Para
Tolstoi, se a arte não serve para transmitir sentimentos, não pode ser
compreendida e não serve para nada. Uma tese ingénua, mas ainda desconcertante. Aos
50 e poucos anos, Lev Nikolaevitch Tolstoi está no auge das suas faculdades. E,
no entanto, quando o crítico russo mais respeitado daquele tempo, o amigo
Vladimir Stasov, elogia Anna Karenina,
ele diz-lhe: «Garanto-vos que essa coisa vil já não existe para mim. [...] Era
escritor, e todos os escritores são vãos e invejosos – eu, pelo menos, era um
escritor desse tipo.» Recém-convertido, Tolstoi adopta um estilo de vida
austero, compõe salmos, prega moral e condena, por exemplo, Fausto, de Goethe, como «o pior dos
lixos». Esta «revolução espiritual» (explicada em Uma Confissão) não impede que escreva mais ficção (como a
obra-prima Hadji Murat), mas
encaminha-o para a produção de tratados morais, filosóficos e de exegese bíblica.
É neste contexto que, em 1898, aos 70 anos de idade, escreve O Que É a Arte?, ensaio de reflexão
sobre a estética, recém-editado pela Gradiva.
Primeiro
dirigido ao Journal of Philosophy and
Psychology, mas, por influência da mulher, Sofia, antes incluído nas obras
completas, O Que É a Arte? nasce após
quinze anos de reflexão em torno de uma pergunta: «A arte em todas as suas
formas está no limite, por um lado, do que é praticamente útil e, por outro, de
tentativas falhadas de fazer arte. Como separ
á-la de
uma coisa e de outra?» Numa resposta apaixonada, Tolstoi percorre as principais
teses estéticas e a arte sua contemporânea (esteticista, simbolista,
decadentista). Rejeita a teoria da arte como imitação (representativista) e
propõe uma outra abordagem: a arte deve ser a expressão dos sentimentos humanos
(base da teoria expressivista, desenvolvida por R. G. Collingwood). Num estilo
simples e direto, em vinte capítulos sem título, procura uma definição, uma função
(moral e social) e um valor para a criação artística.
Pelo
caminho, Tolstoi argumenta como um moralista ingénuo e radical. «As grandes
obras de arte são grandes porque são acessíveis e compreensíveis a todos» ou «o
artista do futuro, cuja felicidade é a maior divulgação das suas obras, nem
sequer compreenderá como é possível fazer o seu trabalho em troca de uma
remuneração» são algumas de muitas convicções que o tempo provou serem
absurdas. Tolstoi perde a razão e o tino quando rejeita, por atacado, obras de
Sófocles, Eurípedes, Ésquilo, Aristófanes, Dante, Tasso, Milton, Shakespeare,
todo o Rafael ou Miguel Ângelo («com o seu absurdo Juízo Final»), todo o Bach, os Ibsens, os Liszts, os Berliozes, os
Brahms, os Richard Strausses, etc., «e toda a enorme massa de inúteis
imitadores destes imitadores». Ainda assim, consegue divertir-nos, porque mantém
alguma atualidade, quando critica a crítica, o ensino artístico e os gostos das
elites ou justifica a recusa de manifestações artificiais, incompreensíveis ou
falsificadas da arte. Ataca em pormenor poemas de Baudelaire, Mallarmé ou Verlaine
ou obras da última fase de Beethoven («monstruosas» porque criadas por um
surdo, incapaz de as aprimorar em condições) e é hilariante a narrar um serão
passado com parte da tetralogia wagneriana O
Anel do Nibelungo ou a descrever os resultados desastrosos de quando «uma
dama (já falecida), não muito inteligente mas muito civilizada, ayant beaucoup d’acquis [com grande
experiência de vida]» o chamou para ouvir um romance escrito por ela. Na
verdade, os exemplos a que recorre são uma das bases de uma doutrina sem dúvida
bem intencionada, mas demasiado singela.
No
essencial, Tolstoi sustenta que a arte serve para exprimir uma emoção que o
artista experimenta pela primeira vez (antes, ela era-lhe desconhecida) e para
despertar emoção semelhante no público, ao qual é transmitida sem artificialismos.
O artista exprime emoções particulares, individuais, pelo que lhe é exigido que
seja livre, claro e sincero. Sendo um
fenómeno de contágio e uma forma de
comunhão, a arte deve converter a «consciência religiosa comum das pessoas» em
sentimento. Logo, ética, religião e estética têm de andar de mãos dadas. A
tarefa colossal da estética de inspiração cristã é a supressão da violência. O
propósito máximo de Tolstoi é o de desviar a arte «do caminho errado
[decadente, perverso e corruptor] pelo qual enveredou». No seu caso, implicou
que rejeitasse a solipsista primeira parte da sua obra: Anna Karénina ou Guerra e Paz.
O
grego Arquíloco disse: «A raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço sabe uma
grande coisa.» A partir desta distinção, Isaiah Berlin defendeu: «Tolstoi era
por natureza uma raposa, mas acreditava ser um ouriço; as suas capacidades e os
seus feitos eram uma coisa, e as suas crenças, e por conseguinte a sua
interpretação da sua própria obra, outra; e consequentemente os seus ideais
conduziram-no, e a todos conquistados pelo seu génio de persuasão, a uma sistemática
interpretação errada do que ele e outros faziam ou deviam fazer. […] O conflito
entre o que era e aquilo em que acreditava surge-nos hoje tão evidente como na
sua visão da história, a que dedicou algumas das suas páginas mais brilhantes e
paradoxais» (Russian Thinkers). Melhor
escritor do que pensador ou profeta, Tolstoi foi minado por um conflito interno
entre os sistemas de valores público ou privado, individual ou colectivo.
Tentou provar que a vida contida nas obras de artistas das classes
privilegiadas (ou ao serviço delas) era uma experiência artificial, em tudo ininteligível
em termos universais porque oposta, por exemplo, à autenticidade do canto das
mulheres do povo ou à genuinidade do dia-a-dia dos mujiques russos. O primitivismo
defendido por Tolstoi e a sua crença na emoção sincera e genuína são hoje anacrónicos.
Todavia, a sua defesa da inspiração própria e do sentimento experimentado pelo
artista como principais propriedades da arte e a sua crítica à arte-entretenimento
e ao artificialismo das elites artísticas mantêm desconcertante oportunidade.
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)