Este
livro, sim, merecia ter uma cinta à volta, fluorescente. Com o alerta: este é
um divertimento muito sério. E, no verso: substitui qualquer curso de escrita
criativa. Publicado em 1939, At Swim-two-birds
chega por fim às livrarias portuguesas, traduzido por Maria João Freire de
Andrade e intitulado Uma Caneca de Tinta
Irlandesa. O autor, Flann O’Brien, integra a lista de pseudónimos de Brian
O’Nolan (1911-1966), um funcionário público irlandês que com mais facilidade
seria visto em flagrante delitro num
bar do que entre a elite intelectual da época. Na verdade, ele, o genial beberrão,
quis morder as canelas ou entornar a caneca sobre as convenções. Conseguiu-o numa
obra-prima de metaficção e intertextualidade que, nas últimas décadas, se
tornou leitura de culto e tema de conversas literatas chiques.
É muito
difícil resumir o enredo de Uma Caneca de
Tinta Irlandesa. Com a ajuda de Graham Greene, aqui fica: «Já existiam
livros dentro de livros e personagens a quem é dada vida fora das suas ficções,
mas O’Nolan vai muito para lá de Pirandello e Gide. A parada aumenta até termos
um livro [escrito por um estudante indolente] sobre um homem chamado Trellis
que [por sua vez] está a escrever um livro sobre certas personagens que trocam
as voltas a Trellis escrevendo sobre ele.»
Neste
jogo de espelhos e labirinto verbal, os autores são também leitores e os
personagens são também autores. Confuso? Então, juntem-se a múltiplas figuras
inventadas ou reais, referências a mitos e lendas celtas, narrativas históricas,
medievais ou até de cowboys. Tudo escrito em inglês por um autor católico que só
aprendeu esta língua aos sete anos de idade (antes só falava gaélico).
Uma Caneca de Tinta Irlandesa parodia a noção de autoria e possui
uma complexa estrutura de jogo textual. Na sua mistura de seriedade, lirismo,
inventividade e ironia desbragada, mais cínica do que satírica, conspirou
contra os formalismos românticos e realistas e antecipou muitas das experiências
desconstrutivistas e pós-modernistas. Pairando em cada página, há neste livro
uma desconcertante, mas imperdível, lição de literatura.
Uma Caneca de Tinta
Irlandesa, Flann O’Brien, Cavalo de Ferro, 254 págs., 15 euros
SOL 17-05-2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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