Pesem
bem o que têm pela frente quando A Piada
Infinita, de David Foster Wallace (1961-2008), chega às livrarias
portuguesas: um quilo e meio de peso para 1198 páginas, um labirinto não-cronológico
de personagens e linhas narrativas, ação passada na América e num futuro próximo
indeterminado, 338 notas (arrumadas no final) que poderiam ser capítulos e é-mesmo-necessário-ler,
e, pairando sobre todo o texto, a aura mítica que une o suicídio do autor
(doente depressivo grave durante mais de 20 anos) ao epíteto de génio revolucionário
e maior escritor norte-americano da sua geração e do final do século XX. Juntem,
em torno deles, autor e livro, um fenómeno viral de referência literária ou de moda
pseudoliterata e de name dropping (menção
sem conteúdo), alimentado pelo marketing
editorial e, na sua base teórica, por uma certa crítica e pelos autores da
escola de Wallace (entre eles, Zadie Smith e os grandes amigos do escritor:
Jonathan Franzen, Donald Antrim ou Jeffrey Eugenides, a quem chamava «os
rapazes brancos»). E respirem fundo.
Se
mesmo assim se aventurarem à leitura, fica a sugestão prática: guilhotinem o
livro para que o possam ler por partes, dispensando tendinites. Se insistirem
em mantê-lo intacto, separem pelo menos a parte das notas ou assinalem-na de
forma a poderem consultá-la a qualquer momento. Reservem largos meses para esta
leitura e façam-na com um lápis e um bloco de notas à mão. Preparem-se para,
mesmo assim, no final, não apreenderem senão uma pequena parte desta proposta
literária extravagante. Feitas as apresentações, eis Infinite Jest, cujo título os dois tradutores portugueses (a tradução,
levada a cabo intensivamente durante oito meses, é notável), Salvato Telles de
Menezes e Vasco Telles de Menezes, pai e filho, traduziram para A Piada Infinita.
No
Ato V, cena I de Hamlet, o príncipe
monologa sobre a morte, enquanto segura na mão a caveira de Yorick, um falecido
bobo da corte. No início do monólogo, exclama: «Helás, pobre Yorick! Eu conheci-o bem, Horácio: um sujeito com
infinita piada (infinite jest) […]» Sim, foi de Shakespeare que Foster
Wallace recolheu o título da sua obra-prima. E é também aí que começa a
mitificação deste livro e do seu criador, porque, suprema e triste ironia simbólica,
quando o lemos, é como se segurássemos nas mãos a caveira que albergou a fonte
do legado que ele nos deixou após uma morte trágica (por enforcamento, depois
de múltiplas tentativas de tratamento químico, por internamento e até com choques
electroconvulsivos).
A Piada Infinita, lançado em 1996, é um
romance sobre depressão e várias
outras desordens mentais e físicas, sobre família, consumos compulsivos, drogas,
indústria do entretenimento, terrorismo e agências de segurança e mil outros subtemas
explorados pelo autor com a minúcia de um pesquisador de nanoparticulas. As
personagens multiplicam-se a partir da família Incandenza, sobretudo do que
pode ser considerado o protagonista, Harold (Hal), que (como Foster Wallace o
foi) é um jovem jogador profissional de ténis, «potencialmente sobredotado em matéria de ténis e léxico», cuja
degradação mental acompanhamos até ao final do livro. A segunda figura
principal, apresentada em flashback, é
James, pai de Hal, a quem a família chama «Ele
Mesmo», doutorado em Física Ótica, fundador da Academia de Ténis de Enfield
(central no romance, a par da Ennet
House, o centro de recuperação de tóxico e álcool-dependentes onde Hal
será internado), realizador (de Infinite
Jest), alcoólatra, que se suicida (colocando a cabeça dentro do
micro-ondas) aos 54 anos. Infinite Jest é o nome do misterioso filme de
entretenimento que, em cinco tentativas, James criou e cujo visionamento é de
tal forma cativante e viciante que bloqueia a capacidade de ação dos espetadores
– um grupo separatista quebequence procura obter a desaparecida cópia mestra do
filme, para o usar em atos terroristas contra os EUA.
«Wallace
é um barroco, um gongórico», defende Salvato Telles de Menezes, que destaca A Piada Infinita como o mais difícil e
o mais bem sucedido desafio na sua carreira de quarenta anos de tradução. A
cada personagem, o autor conferiu uma figura e uma personalidade distinta,
minuciosamente explorada em termos psicológicos, e um discurso distinto, que é
seguido ou imitado, na sua forma, pelo narrador, sempre que se refere a cada
uma delas. Neste aspecto, a tradução, portuguesa, muito fluida, torna-se uma
espécie de cocriação. O estilo de Wallace caracteriza-se pelo radical arrojo na
composição, na gramática e na linguagem (incorpora muito jargão e terminologia
técnica; reproduz estruturas gramaticais incorretas e até erros ortográficos; há
frases que duram três páginas; os títulos dos capítulos integram nomes de
produtos), na minúcia (prodigiosa e obsessiva) da descrição e nos temas
centrais: sátira ao mundo mediatizado e mercantilizado e à era da depressão, sátira
ao modo como a natureza e pureza (também química) originais das personagens se
perverteu e devido a que forças destrutivas, sátira à ironia, compondo um
detalhado inferno que evoca a potência sugestiva do de Dante.
Na
verdade, para lá dos intricados enredos, que o autor desenvolve por vezes
repetindo-se (o que ajuda o leitor), encontram-se no subtexto do romance múltiplas
alusões literárias, a cuja compreensão total só um especialista conseguirá
aceder. Foster Wallace tinha 33 anos quando A Piada Infinita foi publicado. Diz Salvato Telles de Menezes: «É notável e quase inexplicável como, tão
jovem, reuniu uma tão brutal extensão de conhecimentos literários, que só pode
resultar de ter lido os livros originais, a fundo.» Até à morte, o escritor
continuou a escrever, deu aulas de escrita criativa e publicou reportagens
jornalísticas e ensaios brilhantes. A sua bibliografia é composta por três
coletâneas de contos, nove livros de não-ficção (três deles póstumos) e dois
romances, um deles, The Pale King, póstumo,
inacabado e finalista do Pulitzer Prize 2012.
David
Foster Wallace definia o que fazia como «ficção apaixonadamente moral», o que o
aproxima dos existencialistas. Escrevia na senda de Thomas Pynchon, mas
preferia dizer que era na de Don DeLillo. Salvato Telles de Menezes defende: «O modelo narrativo do livro é Dickens e
Moby Dick, mas descortinam-se também, sobretudo na estrutura da frase, influências
da literatura russa clássica ou da literatura francesa do século XX. Wallace
quis laborar numa transferência do pós-modernismo para o pós-pós-modernismo,
uma ruptura feita de uma forma, em simultâneo, irónica e profundamente
depressiva.» Por tudo isto, A Piada
Infinita é um desafio ao qual poucos leitores conseguem aceder por
completo, mas um feito extra-ordinário, que ficará na história da literatura.
A Piada Infinita, David Foster Wallace, Quetzal, 1198 págs., 27.70 euros
SOL/ 16-11-2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)