A Fábula não faz parte das quatro obras de ouro de William Faulkner
(1897-1962, Nobel em 1949), as mais referidas, mais estudadas e mais amadas
pelos leitores: O Som e a Fúria, Luz em Agosto, Palmeiras Bravas e Absalão,
Absalão. Recebeu os prémios Pulitzer e National Book em 1954, mas nem por
isso a crítica foi, ou é ainda hoje, unânime na sua aclamação. Não se passa no
condado mítico de Yoknapatawpha e retoma o tema da Primeira Guerra, explorado
na ficção de estreia, Paga de Soldado
(1926). É uma complexíssima estrutura ficcional, trabalhada com obsessão pelo
autor norte-americano durante dez anos, um desafio à persistência e paciência do
leitor. Talvez por isso a Dom Quixote, responsável pela edição quase integral
do autor, ainda não se tinha ocupado deste título. Saiu há pouco pela Casa das
Letras, com tradução de Maria João Freire de Andrade.
Apesar de todos os
condicionalismos referidos, A Fábula é
uma leitura importante para quem se interessa por ficção anti-guerra e só
talvez O Adeus às Armas, de
Hemingway, a supere em construção de ambiente e exploração de pormenores
significativos (note-se a indispensável clarificação de designações de patentes
e postos militares para cada um dos três exércitos que a tradutora inseriu logo
no início). Uma leitura exigentíssima, pois, de um dos textos de Faulkner mais
cheio de recorrências paralelísticas e cumulativas e que pior envelheceu, só
compensada pela hipotética iluminação nas últimas, crudelíssimas, cinquenta páginas
da paisagem total de um enredo dispersivo e ambíguo. Alegoria à Paixão de
Cristo, a acção, apesar de ramificada em múltiplos episódios e personagens, centra-se
na personagem Stefan Dumont, soldado responsável por um motim que levou à
suspensão temporária do combate dos dois lados na Frente Ocidental. Como Cristo
apoiado por doze camaradas e traído por um deles, Stefan luta até ao fim pela
defesa da paz. Em choque com o Comandante Supremo das Forças Aliadas (afinal,
seu pai), Stefan é martirizado e executado, junto com dois soldados-criminosos,
e a sua sepultura destruída por uma bomba.
A tese biográfica corrente diz
que Faulkner ficou frustrado porque a sua Primeira Guerra se limitou a treinos
como aviador da R.A.F. no Canadá. O pacifista romance de 1954 significa que, já
escritor maduro, Faulkner foi até à frente de combate, mas para provar a força
de um dos seus temas mais fortes: a derrota, desta vez de um dissidente
habitado pelo «monstro» da dignidade humana.
William Faulkner, A Fábula.
Tradução de Maria João Freire de Andrade. Casa das Letras, 332 págs.
LER / Fevereiro 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)