Rubem Fonseca reinventou o cenário social e político do
suicídio de Getúlio Vargas.
Rubem Fonseca (n. 1925), um dos maiores escritores
brasileiros contemporâneos e com certeza o melhor contista (a par de Dalton
Trevisan), celebra 50 anos de carreira (estreou-se com o livro de contos Os prisioneiros). Nada melhor do que entrar
na sua obra ou revisitá-la, lendo o conto Feliz
Ano Novo (de 1975; disponível online) e o romance Agosto (de 1990), recém-reeditado pela Sextante. O primeiro, relata
o assalto de três jovens da favela a uma mansão carioca durante o réveillon, foi proibido pela censura e é
exemplo máximo de um retrato brutalista e amoral da violência na grande metrópole,
desse realismo feroz e sujo do contista que influenciou toda a
corrente de prosa urbana brasileira. Agosto
é, por seu turno, um enredo policial com fundo autobiográfico (Fonseca foi
comissário, nas ruas ou como relações públicas, da polícia no Rio, entre 1952 e
1953) e base histórica: o contexto que, de 1 a 24 Agosto de 1954, conduziu o
presidente Getúlio Vargas, «um velho insone, pensativo, alquebrado», ao
suicídio, com um tiro no coração.
No romance, Rubem Fonseca troca o enfoque directo e rasgado
pela exploração mais fina das motivações individuais e colectivas. Nos 26
capítulos de Agosto, sucedem-se
pequenos episódios e um cruzamento e gestão invulgares dos enredos policial e
histórico. Há cadáveres vários (um industrial, um major, um capanga, um
porteiro, um polícia ou um bicheiro) e um xadrez complexo de relações amorosas,
sexuais, políticas, criminosas e históricas entre várias personagens. Há o
drama político real de um presidente, «vítima
das aleivosias torpes dos inimigos, dos julgamentos ambíguos dos amigos», e
o drama fictício de um comissário de polícia, «um doido criador de casos», incorruptível defensor da obediência cega
à lei. À margem, há um pai e um filho que confessam a autoria do mesmo
homicídio.
Rubem Fonseca, tal como o comissário Alberto Mattos,
mostra-se mais getulista do que lacerdista (apoiante do jornalista Carlos
Lacerda, principal opositor de Getúlio) e descreve quase com nostalgia um mundo
que se extingue. Com a sua úlcera no duodeno, dividido entre uma ex-namorada e
a actual (ex-prostituta), amante de ópera, avis
rara entre os colegas, em luta com a progressiva desordem do mundo à sua
volta, Mattos é, como Getúlio, um solitário, desfazado e condenado ao fracasso.
No seu romance mais complexo, Rubem Fonseca utiliza em fundo uma espécie de realismo
existencialista que põe a nu a base histórica, social e psicológica a partir da
qual, entre os anos 50 e os 90, a violência e a podridão ética foram comendo
por dentro o Rio Cidade Maravilhosa
Agosto, Rubem Fonseca, Sextante Editora, 320 págs., 16.60 euros
SOL/ 12-04-2013© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)