Não criou obras-primas, mas foi o grande provocador da América puritana. Gore Vidal morreu, com 86 anos, vítima de pneumonia.
A crítica
chamou-lhe em tempos um Oscar Wilde moderno ou o Marquês de Sade da era da
Guerra Fria. Gore Vidal, mais do que como grande ficcionista, talvez fique para
a história, de forma paradoxal, como um grande ensaísta e um grande performer da provocação. Como Norman
Mailer ou Truman Capote, tornou-se uma celebridade e nunca desdenhou essa
estranha fusão entre uma prática de livre pensador e as lógicas mais comezinhas
do star system. Dizia: «Nunca desperdiço uma oportunidade de ter
sexo ou aparecer na televisão.» Com a mesma displicência com que, nos anos
30, se passeava de fato de banho pelos corredores do Senado americano, no início
da década de 70, Vidal virou costas aos EUA e instalou-se na luxuosa villa de
seis hectares La Rondinaia, em Ravello, a sul de Nápoles. Em 2004, doente,
sozinho (o companheiro de mais de 50
anos de vida, Howard Austen, falecera em 2003), mudou-se para a sua mansão
nas colinas de Hollywood, na Califórnia. Morreu em casa, vítima de pneumonia,
na madrugada de 31 de Julho, com 86 anos.
Nascido
na base militar de West Point (Nova Iorque), Eugene Louis Vidal era filho de
uma socialite e atriz da Broadway e
de um jogador de basquetebol e capitão de aeronáutica (um dos primeiros pilotos
da Army Air Corps e fundadores da TWA, e, diz-se, o grande amor da aviadora Amelia
Earhart) e neto de Thomas Gore, famoso (e cego) senador democrata pelo Oklahoma,
de quem adoptou o apelido literário e na companhia de quem cresceu em
Washington D.C., após o divórcio dos pais (quando tinha 10 anos). Sempre esteve
convicto da nobreza das suas raízes e do poder das relações sociais
privilegiadas (era primo, distante ou por afinidade, de Jackie Kennedy, Jimmy
Carter e Al Gore; privou, ou teve casos mais ou menos platónicos, com Greta
Garbo, Tennessee Williams, Eleanor Roosevelt, Anaïs Nin ou o casal Paul Newman,
entre uma incontável galeria de estrelas dos mais diversos quadrantes, que
adorava seduzir, nos enquadramentos mais glamorosos). Talvez influenciado pelo
isolacionismo do avô Thomas, sempre lutou radicalmente contra a segregação
social e sexual, contra o establishment
literário e político, os grandes dogmas da mentalidade do seu país. Foi uma das
poucas vozes verdadeiramente aristocratas a lutar pela democracia americana. Uma
espécie de exibicionista grego entre puritanos (o crítico Harold Bloom defende que
a homossexualidade do escritor foi determinante para a sua aproximação à estética
e à cultura greco-latinas, que lhe serviu de contraponto crítico aos EUA).
Em
1960, em entrevista à revista The New
Yorker como candidato democrata ao Congresso, afirmou: «Desde criança que digo que preferiria ser Presidente a ser escritor.» Crítico
acérrimo da administração Bush (e da sua agenda expansionista), sucedeu, em
2009, a Kurt Vonnegut, na presidência da American Humanist Society, enquanto,
em entrevista ao The Times, criticava
Obama e afirmava que os EUA «caminham
para a ditadura». Era um apaixonado «pela
antiga convicção americana de que o que está mal na sociedade humana pode ser
consertado pela ação humana», mas não hesitava em dizer que «os EUA foram fundados pelas pessoas mais
brilhantes do país — e não as vemos desde então». Belicoso, por muitos
acusado de cinismo refinado, levou um murro de Norman Mailer (que acusou de
misoginia primária) e alimentou confrontos memoráveis com o seu arqui-inimigo,
o conservador William F. Buckley. Mas viveu alimentado pela paixão por grandes
autores como Montaigne, Italo Calvino, Henry James ou Edith Warthon, cuja genialidade não se
cansava de proclamar.
Em 1948, dois anos após a estreia literária, aos 20 anos, com o romance militar Williwa (sobre a Segunda Guerra Mundial), Gore Vidal publicou o terceiro romance, A Cidade e o Pilar (Dom Quixote), a primeira ficção norte-americana com referências frontais à homossexualidade. O livro trouxe-lhe fama imediata e o repúdio por grande parte da crítica (o New York Times rejeitou liminarmente a referência aos seus cinco livros seguintes), o que o levou a escrever romances policiais sob pseudónimo e a tornar-se dramaturgo (a peça The Best Man foi reencenada este ano na Broadway) e argumentista de televisão e cinema (para a MGM, escreveu o argumento da megaprodução Ben-Hur) e viria a gorar as suas aspirações políticas, nos anos 50 e 60, a um cargo no Senado ou no Congresso. Proprietário de uma mansão de estilo neoclássico nas margens do rio Hudson (Edgewater) e uma das figuras mais provocadoras no meio social e literário nova-iorquino, ainda nos anos 60, Gore Vidal publicou a suas três obras maiores: Juliano (1964, Dom Quixote), memória ficcional do apóstata imperador romano que tentou fazer substituir o Cristianismo pelo paganismo; Washington D.C. (1967, Casa das Letras), saga de uma família de políticos da era de Roosevelt à Guerra Fria e primeiro título da série de romances históricos que terminaria, em 1984, com Lincoln; e Myra Breckinridge (1968), diário satírico de um transsexual que, após uma cirurgia de mudança de sexo, dá aulas numa academia de cinema em Los Angeles.
Na
ficção ou no ensaio, Vidal tratou grande parte da história e da cultura americanas,
a ponto de, narcísico até à medula, defender que, nos departamentos de história
da literatura americana do pós-Segunda Guerra, esquecê-lo seria o mesmo do que «encenar Hamlet sem o príncipe». A crítica
reconheceu-lhe a inteligência, a capacidade de análise radical e fulgurante,
mas nunca deixou de acentuar uma ausência de genialidade na criação ficcional,
o que talvez justifique a não atribuição de prémios à sua obra (em 2009,
recebeu um National Book Award honorário). Na autobiografia Navegação Ponto por Ponto (Palimpsest, 1995,
Casa das Letras), afirmou: «Habitualmente,
não penso no passado. Só me sinto em casa no presente.» Mas Gore Vidal foi,
sobretudo, um experimentador da fusão entre relato e invenção (entre o que
Norman Mailer cunhou como facção e factoide), um ativista, um criador de
contraficções e de contradiscursos, vitais para um entendimento lúcido da América
no passado e no presente.
SOL / 03-08-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)