Luís
Cardoso, nascido em Timor-Leste, onde existe enorme variedade etnolinguística, escreve
em português por causa de... uma carcaça. A história é tão curiosa como a
escolha que o autor fez de uma sandália para narrar o seu quinto romance, O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação.
Luís fez a escola primária numa pequena ilha com uma única padaria, gerida por
um desterrado político português. Como os pais tinham pouco dinheiro e ele era
colega do filho do padeiro, sempre que havia redações, escrevia-as em duas versões:
uma, em tétum, a língua corrente, e outra, em português, para o miúdo, que, em
troca, lhe dava uma carcaça barrada com manteiga.
Radicado
em Portugal desde 1974, Luís Cardoso é a voz literária da autenticidade de uma
cultura híbrida, durante 500 anos impregnada pela influência portuguesa, mas onde
resistiu a riqueza de expressões e crenças locais e ancestrais. A «circum-navegação [do autor] pela memória
viva da ilha e de si» iniciou-se nos quatros romances anteriores e completa-se no novo livro, um
caso sério de imaginação de um contador de histórias na melhor tradição timorense
e de realismo mágico. Narrado durante a ocupação indonésia pela sandália do pé
esquerdo de Carolina, filha de um integracionista, o romance segue Catarina, a «nona de Batávia», protagonista de Requiem para o navegador solitário (2007), e o seu filho perdido, Raio
de Luz. A ação extravasa o tempo e o espaço de Manumera, através dos relatos,
lembranças e segredos da família de Carolina. Pigafetta é um sacristão homossexual, albino e de língua
cortada, amante de Sakunar, colaborador dos indonésios que vive com a tia
Isadora, a bailarina de Bidau.
Pigafetta acredita descender do cronista italiano homónimo, companheiro de Fernão
de Magalhães na primeira viagem de circum-navegação, em 1519. Aqui, «as pessoas são de presságios e de espíritos»,
e o livro é, ele próprio, um universo caleidoscópico, com percursos curvilíneos,
onde «a crueza é bela e é verdade».
O Ano em que Pigafetta Completou a Circum-navegação, Luís Cardoso, Sextante, 256 págs., 15.50 euros
SOL/ 18-01-2013
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