Ao comemorar 50 anos de carreira, Joyce Carol permanece um
dos mais prolíficos, complexos e imprevisíveis grandes autores norte-americanos
contemporâneos. Também um dos mais atacados pela crítica e mais desafiantes
para o leitor. Joyce Carol Oates (JCO) diz-se próxima de Henri David
Thoreau, que vivia para a literatura e
era, ao mesmo tempo, extremamente idealista, um amigo leal (de Ralph Waldo
Emerson, entre outros) e um muito estimável homem de família e de Nietzsche,
um demolidor da hipocrisia e das capas da
civilização, um brilhante psicologista e escritor*. Com ambos os autores, partilha
uma visão muito cética sobre o mundo,
a principal marca da sua obra, vasta, tocando todos os géneros e um conjunto de
conhecimentos, interesses e temas extremamente eclético: dos conflitos raciais
e de classe aos crimes sexuais, às disfunções e às sagas familiares (dos
Walpole, dos Vogels, dos Bellefleur, dos Stevicks, dos Bartletts ou dos Mulvaneys)
e às vivências femininas (destaque para Marya,
Uma Vida), dos serial killers à
pobreza nos meios rurais ou nos guetos negros, dos gangues adolescentes aos dos
motociclistas e às sororities académicas,
da Grande Depressão e do Holocausto às questões ambientais, do boxe à escultura,
à patinagem no gelo ou à cirurgia cerebral, sobre política, religião, medicina,
justiça ou desporto, do universo do thriller
aos do romance gótico, de mistério ou de terror (estes últimos também sob o
pseudónimo de Rosamond Smith ou Lauren Kelly). Segundo o crítico literário
Henry Louis Gates Jr.: «Desde há anos, Oates confessa a ambição de que a sua
obra contenha todo um universo – uma ambição que qualificou de risivelmente Balzaquiana. […] Hoje,
ninguém se ri disso. […] Um futuro arqueólogo equipado apenas com a sua obra conseguiria reconstituir, peça por
peça, a América do Pós-Guerra.» Elemento sempre presente: a violência, sob
todas as suas formas, o que pode significar quase uma ofensa por parte de uma
mulher escritora. «A felicidade é
pregada como uma norma cultural, para que tudo o que dela se desvie, mesmo que
de modo justificado e inelutável, suscite não só pena, mas também reprovação. Mais
do que para os escritores homens, esta atitude dirige-se contra as mulheres
escritoras, porque existe uma violação de uma regra não escrita no próprio
facto de uma mulher escrever – ou seja, pensar.» (JCO, em «Why is your writing
so violent?», The New York Times, 29
Março de 1981)
Joyce Carol Oates nasceu em 1938, numa quinta na pequena
comunidade rural de Millesport, a norte da cidade de Bufallo, estado de Nova Iorque.
Filha de um designer de objetos em metal e de uma doméstica com ascendência húngara,
irmã mais velha de um rapaz e de uma rapariga (Lynn Ann, autista profunda;
serviu com certeza de inspiração para o conto magistral sobre o autismo, «Quarta-Feira»,
incluído na antologia Casamentos e
Infidelidades, Bertrand, 1984), cresceu também na companhia da avó paterna,
Blanche, cujas biografia e ascendência judaica serviram de base para o romance A Filha do Coveiro (JCO diz não
conseguir lê-lo, sem ficar com os olhos
cheios de lágrimas!). Foi Grace quem lhe ofereceu As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho (os primeiros livros e mais duradoura
influência literária), e, aos 14 anos, a primeira máquina de escrever, graças à
qual a adolescente encheu páginas e páginas de ficções que foi empilhando e
deitando fora. até que, aos 25 anos, se decidiu a publicar. Como já a sua mãe o
fizera, Joyce estudou na pequena sala de aulas da comunidade, dirigida por uma
professora «heroica, uma espécie de amazonas». Depois, tornou-se o primeiro
elemento da família a completar o liceu e uma licenciatura (na Universidade de
Wisconsin). Há 50 anos, estreou-se como escritora, com o livro de contos By the North Gate. Na sua obra futura,
permaneceriam sempre latentes as memórias familiares e a infância (pobre, mas feliz; a minha escrita teria sido completamente diferente, se eu tivesse uma
origem urbana ou de classe média-alta) e a vivência, durante 16 anos, na dura
cidade de Detroit, apelidada, nos anos 60, de Capital Mundial do Automóvel ou Cidade
do Crime, USA («alegoria virtual da experiência americana», «meu grande tema, [Detroit] fez de mim a
pessoa, logo, a escritora, que sou – para o melhor e para o pior»).
À LER, numa entrevista por email, Joyce Carol Oates afirma: Não penso na escrita como um trabalho, mas
como um jogo e um desafio. Até hoje, publicou 40 romances em nome próprio,
oito como Rosamond Smith, três como Lauren Kelly, 11 novelas, 36 antologias de
contos, 14 livros de ensaio, nove de teatro, nove infanto-juvenis e oito de
poesia. Nenhuma abordagem séria a este universo literário poderá ignorar os
espantosos volume, velocidade e diversidade de produção de JCO. Por isso, cada
novo livro é um tormento para os críticos, virtualmente incapazes de o situar
com conhecimento de causa no conjunto da obra (ela própria confessa nunca reler
na íntegra os seus livros anteriores, apenas
alguns excertos). Updike (como Norman Mailer ou Richard Ford, por exemplo) admirava-a
profundamente e apelidou-a de «verdadeira mulher das letras». Muitos
consideram-na uma séria candidata ao Nobel. Mas, devido à sua quase sobrenatural
vertigem criativa, Carol Oates poderá ficar, erradamente, na história da
literatura americana, apenas como uma
Super-Escritora. Na Universidade de Siracusa, depositou já parte de um espólio
composto por milhares de páginas inéditas. Aos 74 anos, continua a retirar
prazer da escrita? Sim, claro. Se não,
por que escreveria?
Todos os dias faz jogging.
E escreve, à mão, durante pelo menos seis horas. Explica: Na verdade, escrevo bastante devagar e estou constantemente a rever o
que escrevo. Mas trabalho muitas horas por dia, logo, ganhei fama de escrever
muito rápido. Na verdade, escrevo sempre que
posso – de manhã, à tarde e à noite. Mas, a maior parte das vezes, à noite, eu
e o meu marido relaxamos, a ler ou a ver bons filmes. Joyce esteve casada
durante 46 anos com o professor de literatura setecentista Raymond J. Smith (de
1961, quando se conheceram na Universidade do Wisconsin, até à morte de
Raymond, em 2008, vítima de pneumonia), com quem fundou e dirigiu a revista
literária The Ontario Review e a
editora independente Ontario Review Books.
No ano da morte do marido, publicou uma memória desse luto quase suicidário (A Widow’s Story) e afirmou: «A minha
vida é a minha vida como mulher.» Hoje, revela: De repente, confrontei-me com as limitações da “vida de escritor”: a
difícil realidade da solidão e do isolamento, o luto pelo meu marido, o
quotidiano solitário. Nada numa vida de escritor pode compensar a vida doméstica
e emocional – todos o sabemos. Mas, às vezes, é preciso um choque para nos
apercebermos daquilo que está mesmo em frente do nosso nariz. Ainda em
2008, a escritora conheceu Charles Gross, professor no departamento de
Psicologia e Neurociência do Instituto de Princeton, e casou com ele no início
de 2009. Socialmente, afirma ser tímida. Em termos físicos, é habitualmente
descrita como muito atraente e graciosa, mas pouco fotogénica. Também a nível
afetivo e familiar, e na senda de Thoreau, Joyce Carol Oates possui uma
personalidade singular.
Desde 1978 que dá aulas no Programa de Escrita Criativa da
Universidade de Princeton (incentivou o aluno de Filosofia Jonathan Safran Foer
a escrever ficção e orientou a tese que resultaria no seu primeiro romance, Está Tudo Iluminado). Mantém há 17 anos
o site oficial Celestial Timepiece,
atualiza quase diariamente um blogue (Crossing
the Border) e uma página no Facebook e é ativíssima no Twitter. Escreve e
publica três a quatro livros por ano, entre romance, contos, novelas, ensaio,
crítica, poesia e peças de teatro. Só em 2012, fez sair o romance Mudwoman, as novelas The Rescuer e Patricide, a antologia de contos Black Dahlia & White Rose e a ficção juvenil Two or Three Things I Forgot to Tell You.
Em 2013, sairão, em Março, o romance Daddy
Love, depois, a novela The Accursed (última
da série gótica The Crosswick Horror),
em Setembro, a antologia de novelas Evil
Eye: Four Novellas of Love Gone e, no final do ano, o romance Vicissitudes of Time Travel. Em Janeiro
de 2014, será editado o romance Carthage,
também já escrito e finalizado. Entretanto, Carol Oates confidencia à LER o que
está a escrever neste momento e publicará também em 2014: Estou a fazer pesquisa para um pequeno romance de mistério/suspense
psicológico, baseado (não literalmente, mas em boa parte) no famoso caso Tawana
Brawley, ocorrido em 1987, a norte do estado de Nova Iorque [Tawana
Brawley, afroamericana de 15 anos de idade, acusou falsamente de violação seis
homens brancos; o caso gerou uma acesa polémica nacional em torno de questões
raciais]. Chama-se Sacrifice e imagino-o como uma espécie de composição
musical — uma peça trágica, a várias vozes. Em termos políticos, irá de certeza
provocar uma boa dose de críticas... E eu irei aceitá-las, como uma consequência
natural do tipo de escrita que faço.
Em 1987, numa crítica ao romance You Must Remember This, Updike defendeu: «[JCO] recebeu algumas das
mais violentas tareias alguma vez ministradas [pela crítica] a um talento de
exceção». Note-se que, com uma obra tão prolífica, e apesar de ter recebido inúmeros
graus honoríficos e prémios de menor expressão (destaque para 36 indicações de
Livro do Ano pelo New York Times) e
de ter estado dez vezes entre os finalistas do IMPAC, cinco do National Book
Award, três do National Book Critic Circle e três do Pulitzer, Carol Oates
recebeu poucos prémios com maior expressão: um National Book Award, para Them, em 1970, um Femina, para The Falls, em 2005, e os prémios de
carreira National Humanities Medal 2010 e Stone Award e PEN Center USA 2012. Hoje,
esclarece que, como a maioria dos
escritores, aprendeu a ignorar a crítica negativa: não é difícil, sobretudo quando esta é motivada pela inveja &
raiva e não por um julgamento literário. Alguma vez aprendeu algo sobre a
sua obra a partir de uma crítica? Provavelmente,
não.
Desde sempre, tudo o que Joyce Carol Oates escreve suscita,
em simultâneo, os entusiasmos mais efusivos e as críticas mais virulentas. A única
exceção surgiu logo no início da carreira, em 1966, com aquela que se mantém a sua
ficção mais aclamada: «Where are you going, where have you been», sobre Connie,
uma rapariga de 15 anos que abandona a casa dos pais, seduzida e ameaçada por
um homem adulto, personagem inspirada no serial
killer Charles Schmid. Escrito após a autora ter escutado a canção It’s All Over Now, Baby Blue, de Bob
Dylan, este pequeno conto enigmático, dedicado ao cantor e adaptado ao cinema
em 1985, pode ser lido no site Celestial Timepeace. É a porta de entrada ideal
no universo de JCO, pouco (re)conhecido em Portugal, apesar da publicação, em
2008, do excelente livro de ensaio A Fé
de um Escritor: Vida, Técnica, Arte
(Casa da Letras), da edição recente, pela Sextante, dos romances Rapariga Branca, Rapariga Negra e A Filha do Coveiro, e da edição
anterior, dispersa e talvez já pouco disponível, de alguns dos romances mais
emblemáticos: O Boxe (Edições 70), Eles (Civilização), Marya, uma Vida (Círculo de Leitores), Raposas de Fogo: Confissão de um Gang de Raparigas (Círculo de
Leitores) e, sobretudo, Blonde (Ed.
Notícias/C
írculo
de Leitores , 2001), a
autobiografia ficcionada de Norma Jeane Baker, vulgo Marylin Monroe, para
muitos a obra maior da escritora - ela destaca-o como o seu romance mais ambicioso, comparável em termos de
complexidade apenas a Mudwoman e ao
futuro The Accursed.
Mas qual é, afinal, o tipo
de escrita que Joyce Carol Oates produz com alucinante vigor e tenacidade e
é sempre recebido com opiniões tão divergentes? Nas suas palavras, «complexas e
formais proposições sobre a natureza da personalidade [humana] e a sua relação
com uma cultura específica (a América contemporânea)». Uma cr
ónica realista
daquele país e das suas formas de violência mais insidiosas. Um retrato cru da
psicologia humana, as personagens em luta, divididas entre as adversidades do
meio exterior e as energias internas mais primitivas e, em muitos casos,
grotescas. Tudo apresentado com um «instintivo sentido da forma» (Greg Johnson),
muitas vezes emoldurado por aquilo a que alguns chamam o gótico pós-modernista
e salpicado com pós feministas e muitos elementos autobiográficos ou inspirados
em pessoas e histórias reais. Como as góticas sulistas Flannery O’Connor e
Carson McCullers, JCO compõe a sua visão sobre o mundo real com uma ironia tão sarcástica
que ele se torna intransigentemente trágico e quase da ordem do fantástico. Este
realismo desconcertante e claustrofóbico, sem uma gota de moralismo, é alimentado
por personagens tão verdadeiras na exibição dos seus instintos mais negativos e
dos seus defeitos que chegam a ser repelentes. Pergunto-lhe se acha necessário sentir
compaixão pelas personagens, de modo a abranger toda a sua complexidade. Responde:
Os escritores, como os dramaturgos,
tendem a ser naturalmente compassivos/empáticos. Eu estou sempre a identificar-me
com as personagens, mesmo com aquelas que
os leitores provavelmente detestarão. Somos todos humanos — mesmo aqueles que
se comportam desumanamente!
Regressamos ao tema recorrente da violência, que Carol Oates
odeia explicar. Insiste em que a questão é colocada com maior frequência às
mulheres escritoras e, por isso, considera-a «insultuosa», «ignorante» e «sexista».
Questões de género à parte, clarificou um dia que, habitualmente, a sua escrita
«não é violenta de forma explícita», mas que, antes, se refere, sempre, «ao fenómeno
da violência, de um modo não muito diferente do que o faziam os dramaturgos
gregos». A escrita é sempre uma linguagem, ou seja, é «mais sobre uma linguagem
do que sobre um tema». No caso da linguagem de JCO, talvez derive da atração da
escritora por uma «sensibilidade gótica», «que cultiva uma paisagem surreal,
muitas vezes da ordem do sonho, para dramatizar emoções básicas como o medo; o gótico moderno (ou, como Bradford Morrow
e Patrick MacGrath o cunharam, na sua excelente antologia, O Novo Gótico) tende a focar-se nos estados de espírito internos;
por exemplo, ali não existem monstros em cartoon»
(HorrorOnline, Setembro 1999). A
realidade da violência é, neste sentido, apresentada como um constituinte
interno e essencial de todas as personagens verdadeiras
e humanas. A raiva, a violência e o
horror fazem parte da vida. E a vida deve ser descrita com fidelidade, logo,
com ceticismo e através «do poder único do inconsciente». Em 50 anos de
carreira, Joyce Carol Oates não se desviou um milímetro do programa estético
que verbalizou em 1982: «O meu método sempre foi o de combinar o mundo naturalista com o método de expressão simbólico, por isso escrevo sempre - ou
habitualmente – sobre pessoas reais numa sociedade real, ainda que os meios de
expressão sejam naturalistas, surrealistas ou paródicos. Foi assim que, pelo
menos para minha própria satisfação, resolvi o velho problema: devemos ser fiéis
ao mundo real, ou à nossa imaginação?»
Talvez, no fundo, procure, afinal, criar um mundo como o de Alice de Lewis
Carroll, na sua «maravilhosa combinação de ilógica e humor e horror e justiça»
(JCO à Paris Review nº72).
* Todas
as declarações de JCO à LER foram grafadas em itálico, para que se distingam de
citações da escritora com outras origens.
LER / Fevereiro 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)