Após
o senhor Quita, cabeleireiro reputado, também poeta e membro da Arcádia
Lusitana, lhe arranjar o cabelo, «abîmé pela viagem», Giacomo Casanova
(1725-1798) visita o centro da cidade acompanhado pelo comerciante Jácome
Ratton, seu anfitrião nesta estadia em Lisboa, dois anos após o Terramoto de
1755. Diante das ruínas da Casa da Ópera, reduzida a «uma espécie de fantasmagoria macabra, com as suas paredes descarnadas
e os camarotes queimados erguendo-se a céu aberto, como que à espera de acolher
um espetáculo sumptuoso que jamais voltaria a repetir-se», Casanova comove-se
com a extensão da catástrofe, que acredita ter sido capricho da natureza, mais
do que manifestação divina. «Nunca a
transitoriedade da glória e dos feitos da espécie me pareceu tão evidente como
diante deste cenário de horror», confessa o aventureiro italiano ao irmão,
Francesco Casanova, numa de seis cartas da sua autoria datadas dessa altura e que
compõem a nova ficção do escritor, gestor e jornalista António Mega Ferreira.
Cartas de Casanova, escrito em apenas
três meses e meio, é um romance epistolar talentoso. Nele se conjugam um
conhecimento histórico e erudito do protagonista (Histoire de ma vie, a autobiografia de Casanova, foi base de
inspiração e consulta), da cidade e da época (um hiato naquelas memórias), um
domínio raro da língua (a inclusão de expressões francesas ou italianas
adiciona, sem peso, cor e circunstância ao texto) e do género epistolar (brilhante
o recurso às notas do tradutor-autor, espécie de rubrica-guião paralelo) e, por
fim, ou sobretudo, uma muito imaginativa gestão global da narrativa. Como num
divertimento musical, Mega Ferreira apresenta-nos o herói em trânsito (acaba de
escapar da prisão dei Piombi, em Veneza) e um conjunto circunscrito, mas muito
representativo, de personagens (sobretudo históricas), para compor uma anotação
original à margem de dois dos mais marcantes momentos e figuras do século
XVIII. Ao jeito da época, prova, ele mesmo, como escritor, avoir de l’esprit jusqu’au bout des ongles.
Cartas de Casanova, António Mega Ferreira, Sextante Editora, 208 págs., 16.60 euros
SOL / 15-02-2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)