Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

terça-feira, abril 30, 2013

H.G. Wells | O homem que inventou o amanhã

 
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É um lugar-comum dizer-se que Herbert George Wells (1866-1946), conhecido como H. G. Wells, escreveu mais de cem livros e foi amante de mais de cem mulheres, porque esta ponte imediata é disparatada, sobretudo em relação a um autor que não se referia a sexo nos seus romances. E, no entanto, se o assunto é uma biografia do popular escritor inglês, ícone da ficção científica, pessimista e progressista, utópico e profeta, defensor do amor livre, do socialismo e de um governo mundial, então, sim, faz sentido unir as pontas.
Na epígrafe de Um Homem de Partes, romance biográfico sobre Wells saído em 2011 e recém-editado pela Asa, David Lodge explicita o significado de «Partes»: o popular, «órgãos genitais do homem ou da mulher», e o convencional, «qualidades físicas ou morais de alguém». Um estudo de personagem assim apresentado seria, pois, um cocktail aliciante: picante q.b. e com bastante sumo psicológico, intelectual e político. Isto, se Lodge, neste caso, não tivesse tanto pudor em escrever sobre sexo, desse espaço à paródia, não fosse tão condescendente para com a misoginia operacional do biografado e se não insistisse em que «quase tudo o que acontece na presente narrativa é baseado em fontes factuais». Bastar-lhe-ia deixar a personagem respirar, no esplendor das suas qualidades e defeitos. Disse-o o próprio Wells: «A ser contada, a história de vida de qualquer criador artístico é, pois, pela sua própria natureza, pelos muitos objetivos e realizações específicas, pela transição grotesca entre as necessidades básicas e o desejo de elevação e o esforço constante para alcançar o estrelato, uma comédia.»
David Lodge (n. 1935), Professor Emeritus de Literatura Inglesa Moderna da Universidade de Birmingham, é autor de vários ensaios de crítica e teoria literária e a maior parte dos seus dezassete romances satiriza o meio académico e recorre à intertextualidade. Lodge escreve de dentro da academia e do universo literário e é lá que se sente bem. Bastante considerado pela crítica, recebeu dois prémios importantes no início da carreira (A Troca, Hawthorden Prize 1975; Até onde se pode ir?, Whitbread Book of the Year 1980), foi três vezes nomeado para o Booker, mas nunca teve o reconhecimento dado a autores da mesma geração como Ian McEwan, Martin Amis, John Banville ou Colm Tóibín.
Em 2004, Autor, Autor, a ficção biográfica que Lodge dedicou a Henry James, foi cilindrada pela aclamação de O Mestre, de Tóibín, sobre o mesmo tema e lançado apenas seis meses antes. No The Guardian, Allan Hollinghurst analisou os dois livros, pouco tempo antes de vencer o Booker Prize desse ano, com A Linha da Beleza, romance influenciado pelo estilo jamesiano. Em 2006, Lodge publicaria The Year of Henry James: The Story of a Novel, um enquadramento tão minucioso de Autor, Autor que, de testemunho sério mas descontraído, passou a ressabiado e hilariante. Entre os artigos e entrevistas publicados no mesmo volume, um era dedicado a H.G. Wells.
Um Homem de Partes inicia-se em 1944, quando Londres sofre os derradeiros ataques aéreos alemães. Wells tem 78 anos e apenas mais dois para viver. À sua volta, a família discute a crise conjugal do seu filho Anthony. Sem forças, sem apetite, doente de cancro no fígado, deprimido pelo cada vez mais fraco acolhimento dos seus livros, H. G. ocupa o tempo a reavaliar a sua biografia. Para tal, imagina entrevistas a si mesmo, «lançando perguntas fáceis e dando-lhes respostas longas» e concentra-se no seu período áureo: entre o primeiro best seller, a ficção científica A Máquina do Tempo, de 1895, e a edição do ensaio de divulgação História Universal, em 1919.
À reprodução destas autoentrevistas, David Lodge juntará a narração em discurso indireto da ação passada no mesmo período. Constituindo o grosso do romance, esta autoficcionalização terá nascido de «uma voz dentro da cabeça» de H.G. Wells: a do romancista que ele foi «em anos pretéritos, quando escrevia romances quase autobiográficos». Esta rebuscada estratégia narrativa obriga a que apenas duas (as mais curtas) das cinco partes do romance (com quase 600 páginas) incluam tempo verbal no presente. A opção quase exclusiva pelo pretérito narrativo torna surpreendente que David Lodge tenha rejeitado o estilo indireto livre. Tal como ele próprio o definiu, em A Consciência e o Romance, este recurso serviria precisamente para «estabelecer o enquadramento espácio-temporal em que a consciência subjetiva da personagem individual opera».

 
Após a fraca receção do tributo a Henry James, «supremo romancista da consciência», Lodge decidiu navegar em águas opostas. Ao longo do período temporal privilegiado em Um Homem de Partes, H. G. Wells foi trocando o desejo de produzir grandes clássicos pelo de mudar o mundo. Isso afastou-o aos poucos do amigo Henry James, abnegado defensor do valor estético literário e declarado inimigo da «maldita forma autobiográfica». Este conflito poderia ser central, mas esboroa-se ao longo do livro. Lodge está obcecado com a relação de Wells com as mulheres («o seu inveterado e insaciável desejo» delas) e secundariza as questões relativas à política, à escrita, à obra e à literatura. Como exemplo, a referência a A Guerra dos Mundos ocupa apenas umas linhas e a criação de A Máquina do Tempo é despachada em cinco páginas (claro que o académico Lodge reconhece pouco valor técnico à ficção científica). Em contraponto, exploram-se todas as projeções na obra literária da crença de Wells no amor livre e nas relações abertas. Ao puritanismo e ao horror de Henry James à intimidade sexual suceder-se-ia a libertinagem sumarenta de H. G.; à consciência explanada suceder-se-ia a ação vigorosa. As principais fontes de David Lodge foram as páginas autobiográficas de Wells: os dois volumes de Experiment in Autobiography, de 1934, e um secreto pós-escrito sobre a vida sexual, por vontade do escritor só publicado após a morte de todas as mulheres em questão (Wells in Love, 1984).
Com pouco mais de um metro e meio de altura, esquelético na juventude e depois obeso, H. G. não era um homem bonito. Contudo, David Lodge destaca várias vezes que ele era «invulgarmente dotado» quanto a «partes íntimas» e a «ejaculações imparáveis». Pródigo também a desflorar as filhas dos colegas da Sociedade Fabiana, afinal, «para ele tratava-se de completar a educação de uma jovem a pedido desta»; tinha sempre o cuidado de lhes dizer que na primeira vez «podia doer um bocadinho». Acérrimo defensor público dos direitos da mulher, a sua infidelidade crónica nascera em resposta à frigidez da primeira mulher, a prima Isabel. A segunda mulher, Jane, uma ex-aluna também «sexualmente inibida», tolerou durante anos as suas «passades» (escapadelas) se calhar porque, como ela mesma reconhecia, «nunca [esteve] à altura da [sua] inteligência, nem poderia estar». Felizmente ocupou-se sempre de todas as suas logísticas comezinhas e nunca o traiu, o que de certeza o teria matado de ciúmes. Quando soube da gravidez da jovem Amber Reeves, por exemplo, Jane «foi impecável, apesar da perplexidade e de algum ceticismo».
David Lodge, muito pudico nas descrições do próprio ato sexual, investe antes na ficcionalização de pormenores cenográficos e de diálogos muitas vezes mecânicos e inverosímeis. Os episódios, recheados de informações documentais, sucedem-se quase sem conflito (salva-se a assertividade da amante e escritora Rebecca West), o que é intensificado pelo tom acrítico das autoentrevistas. O relato substitui-se ao drama e a densidade psicológica esvai-se. Muito mais progressista e lúcido do que David Lodge, H.G. Wells deixou explícita no seu pós-escrito a razão do insucesso de Um Homem de Partes: «Ser imperfeito e inconciliável é o que toca a todos os criadores artísticos. […] A história das minhas relações com as mulheres é sobretudo uma história de cobiça, insensatez e grandes expectativas». Uma história bem mais crua e que fica por contar.

LER / Abril 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)