
Física na Era da Emergência (2005).
«Poderíamos chamar a esta tese o fim do
reducionismo (a crença de que as coisas são necessariamente clarificadas quando
divididas em componentes mais pequenas), mas isso não seria absolutamente
correto. […] O que desejo não é impugnar o reducionismo, mas sim pô-lo no seu
lugar no grande esquema das coisas.» Temos obrigatoriamente que retroceder para
não ficarmos encurralados em teorias exclusivamente matemáticas e que não podem
ser verificadas experimentalmente. Segundo Laughlin, é urgente concentrarmo-nos
de novo nos fenómenos organizativos da natureza (como as condições
meteorológicas). Gerais e poderosos, o seu carácter primitivo «demonstra que
são certamente controlados por leis microscópicas, mas também, paradoxalmente,
que alguns dos seus aspectos mais sofisticados são insensíveis aos pormenores
dessas leis». Aceitando a superioridade da natureza, poderemos ditar o fim do poder
absoluto da matemática. Em vez de nos acharmos mestres do universo através da
microscopia, admitiremos a impossibilidade de compreender tudo e acolheremos em
grande o universo como nosso mestre. Pelo caminho, talvez até se una a ciência
à poesia.
E por que não admitir-se nas matérias
científicas um lugar para o lirismo, para um universo imperfeito, assimétrico e
acidental (ler Criação Imperfeita, do
físico teórico brasileiro Marcelo Gleiser, Temas e Debates, 2010) ou para as
hipóteses mais especulativas? O universo em que vivemos poderá advir de
detritos ejectados após a implosão de uma dessas estrelas 4D para um buraco
negro? Talvez sim. Talvez não. «Por vezes, as sugestões que parecem patetas,
são mesmo simplesmente patetas. Outras vezes, abalam as fundações da física»,
defende Brian Greene.
Somos em parte pó de estrelas. Não
tememos quando olhamos o céu estrelado. Se calhar, é porque ao longe nos reconhecemos. Somos capazes da
confirmação experimental e da demonstração matemática mais inimagináveis, mas
todas elas ficam muito para lá do poder da imaginação. Somos criaturas cósmicas
que se encontram hoje como no poema Quase de Mário
de Sá-Carneiro, na origem do título português do ensaio de Hubert Reeves: «Um
pouco mais de sol - eu era brasa. / Um pouco mais de azul - eu era além. / Para
atingir, faltou-me um golpe de asa... / Se ao menos eu permanecesse aquém...»
LER / Dezembro 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)