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Alice Munro é um portento na arte do conto. Acaba de ganhar o Nobel da Literatura 2013. Aqui ficam críticas que fiz aos seus livros nos últimos anos.
Alice Munro (n. 1931), talvez a melhor contista da
atualidade, estreou-se em 1968, mas só foi revelada por cá em 2008, pela Relógio
D’Água. Após as antologias Fugas (de
2004), O Amor de uma Boa Mulher
(1998) e A Vista de Castle Rock
(2006), edita-se O Progresso do Amor,
de 1986. São onze contos sobre as ilusões e desilusões amorosas de homens e
mulheres comuns, habitantes sobretudo do Ontário rural, espaço natal e de eleição
da autora canadiana. Na maioria dos enredos, trata-se, como refere uma
personagem no seu caso individual, de «erros de fuga», confundíveis com erros
passionais. Brechas nas ações e cenários quotidianos das personagens que abrem
caminho a ligeiríssimos movimentos das placas subterrâneas que sustentam as vidas,
por sua vez fonte de intensos, mas subtis, choques à superfície.
A grande ficcionista Joyce Carol Oates diz que Munro «escreve contos com a densidade — moral,
emocional, por vezes histórica — dos romances de outros autores». A própria
esclareceu que os desenvolve como se sentisse «a tensão numa corda, ciente apenas
de aonde ela está atada». O que mais espanta é a exímia conjugação de contenção
de meios e riqueza densa do mundo interno de cada personagem, explorado sempre
na terceira pessoa do singular («Ela, que sempre tivera um ar pálido, sedoso e
dócil, mas difícil de seguir, como uma marca de água»; Edgar está sentado «como
um adorno polido, quase sempre imóvel»).
Munro não é dada a grandes experimentalismos técnicos e não
hesita sequer em abusar das metáforas ou da adjetivação. Nela, tudo surge com
uma espontaneidade e um talento desarmantes. Notável na elasticidade das frases
e dos diálogos, desenvolve estruturas pragmáticas a partir de uma luminosa atenção
aos detalhes. Nada é estático, ainda que a evolução das personagens (a vida
«a recuar como uma fotografia rasgada e enrolada sobre si, mostrando o que
sempre tivera por trás») surja com a densidade de uma espessa camada de
neve. No brilhante «Ataques», que só por si vale o livro, o homicídio-suicídio
de um casal serve, afinal, para explorar a enigmática personalidade de uma sua
vizinha. Indiretamente, Munro descreve a forma direta e dramática como as vidas
de gente comum se encontram ligadas, pelo banal e pelo extraordinário.
O Progresso do Amor, Alice Munro, Relógio D’Água, 314 págs.,
18 euros
SOL / 26-08-2011
Primeira advertência: para quem
gosta de contos a leitura da obra de Alice Munro será um prazer raro. Segunda
advertência, e um lamento: foram precisas quase quatro décadas para que a edição
portuguesa a descobrisse. Seis meses depois da primeira tradução de Munro, com
a antologia Fugas (primeiro publicada em 2004), a Relógio d’Água
reincide e propõe os oito contos de O Amor de Uma Boa Mulher (uma
recolha original de 1998). A descoberta da autora canadiana nesta dose dupla
permite entrar a fundo na sua máquina de conversão de material autobiográfico
em histórias que, com a paisagem de fundo do seu Ontario natal, são extraordinárias na
descrição da evolução temporal dos sentimentos e laços afectivos das
personagens.
Tal como aconteceu com a
canadiana Margaret Atwood no romance, nos anos 70 Munro foi adoptada pelos
norte-americanos como um dos «seus» melhores contistas – no seu caso graças à
publicação regular de contos na revista «The New Yorker». Com doze antologias e
um romance publicados, Munro (hoje com 76 anos) é conhecida pela sua capacidade
de conferir um movimento elástico à narrativa. Num estilo aparentemente económico
e directo, ela penetra na psicologia das personagens através da acção e dos diálogos,
rejeitando as descrições estáticas. Para o leitor, esta forma de contacto com
as realidades quotidianas das personagens resulta numa experiência dinâmica e
comovedora.
Nos contos de Munro, os
catalisadores da acção podem ser movimentos de fuga a um matrimónio, a um
passado, aos laços familiares ou às limitações provocadas pela doença ou pelo
envelhecimento (como em «Fugas»). Por vezes, resultam de impulsos de identificação,
concretização ou repulsa de fantasias (todas elas femininas, em O Amor de
Uma Boa Mulher). Mas o que marca a originalidade destas histórias é a
extrema atenção dada a pequenos pormenores (lembranças, palavras ou factos) que
desencadeiam e iluminam a compreensão do universo de cada personagem.
Tal como diz Robin, a
protagonista de «Truques» (Fugas), «basta movermo-nos um centímetro para
aqui ou para ali e estamos perdidos». A intuição de Alice Munro permite-lhe
determinar e descrever esses epicentros de crise. No brilhante «Podre de Rica»
(O Amor de Uma Boa Mulher), a personagem Karin descreve-se como «algo de
imenso, de tremeluzente e autónomo, com picos de dor em certos sítios, e no
restante uma extensa e monótona planície». São assim as personagens de Munro:
imensamente iguais a nós e dramaticamente diferentes.
O Amor de uma Boa Mulher, Alice Munro, 265 págs., 17 euros
LER / Maio 2008
Facto: o mercado editorial
português está a mudar de modo profundo, como o prova a apresentação, no
passado dia 7, do novo grupo editorial, Leya, que reúne oito editoras (entre elas, Asa,
Caminho, Dom Quixote e Texto)
e pretende publicar, ainda em 2008, três livros por dia. Mas pergunte-se: que
vantagens trará este novo cenário de concentração para os leitores interessados
não em «bestsellers», mas nos títulos clássicos ou contemporâneos que, mesmo
sem grande volume de vendas, representam o que de melhor se fez e faz em
literatura? Provavelmente, muito poucas.
Vem isto a propósito da edição recente da
antologia de contos «Fugas», de Alice Munro, por uma editora independente de
dimensão média, a Relógio D’Água, que possui o mais prestigiante e consistente
catálogo de grande ficção e ensaio internacionais (ainda que, por vezes, com
traduções de questionável qualidade). Munro nasceu em 1931, na província
canadiana de Ontario, cenário privilegiado da sua ficção. Estreou-se com
sucesso imediato nos anos 60 e, na década seguinte, a publicação dos seus
contos na revista “The New Yorker” levou os norte-americanos a adoptá-la
como um dos seus melhores contistas (no «The New York Times» foi qualificada
como «um dos colossos vivos do conto moderno»). Entretanto, publicou doze
antologias de contos e um romance. Mas, pasme-se, «Fugas», de 2004, é o seu
primeiro livro editado em Portugal. Ou seja, durante 40 anos a sua obra foi
desconhecida ou não aliciou qualquer editor português.
O estilo único de Munro assenta na extrema economia no tom das suas narrativas e na capacidade da escritora em distinguir dimensões misteriosas, pela sua maravilha, absurdo
ou violência, no quotidiano mais comezinho. Quer trate de crises ou separações
matrimoniais, conflitos de geração, resgates do passado ou vulnerabilidades físicas
particulares, Munro aplica a sua acuidade psicológica a personagens em
movimento por locais precisos. Aqui, estão todas em alguma espécie de fuga. O
segredo da narrativa está contido na ressonância de uma imagem, uma frase ou um
determinado acontecimento ao longo do percurso de vida da personagem. No início
de Fevereiro de 2008, a Relógio d’Água editará outra antologia de Munro: «O Amor de uma
Boa Mulher».
Fugas, Alice Munro, Relógio D’Água, 263 págs., 15 euros
SOL / 12-01-2008
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)