Poucas vezes surgem em Portugal meteoritos como este, chamado Miguel Tamen, professor com interesses em filosofia e literatura, filósofo, formado por cá, pós-graduado na América, recém-eleito, por maioria, diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Manifesto opositor do acordo ortográfico, da auto-indulgência, do paternalismo do Estado e das instituições, das grandes convições pessoais como da pedagogia dos chamados grandes valores estéticos. A sua ideia de universidade é democrática, iconoclasta e crítica, no sentido revolucionário da palavra. Vá se lá saber se este espírito extraterreste conseguirá atingir o solo.
Nos seus livros prefere a sugestão à afirmação, a comparação e
a analogia inesperada...
O que eu faço
é relacionar coisas diferentes e, portanto, sugerir que coisas diferentes são
parecidas ou distinguir entre coisas que as pessoas pensam que são parecidas.
À procura de quê? De um ponto comum entre perspetivas
diferentes?
À procura de
perceber coisas que não percebo e às quais posso aceder comparando-as com
coisas que conheço um pouco melhor ou com outras coisas que me parece que são
parecidas.
Quando estão em viagem, caricaturalmente, os portugueses têm
tendência para compararem as paisagens estrangeiras com as paisagens domésticas.
Por exemplo, estão diante do Taj Mahal e comparam-no com... o Mosteiro dos
Jerónimos. Suponho que rejeite esta procura da familiaridade que é, afinal, uma
forma de recusa do que é estrangeiro.
Num certo
sentido essa é a perspetiva de toda a gente. A única maneira de alguém perceber
alguma coisa é comparar essa coisa com outras que já conhece; tentar imaginar
pontos de semelhança entre coisas que lhe são muito familiares e coisas que lhe
são menos familiares. Mas creio que se estava a referir a uma embirração
recorrente minha: contra a redução do mundo àquilo que nos é familiar e contra
a tentativa de descrever o mundo como simplesmente obedecendo às categorias e
descrições que nos são mais próximas e comezinhas.
O que é identificável, em especial, no modo de ser português?
Sim. É uma
forma particular de loucura, que consiste em imaginar que todo o mundo gira à
volta de Portugal.
Um messianismo espiritual...
... que é
simplesmente um mecanismo de consolação por não haver nenhuma forma de
messianismo mais musculado que alguém em Portugal tome a sério. Portanto,
imagina-se que a língua portuguesa é a língua das línguas, que o futebol
português é diferente do futebol espanhol ou que a poesia portuguesa é
diferente da poesia eslovena.
Em que é que se define como português?
Um certo
cartão de cidadão?
Só? Nasceu aqui...
Nasci e vivi
a maior parte do tempo em Lisboa. Não me passa pela cabeça deixar de ser
português, porque, tirando casos de emergência (pessoas perseguidas,
apátridas...), a ideia de mudar de nacionalidade não faz para mim sentido
nenhum. Mas não sinto nenhuma responsabilidade ou peso especial por ser
português. Não sinto que deva dizer ou pensar certas coisas por ser português.
Aliás, se fosse esloveno, norueguês ou tanzaniano, teria esta mesma opinião.
Se tivesse de escolher um combate,
hoje, em Portugal, ou dois, ou três, quais seriam?
A eliminação do direito administrativo, da ideia de que devam
existir modos jurídicos especiais para as nossas interações com o Estado.
A ideia de identidade nacional é determinante em e para quê?
Não o é, com
certeza, nas declarações que fazemos ou nas teorias que formulamos. Quando
muito, a ideia de identidade nacional coincide com certas maneiras habituais de
fazer coisas — mas estas incluem, muitas vezes, a possibilidade de nos
distanciarmos das maneiras habituais dos nossos vizinhos.
Mas isso não é, afinal, uma forma de comparação?
Não. Não me
sinto nada tentado a fazer comparações do género: nós cá e eles lá. Há
muito tempo ouvi a história de uma pessoa a orgulhar-se da sua educação
cosmopolita, de ter lido Stendhal e de ter ido ao Prado. E houve alguém também
presente que lhe perguntou: “Operado a quê?” Acho a pergunta perfeita.
Quer queiramos quer não, subsiste uma ideia de hierarquia na
aproximação à arte e ao saber.
Que tipo de
hierarquia?
No acesso, na capacidade de entender, de relacionar com
conhecimento adquirido e referenciais históricos e estéticos...
Existe saber
mais, saber menos, aprender, não perceber, discordar...
E não existe também ser-se mais ou menos cosmopolita?
Há a frase
assassina do Fernando Pessoa, numa conversa com Mário de Sá-Carneiro, em que
ele lhe diz algo como: ‘O seu problema, meu caro, é que você admira as grandes
cidades.’ Para Pessoa, esta admiração pelas grandes cidades é uma forma de
provincianismo, e eu concordo com ele. Veja-se, por exemplo, a atração dos
jornalistas contemporâneos por Nova Iorque.
No seu caso, formou-se na
Universidade de Lisboa e depois na University of Minnesota. O contacto com a
filosofia analítica norte-americana não foi determinante?
Foi, mas a minha ideia de perceber coisas é mais
antiga do que o meu interesse pela filosofia. Sinto uma afinidade grande com
pessoas que não aldrabam aquilo que não percebem e que tentam clarificar e
explicar bem aquilo que percebem, sem que, em nenhum momento, achem que podem
dissolver todas as suas incompreensões.
O que pode definir tanto
um filósofo como um pedagogo, certo?
Há uma relação muito antiga entre filosofia e ensino
de Filosofia, mas o tipo de clareza que se deve procurar pode existir também
numa aula de Francês ou de Matemática.
O professor deve orientar
os alunos para a vida através de uma pedagogia específica?
A única coisa que me interessa no ensino é dar
aulas.
Ser professor é uma
vocação?
Não o vejo assim. Mas falar com pessoas sobre coisas
que não se percebe muito bem é, para mim, muito importante. Um filósofo que
admiro costumava referir-se à sua longa e ilustre carreira de filósofo e de
professor como a de alguém que conduzia a sua educação em público.
Essa afirmação
interessa-lhe como sinal de quê? De honestidade, de humildade?
Não necessariamente.
Porque é questionável.
Ainda que saber mais seja sempre conhecer e conhecer-se mais, a prática como
professor implica um determinado grau de saber, logo, um estatuto
pré-estabelecido.
Sim, mas não implica saber tudo. A propósito de
humildade, desconfio muito daqueles professores que dizem que aprendem sempre
muito com os seus alunos. Eu não aprendo praticamente nada com os meus alunos.
Começa cada novo semestre
e cada conferência, dizendo aos
auditores: ‘São estes os artigos que tenho; alguns eu acho que são muito
importantes — e vou explicar porquê. O resto é convosco.’
Justamente. Porque há uma parte muito importante do
ensino que se passa nas cabeças dos alunos. E, portanto, o professor não deve
explicar ou fazer tudo, mas deve esperar que os alunos façam qualquer coisa. Há
uma frase que também cito, do Saul Bellow: ‘Eu ensaboo, vocês barbeiam.’
Sou alérgico à noção de discípulo, à ideia de que a
excelência de um aluno é medida pela maneira como ele se parece com os
professores que teve. O melhor que pode acontecer a um ex-aluno meu é pensar
pela sua própria cabeça e ir por aí fora, sem pedir satisfações a ninguém.
Numa conferência, algures nos EUA, defendeu: ‘Muitos daqueles
que reconhecemos como nossos heróis intelectuais não seriam hoje convidados
para os lugares [académicos] através dos quais se tornaram reconhecidos como
tal.’ Antes de mais, quais são os seus heróis intelectuais?
Bem, não
quero especificar, tenho muitos, a maior parte deles mortos...
Pode dar um exemplo de um deles e do porquê de achar que,
hoje, ele não teria hipótese de ser contratado para qualquer dos lugares que
teve na universidade?
Wittgenstein
teria quando muito aquilo que nós chamaríamos em Portugal uma licenciatura em
Engenharia e, em 1929, com base num livro que ele publicara oito anos antes, o Tratactus Logico-Philosophicus, dois
filósofos da Universidade de Cambridge, [Bertrand] Russell e [George Edward]
Moore, decidiram atribuir-lhe um doutoramento. Wittgenstein deu aulas naquela
universidade nos vinte anos seguintes.
O reconhecimento do talento de pessoas cujo conhecimento não
podemos medir deixou de ser possível na universidade?
Eu diria que
não há consequências da admiração. Do facto de eu admirar muito uma pessoa não
se segue quase nada na universidade, pelo menos nas Humanidades. E esse é um
problema muito sério.
Pode dar exemplos na área da crítica literária?
Um deles é o
de William Empson, talvez o maior crítico literário do século XX, que teve
muitos problemas nas universidades em que deu aulas. Hoje, Paul de Manou Harold
Bloom não teriam qualquer hipótese de arranjar um lugar numa universidade.
O caso de George Steiner é uma exceção.
Steiner não é
nem crítico literário, nem filósofo... Sabe, não tenho admiração nenhuma por
ele.
Não? Porquê?
Acho-o um
fala-barato. Dá-nos sempre a impressão de que sabe coisas que não sabe.
E isso é alimentado por quê? Pela aura de intelectual judeu,
poliglota...
É alimentado
pelo modo misterioso como fala de coisas que não são nada misteriosas.
Como é que se reconhece um fala-barato na academia?
Os critérios
são os mesmos dentro e fora da academia: é preciso tempo. Às vezes não se
reconhece um fala-barato à primeira.
Há quem diga que os falsários estão cada vez melhores também a
esse nível.
Relembro-lhe
o princípio do presidente Lincoln: não se consegue enganar toda a gente durante
todo o tempo.
O que resta hoje da ideia de humanismo ligada às Humanidades?
O que me
interessa na ideia das Humanidades na universidade é a possibilidade de uma
conversa, com certeza com imensos mal-entendidos, mas de uma conversa entre pessoas
que se interessam por arte, por filosofia, por história, ... O fato de esta
espécie de conversa comum se dar em termos que não são exatamente idênticos
requer uma tradução constante — o que me parece ser também muito importante
numa conversa entre pessoas que fazem ciências ditas mais sérias ou ciências
ditas menos sérias. Deve ser possível a qualquer pessoa fazer-se entender. Este
esforço de clareza e de tradução deve ser requerido em qualquer lado.
Por mais específico que seja o campo de saber em questão?
É inquietante
e muitas vezes triste a maneira como as pessoas se defendem por detrás das suas
especialidades. E, quanto mais pequenas forem as especialidades, menor é a
probabilidade de haver quem consiga falar com elas e, portanto, menor é a exigência
de justificação.
O que, no caso das ciências humanas, faz aumentar o espírito
de exclusivismo.
Um bocadinho
como Sá-Carneiro admirava Paris, as Humanidades repetem e imitam o pior do pior
das ciências: neste caso, a ideia de que existem pequenas comunidades de
profissionais acessíveis apenas a quem a elas ganhou acesso.
Em What Art is Like [Harvard 2012], para abordar o discurso sobre a arte, parte dos livros de Alice, de
Lewis Carroll. Porquê?
Muitas vezes certos problemas parecem-nos muito difíceis
porque nos esquecemos das soluções simples. Há certos livros muito complicados
que são intuitivamente evidentes para pessoas que não dispõem das ferramentas
para perceber a complicação desses livros. Tive um professor que dizia que,
para se perceber A Origem da Obra de Arte,
um ensaio muito complicado e exasperante de Heidegger, era preciso ter cinco
anos de idade.
Logo no início do ensaio, surge Humpty Dumpty, que se diz
capaz de explicar a Alice todos os poemas alguma vez inventados e até alguns
ainda por inventar. Mas, apesar de ele ter respondido a todas as perguntas
dela, no final, o poema permanece tão estrangeiro
para Alice como na primeira leitura.
O Humpty
Dumpty é como um professor de Literatura, de Linguística ou de Filosofia. Ele é
uma máquina de produzir explicações.
Quase a tombar do muro?
É uma máquina
de produzir explicações porque acha que as palavras querem sempre dizer aquilo
que ele quer que elas queiram dizer. É o oposto da ideia de comunidade e da
convicção de que, para conseguirmos tornar uma coisa explícita, ou
compreensível, ou inteligível, temos de tentar perceber as outras pessoas. O
Humpty Dumpty não precisa de mais ninguém.
No mesmo ensaio, diz que tem de existir um patamar comum de
familiaridade com a obra de arte, mas que, em simultâneo, tem de aceitar-se que
não existe uma linguagem da poesia ou uma linguagem da arte. Ou seja, aquilo
que não é familiar é intrínseco na obra de arte ou na obra literária?
Sim, mas isso
não é caraterística exclusiva do discurso sobre a obra de arte; é caraterístico
de qualquer conversa. As pessoas começaram a conversar sobre coisas muito antes
de nós termos nascido. Como é que nós somos admitidos à mesa dos crescidos, à
mesa das conversas? De muitas maneiras diferentes. É como entrarmos numa sala
em que as pessoas já estão todas a conversar: temos de nos adaptar aos termos
da conversa já existentes e, depois, só devagarinho e quando as pessoas nos dão
atenção, é que podemos dar o nosso contributo. E, depois, há pessoas que não se
calam...
Quais são as melhores armas para nos fazermos ouvir: a
originalidade, a tenacidade, a riqueza do ponto de vista?
É tão
completamente contingente. Muitas vezes, depende da sorte. Às vezes, depende da
riqueza do ponto de vista, sim, mas também da capacidade das pessoas que já
estão a falar prestarem atenção a quem acabou de entrar na sala. Esse é um
talento muito importante: o de saber prestar atenção, por exemplo, a quem está
calado ou a quem diz algo de que não se está à espera; não imaginar apenas que
as pessoas que estão ali há muito tempo é que têm coisas interessantes com que
contribuir. Não se trata de um talento de uma determinada profissão: é um
talento pessoal. Há pessoas para quem tudo o que importa são as credenciais, há
outras que privilegiam antes o que as pessoas dizem (como fez Russell em
relação a Wittgenstein).
Porque é que deixou de escrever crónicas para o Observador [publicou-as semanalmente
entre 2014 e 2017, reuniu-as em Erro
Extremo]?
Queria acabar
um livro, e deixei de ter tempo para as escrever como achava que deviam ser
escritas; e quando pensei que as ia poder recomeçar a minha profissão
alterou-se inesperadamente e continuei a não ter tempo.
Essas suas crónicas, a que poderíamos chamar pequenos ensaios,
motivaram reações bastante antagónicas. Metaforicamente, houve leitores que
disseram que o Miguel só conseguia falar em chinês e outros defenderam que
ninguém diria melhor o que disse. O que é que pretendia quando começou a
escrevê-las?
Não tinha
nenhuma agenda, apenas um jornal hospitaleiro, o compromisso de tentar
escrevê-las, de encontrar um tom que me fosse agradável e de continuar enquanto
achasse que estava a fazê-lo bem. Muitas vezes escrevia sobre coisas que me
intrigavam, noutras sobre coisas que me faziam rir, me interessavam ou eram
muito importantes para mim. O que eu
fazia nessas crónicas é exatamente aquilo que faço nas minhas aulas: comparar
coisas diferentes e distinguir coisas parecidas.
Não necessariamente o avesso?
Às vezes,
sim, mas não necessariamente. E desconfiar intuitivamente daquelas coisas que
são ditas com um tom muito enfático por muitas pessoas. Quando há muitas
pessoas a dizerem a mesma coisa, adotam um tom muito caraterístico...
Usado, por exemplo, no name
dropping?
É uma parte
desse tom.
Um tone dropping?
Sim, um tom
no sentido prosódico do termo. Quase todas as pessoas na televisão, nas arenas
políticas, nas conferências profissionais, usam esse tom: o de
alguém-que-está-a-ensinar-coisas. É um tom que sugere que elas vêm coisas que
não são evidentes para mais ninguém e que elas nos vão explicar a todos
como-é-que-essas-coisas-são.
Em grande parte, o sucesso dessas pessoas depende da absoluta
evidência e banalidade do que dizem.
Mas o sucesso
depende de os outros estarem convencidos de que eles sabem mais. Trata-se de
pessoas que têm acesso a conhecimentos e a segredos especiais e que se dignam
comunicá-los, com o tom um bocadinho impaciente e um bocadinho enfadado de um
professor para quem os alunos são todos estúpidos. É o tom habitual dos debates
na televisão e das discussões políticas e intelectuais em Portugal.
É o tom também de um certo discurso intimidatório relativo à
arte e à literatura.
É aquilo a
que um crítico literário chamava ‘demonstrações no sentido militar do termo’.
Hoje, muitos visitantes dos museus mais famosos limitam-se a
tirar selfies ou fotografias às obras
expostas, quase ou sem mesmo olharem diretamente para elas. Como o explica?
O que conta
para essas pessoas é o fato de terem estado na vizinhança de certos quadros. É
como tirar fotografias ao pé da Torre Eiffel ou colecionar autógrafos de
pessoas famosas.
Nas paredes dos barracões visitáveis em Auschwitz-Birkenau,
por exemplo, confundem-se hoje as inscrições originais feitas pelos
prisioneiros com outras, entretanto sobrepostas por visitantes, com mensagens
como: X loves Y ou X was here.
O meu impulso
imediato é dizer que existe um contraste horrível entre a frivolidade dessas
inscrições sentimentais contemporâneas e a seriedade daquilo que se passou
naquele sítio. Mas depois, a seguir, faço uma pausa e digo que todas as coisas
duram e continuam por causa desses acrescentos fúteis.
Na medida em que eles são uma forma de apropriação?
Sim, como as
árvores com coisas marcadas a canivete e como as inscrições triviais que são
apagadas e depois reinscritas e por aí em diante. Aquilo a que hoje chamamos
Auschwitz é Auschwitz com aquilo que se passou lá e com o atrito causado pelas
pessoas que visitaram um sítio onde já não se passava aquilo que era, no fundo,
a razão pela qual, na maior dos casos, elas ali estavam.
A relação das pessoas com a obra de arte está dependente
sobretudo de quê?
Das próprias
pessoas. O critério para a relevância da arte não é que a arte seja um
documento da história do espírito humano... Para já, falar da arte em geral
faz-me confusão porque o acho um bocadinho exagerado. Falar da arte com ‘A’
grande assusta-me.
Qual é a alternativa?
Falar de
objetos individuais, de coleções ou de grupos de objetos.
É a ideia de autoridade da Arte o que o assusta?
Normalmente,
quando se fala da arte com ‘A’ grande está-se a imaginar uma coleção de objetos
e uma espécie de dever indiscriminado de dedicar a mesma afeição a todos esses
objetos.
Ou seja, normativiza-se a aproximação?
Claro. Não quer
dizer que não haja muitos, infinitos, objetos desses que não sejam merecedores
da mais extraordinária afeição (ainda que eu não saiba muito bem o que é um
objeto merecedor da nossa afeição, mas essa é outra discussão). O critério da
relação com a arte não pode ser, por exemplo, ter estado na proximidade de
muitos desses objetos ou ter lido muitos livros. Tal como o critério para
conhecer o género humano não é conhecer muitas pessoas.
No entanto, fala da importância de a arte ser algo contíguo à
pessoa. Defende que ‘a arte é algo que nos acontece’ e que o discurso sobre ela deve
assemelhar-se a, como disse Alice, ‘enviar presentes para os nossos próprios
pés’. Quer explicar?
As coisas que
realmente nos importam são aquelas sem as quais não nos conseguimos imaginar.
São muitas vezes as coisas que queremos ter ao pé de nós e há muitas maneiras
de podermos ter coisas ao pé de nós: quer tê-las literalmente, quer pensar
nelas constantemente, quer, em certos casos, porque isso é tecnicamente possível,
repeti-las sob forma diminuída, como, por exemplo, quando assobiamos ou nos
lembramos de uma linha melódica. Esse tipo de proximidade leva-nos
frequentemente a usar essas coisas que são importantes para nós na descrição de
uma série de outras coisas. Eu descrevo aquilo que não percebo bem com a ajuda
daquilo que me é mais próximo. O repertório das coisas que me são próximas
varia imenso. A relevância da arte não é dada por eu ter iluminações
particulares que em mim são causadas pela arte, mas pela maneira como ela não
se consegue separar de todas as outras coisas que são importantes para mim:
pessoas, animais, coisas, ideias, argumentos, opiniões, emoções, ...
É importante existir uma relação física com o objeto
artístico?
Não sei se é
física, mas tem de haver uma relação. Stendhal observou uma coisa que é
exatamente o oposto do famoso síndrome de Stendhal [segundo o qual o contato
com uma obra de arte pode ser tão intenso que chega a provocar perturbações
físicas], nomeadamente que a proximidade em relação às coisas não assegura que
o que quer que seja aconteça. Há o episódio muito famoso, em A Cartuxa de Parma, em que o
protagonista, Fabrice, fascinado por Napoleão, foge de casa para ver o grande
homem e aterra na batalha de Waterloo, para descobrir que esta, afinal, não se
assemelha a nada de tudo o que ele lera sobre Napoleão e sobre batalhas.
Depois, há uma série de acidentes, Fabrice acaba por cair e torcer um pé e é
salvo por um sargento e, por fim, evacuado na retirada do exército francês. A
certa altura, deitado numa maca, ele pergunta ao sargento: ‘Então é isto que é
uma batalha?’ E o sargento, muito experimentado, responde: ‘Um bocadinho.’
Fabrice esteve lá e não percebeu nada. As pessoas podem ter ido ao Prado ou ter
sido operadas e não perceberem nada de nada. Pode haver alguém que nunca foi ao
Prado, mas que percebe melhor As Meninas do
Velásquez do que uma pessoa que passou lá a vida.
No ensaio Amigos de
Objetos Interpretáveis [Harvard, 2001; Assírio & Alvim, 2003], defende
que os objetos inanimados ganham vida através da sua interpretação, no contexto
de ‘sociedades de amigos’. Quer defini-las?
‘Sociedade de amigos’ é o modo como os quakers
se referem às suas assembleias, que são conduzidas em silêncio. Nesse contexto,
que é teológico, a comunicação entre as pessoas e a interação com Deus não se
dá de um modo verbal. Os amigos serão ‘comunidades interpretativas’, como lhes
chamou o crítico Stanley Fish, pessoas que estão em acordo e em desacordo em
conjunto, mas, muitas vezes, são também pessoas que sabem que não precisam de
dizer nada umas às outras.
Porque existe uma familiaridade entre elas?
Exato, muitas vezes a
familiaridade não se traduz em acordos explícitos, nem em proposições que nos
merecem o mesmo grau de aprovação, mas traduz-se, antes, em não sentirmos a
necessidade de dizer mais o que quer que seja sobre esse assunto. Imagine que
está num grupo de admiradores de Velázquez e entra uma pessoa que diz: ‘Gosto
tanto, tanto, d’As Meninas!’ Os outros olham para ele com
um ar esquisito, porque não é preciso dizer aquilo. A nossa admiração nem
sempre tem de ser explicitada através de palavras, muitas vezes pode
traduzir-se, antes, em ações ou omissões.
A afirmação de que o ensino é uma conversa traduz-se em quê, na sua ação
como diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa?
A minha responsabilidade
é assegurar-me de que a conversa continua.
Essa conversa existia antes?
Nem sempre existiu. Mas a
minha responsabilidade é assegurar-me de que ela continua, de que as pessoas
não são admitidas à conversa por causa das habilitações, de que existam
ambientes em que não se façam perguntas (como ‘quem é esta pessoa que apareceu
aqui?’), mas se oiçam argumentos. Esta é a maior escola de Humanidades em
Portugal e eu tomo muito a sério que todas as pessoas que estudam e que ensinam
aqui possam participar nas várias conversas e nos vários desacordos que
caracterizam uma escola.
Imagino que os anticorpos a esse seu posicionamento sejam imensos...
É possível. Mas as minhas
ambições são muito moderadas e muito conservadoras. Não quero transformar a
natureza humana. E, ainda mais difícil do que transformar a natureza humana,
seria transformar a Faculdade de Letras de Lisboa.
Einstein dizia que é mais difícil desagregar um preconceito do que um
átomo.
Ele tinha toda a razão e,
aliás, a evolução da Física mostrou isso.
Como é que se explica que esteja aqui, nesta posição, hoje?
Deve-se a uma série de
acasos. Estudei aqui na minha licenciatura e no meu mestrado. Depois, decidi ir
estudar para outro lado e, nessa altura, pensei que era altamente improvável
que eu voltasse a Portugal tão cedo.
Porquê?
Noutros lugares, havia
uma audiência e um ambiente mais acolhedor para o tipo de coisas que me
interessavam. Eu não via isto como drama nenhum e muito menos me vi ou veria
como um exilado — aliás, esta palavra é séria demais para se aplicar neste
contexto.
Temia ser um estrangeirado? Como o foi Jorge de Sena, por exemplo, quando
regressou após o 25 de abril e a academia lhe fechou as portas?
O caso dele é complicado
porque ele era um engenheiro que se reinventou como professor de Literatura e
em Portugal isso não seria possível. A academia, sobretudo nas Humanidades,
nunca mostrou um discernimento especial e não havia por aqui, infelizmente,
(ELIMINAR Bertrand) Russells e Moores que pudessem olhar para pessoas com um
talento especial. Eu digo isto, ainda que, para mim, Jorge de Sena, um poeta
notável, não tenha sido um crítico literário ou um historiador de literatura
notável. Acho é que foi uma grande perda para a universidade portuguesa não lhe
ter dado mais atenção. Como o foi no caso de Ruy Belo, também um grande poeta
do século XX, que, aliás, tinha um doutoramento.
Quem é que o ouviu a si?
Durante a minha
licenciatura em Lisboa, o número de bons professores que tive conta-se pelos
dedos de uma só mão, e de uma pessoa com uma deficiência na mão. A maior parte
dos professores que tive foram muito maus.
Maus em que sentido?
O nome do mal é legião,
havia muitas variedades. Havia pessoas que começavam a aula das nove ao quarto
para as dez e interrompiam-na às dez e vinte para tomar um café; uma preguiça
extraordinária! Havia pessoas que improvisavam, outras que mudavam as regras a
meio. Havia pessoas que não se calavam, outras que não abriam a boca. E,
depois, havia alguns, muito poucos, que eram pessoas extraordinárias, exemplos
de professores, que ainda hoje estimo muito.
Quando terminei o
mestrado, dei aulas como assistente durante dois anos, até que decidi ir fazer
o doutoramento na América e fui admitido em várias universidades. Quando
comuniquei a minha decisão ao então presidente do Conselho Científico, uma
personagem (ELIMINAR venerável) com uma longíssima carreira de modéstia
intelectual continuada, olhou para mim com um ar condescendente, disse-me que
eu era muito novo para pensar em doutoramento, aconselhou-me a não partir e,
por fim, esclareceu-me que, então, o meu contrato com a faculdade teria de
cessar. Pensei que não regressaria jamais.
Mas voltou, depois de concluir o doutoramento. Porquê?
Por razões familiares e
pessoais. E, durante o primeiro ano a dar aulas na Faculdade de Letras,
convenci-me de que tinha feito o pior erro da minha vida.
Nisso pesou também a comparação entre os alunos portugueses e os alunos
norte-americanos?
Os meus alunos de
pós-graduação aqui são tão bons como os de pós-graduação lá. Já os de
licenciatura são francamente piores. Nos Estados Unidos, pelo menos nas
Humanidades, os alunos de licenciatura são melhores do que os de pós-graduação.
Quanto às pós-graduações, nos Estados Unidos, para as Humanidades vão as
pessoas menos espertas e menos interessantes — os realmente espertos, vão fazer
outras coisas.
O que distingue a universidade
portuguesa da americana?
A falta de autonomia, e a falta de pessoas interessadas na
autonomia.
Então, o que o fez ficar em Portugal e na Faculdade de Letras?
O António Feijó tinha
voltado da América um bocadinho antes, estava numa situação semelhante à minha
e, no fundo, embora nunca tenhamos falado sobre isso, se calhar fizemos das
nossas fraquezas forças. Quase como terapia ocupacional, envolvi-me na criação,
com ele, de um programa de pós-graduação muito pequenino, em Teoria da
Literatura. No primeiro ano, 1991, ainda só com oferta de mestrado, tivemos
quatro alunos e dois desistiram antes do Natal. Depois, o programa tornou-se
cada vez mais interessante e, ao longo de 25 anos, foram aparecendo cada vez
mais alunos. Hoje, temos sessenta alunos e pós-doutorandos, e o programa, de
que me orgulho muito, é um dos melhores do mundo. Por antonomásia, chamamos-lhe
O Programa. Paralelamente, temos uma revista online, ‘Forma de Vida’, com cinco mil seguidores e recensões novas
todas as semanas, workshops semanais
durante todo o ano letivo. Participamos em muitas outras atividades e temos
muitos spin-offs, pessoas que estão
ou estiveram ligadas ao Programa, têm ideias e vêm ter connosco.
Por que é que esse saber e esse discurso ainda não saíram da universidade
para o espaço público?
Essas coisas não se
passam por desígnio ou por intenção. As propostas do Programa são tão
completamente variadas que não existe um fio condutor — por isso, chamamos-lhe,
genericamente, de Humanidades. Há ex-estudantes nossos que agora estão, dentro
e fora de Portugal, noutras universidades; uns são poetas, outros distribuem
flores, outros são estivadores, outros são investigadores... A ideia de
controlo institucional não nos interessa.
Por exemplo, permanece a ideia de que o discurso jornalístico e o discurso
académico não podem cruzar-se, habitualmente para desprestígio do primeiro.
Quando os jornalistas
culturais falam com professores de Humanidades, falam habitualmente com outro
tipo de professores, e se calhar porque precisam de uma imagem tradicional de
professor. Aqui, como no estrangeiro, muito do que se faz nas Humanidades não
me interessa nada ou particularmente. Mas o ponto aqui é haver um conjunto de
pessoas que conseguem pensar de uma maneira distintivamente diferente.
A licenciatura em Estudos Gerais da Universidade de Lisboa existe desde
2011 e é inédita a vários títulos. Congrega várias escolas fundadoras, para
oferecer uma formação nas ‘artes liberais’, e privilegia a escolha individual
do aluno pelo seu currículo de interesses, definida com o apoio de um tutor.
Mas é inevitável perguntar-se: no final, serve para quê?
Quando as pessoas fazem
essa pergunta, estão a pensar numa profissão. E, se imaginam que os cursos
superiores servem para uma profissão, então, todo o resto da equação vai
aparecer errado.
Esse é o argumento principal do ensaio A
Universidade como deve ser, que publicou recentemente, em coautoria com
António Feijó, e onde afirmam que ‘a valorização do emprego como fim último, se
não único, da educação universitária revela uma aspiração social pobre’.
Há toda esta ênfase na
empregabilidade, mas ninguém está em posição de garantir emprego a quem quer
que se forme em qualquer curso, exceto no caso em que existe um monopólio
protegido, que é o caso do exercício das profissões médicas.
A lógica é a de que o Estado financia o ensino superior público, logo,
deveria assegurar essa empregabilidade...
Mas o Estado só pode garantir
todos os empregos na Coreia do Norte. Não há possibilidade de garantir que uma
pessoa com um curso de engenharia vá ser engenheiro ou que alguém com um curso
de arquitetura vá ser arquiteto. É muito importante as pessoas terem emprego e
não há nada de pouco dignificante em trabalhar como caixa num supermercado ou
em ser estivador. Isto não significa nenhuma espécie de displicência da minha
parte em relação a isso. Quero simplesmente chamar a atenção para o fato de que
aquilo que as pessoas fazem e aquilo que as pessoas estudaram não está
naturalmente ligado; há ligações, mas, com exceção da medicina, elas não são
causais.
A mudança de mentalidades necessária para que se admitir esse fato é tão
revolucionária como aceitar-se que, no futuro, as pessoas serão sobretudo freelancers...
Ou como pensar pela
própria cabeça... Mas, é capaz de ter ocorrido entretanto mudanças geracionais
importantes e, hoje, os miúdos que se formam já não estão tão interessados pela
ideia de terem um único emprego ao longo de toda a vida. Vão provavelmente
mudar de emprego e reinventar-se várias vezes. Alguns deles vão ter ideias e,
como não têm possibilidade de arranjar um emprego por conta de outrem, criarão
o seu próprio emprego. Tudo isto é uma consequência de vivermos em Portugal,
uma sociedade livre e rica, como só o são um número muito pequeno de países.
Está a ironizar?
Não. Sempre que se fala
das dificuldades portuguesas, eu sugiro que se olhe para as estatísticas do
Burkina Faso. Ou, já agora, que se olhe para os famosos países de expressão
portuguesa, aos quais nós somos tão iguais. Portugal tem mais a ver com a
Suécia do que com o Brasil.
É por isso que diz que a lusofonia é ‘uma má ideia’?
Ainda ninguém me explicou
a teoria física que transforma os falantes de uma língua em pessoas parecidas
entre si. As pessoas podem falar a mesma língua e estarem em desacordo acerca
de tudo e viverem de maneiras completamente diferentes.
E é por isso que diz que ‘a melhor e única decente política da língua é:
nenhuma’ ou que ‘deviam desaparecer todas as cátedras portuguesas pagas pelo
governo português em universidades estrangeiras’?
A não ser os linguistas
ou certos atletas poliglotas, raras vezes as pessoas estão interessadas numa
língua. O que lhes interessa é aquilo que saber uma língua torna possível. Por
exemplo, eu sempre quis ler Tolstói em russo, e por isso aprendo russo.
Garantem-me as pessoas que sabem russo que quem consegue lê-lo nessa língua
consegue perceber em Tolstói coisas que os que o lêem em tradução não conseguem.
Não acredito completamente nessa teoria. Acho que, para a esmagadora maioria
dos efeitos, é suficiente ler Tolstói em tradução. Aliás como, para todos os
efeitos relevantes, basta ler Camões em espanhol.
Admite exceções?
Não vou descontar a
existência de casos em que a famosa língua original seja importante. Mas para a
esmagadora maioria das pessoas as traduções são suficientes.
Então, aceita que o Estado apoie programas de tradução?
A ideia de um apoio à
tradução de obras literárias para outras línguas como missão política faz-me
logo franzir o nariz. Porque com o apoio vem a sugestão de que o acesso àquelas
obras é o acesso a uma alma que está escondida.
Vem também a imposição de uma determinada autoridade.
Pois, e vem uma
metafísica de que eu não partilho. Eu não sei russo, e li Tolstói em traduções
que não foram pagas por nenhuma agência russa. Portanto, ninguém me estava a
dizer que eu ia ter acesso às qualidades extraordinárias da alma russa por
estar a ler Tolstói. Dito isto, não quer dizer que eu não ache que haja
qualidades extraordinárias na alma russa, mas dispenso a ajuda das agências
públicas, muito obrigado.
Ler torna as pessoas melhores?
Ou piores. Na maior parte
dos casos, continuamos a ser assim-assim.
Ou seja, ler não influencia o caráter?
Pode influenciar, mas a
relação não é necessária, é contingente.
A questão moral não está envolvida?
Muitas vezes está, mas
não necessariamente. Há quem não se consiga descrever sem falar de certos
livros que lhe fizeram funda impressão, mas essa é uma muito pequena minoria de
pessoas. Concebo que haja uma pessoa que diga: ‘Proust mudou a minha vida.’ Mas
é uma afirmação quase patológica e, normalmente, as pessoas que dizem isso,
estão a exagerar, estão a tentar impressionar alguém.
Como é que define uma mente independente, em termos intelectuais e em
termos académicos?
É uma pessoa que tem
pouca paciência para os tontos. É uma pessoa que dá atenção aos raciocínios das
outras pessoas e aos seus próprios raciocínios. É uma pessoa que acha que as
questões da verdade não se decidem por referendo e, portanto, não se decidem
pela opinião da maioria. É uma pessoa que, ao mesmo tempo, confia nas opiniões
das outras pessoas, mas desconfia das opiniões partilhadas.
Qual é o preço de não ficar, como Montaigne, fechado numa torre? É preciso
ter um discurso provocatório? É preciso forçar os outros ao diálogo?
Às vezes, e, se somos
pagos para isso, como acontece quando somos professores, com certeza que sim. A
descrição clássica mais antiga e talvez mais extraordinária das dificuldades
desta relação é a maneira como Sócrates fala de si próprio em relação a Atenas,
na Apologia de Sócrates. Ele diz algo
como isto: ‘Sou um pateta que anda a fazer perguntas às pessoas pelos caminhos
de Atenas, todos me acham um bocadinho excêntrico, não tenho grande medo do que
me vá acontecer a seguir, mas, ao mesmo tempo, estou completamente ligado a
esta sociedade de idiotas de que faço parte e não posso ir pregar para outra
freguesia.’ No Críton, quando já foi
condenado à morte e um amigo fretou um barco e subornou os guardas para o
ajudar a fugir da prisão, Sócrates sugere que mudar de cidade é um plano
injusto.
É uma ideia de pertença.
É a ideia de que Sócrates
e Atenas é como bifes e batatas fritas. São duas coisas que vão muito bem
juntas.
Sócrates e muitas pessoas
muito menos espertas do que Sócrates não achavam que fossem pessoas especiais,
antes achavam que precisavam das outras pessoas. E este é um ponto filosófico
muito importante: não acharmos que o mundo começou connosco, que vai acabar
connosco e que não existe mais ninguém. Aliás, a cultura contemporânea sublinha
esta possibilidade de não haver ninguém melhor que nós. Há poucas pessoas que
gostam de admitir que, para serem as pessoas que são, precisam das outras
pessoas, e que pensam nisso como uma responsabilidade.
Hoje em dia, são cada vez menos as pessoas que identificam, ainda menos as
que compreendem, a alusão a um clássico...
Mas, se estiverem
interessados, a gente explica-lhes, aqui, na universidade. Entre outras coisas,
é para isso que ela serve. Ler Platão ou Shakespeare não significa ter acesso a
conteúdos cognitivos ou, ainda menos, a valores que eles tenham veiculado. Muitas vezes é reconhecer coisas em que
tínhamos pensado, mas ditas por outras pessoas. Wittgenstein disse num prefácio
de um dos seus livros que este só seria percebido por pessoas que já tivessem
pensado aqueles pensamentos.
Voltamos à tal ‘sociedade dos amigos’, que partilha uma familiaridade de
base.
Há dois mil e quinhentos
anos, Platão observou, astutamente, que a experiência principal da aprendizagem
é anamnésica, é uma experiência de rememoração. Como se disséssemos: ‘Ah, estou
a lembrar-me de uma coisa que afinal sabia!’
Nos clássicos, estamos a lembrar-nos de quê? De uma universalidade
qualquer, que transcende o texto?
Não acho que seja isso.
Estamos a lembrar-nos de pensamentos que podíamos ter tido ou já tivemos.
Imagine alguém que está a assistir a uma representação do Rei Lear. Logo no início, ouve a Cordélia dizer: ‘Eu não consigo
içar o coração até à boca.’ E pensa: ‘É extraordinário como eu já pensei isto.’
Como explica que isso aconteça?
Porque somos parte da
mesma espécie e por pura coincidência. Ou então, pela extraordinária qualidade
de Shakespeare, que dá muitas vezes a impressão de nos conhecer melhor do que
nos conhecemos a nós próprios.
Que livros lê por puro prazer?
Romances.
Qual foi o último que leu?
Pierrette, de Balzac.
Pode indicar cinco ou seis clássicos que gostava que
fossem lidos pelos seus alunos?
Os seis
romances de Jane Austen, ou pelo menos cinco deles.
Bibliografia:
Hermenêutica e Mal-Estar (INCM,
1987, Prémio de Ensaio do Pen Club Português) Manners of Interpretation: The Ends of Arguments in Literary Studies (State
University of New York, 1993; INCM, 1994)
The Matter of Facts: On
Invention and Interpretation (Stanford University Press, 2000)
Artigos Portugueses (Assírio
& Alvim, 2002; ed. aumentada, Documenta, 2015)
Amigos de Objetos Interpretáveis (Assírio & Alvim,
2003),
What Art Is Like, in Constant Reference to the Alice
Books (Harvard University Press, 2012)
Erro Extremo (Tinta-da-China, 2017)
Entrevista Miguel Tamen
Poucas vezes surgem em
Portugal meteoritos como este, chamado Miguel Tamen, professor com interesses
em filosofia e literatura, filósofo, formado por cá, pós-graduado na América,
recém-eleito, por maioria, diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Manifesto opositor do acordo ortográfico, da
auto-indulgência, do paternalismo do Estado e das instituições, das grandes
convições pessoais como da pedagogia dos chamados grandes valores estéticos.
A sua ideia de universidade é democrática, iconoclasta e crítica, no sentido
revolucionário da palavra. Vá se lá saber se este
espírito extraterreste conseguirá atingir o solo.
Nos seus livros prefere a sugestão à afirmação, a comparação e
a analogia inesperada...
O que eu faço
é relacionar coisas diferentes e, portanto, sugerir que coisas diferentes são
parecidas ou distinguir entre coisas que as pessoas pensam que são parecidas.
À procura de quê? De um ponto comum entre perspetivas
diferentes?
À procura de
perceber coisas que não percebo e às quais posso aceder comparando-as com
coisas que conheço um pouco melhor ou com outras coisas que me parece que são
parecidas.
Quando estão em viagem, caricaturalmente, os portugueses têm
tendência para compararem as paisagens estrangeiras com as paisagens domésticas.
Por exemplo, estão diante do Taj Mahal e comparam-no com... o Mosteiro dos
Jerónimos. Suponho que rejeite esta procura da familiaridade que é, afinal, uma
forma de recusa do que é estrangeiro.
Num certo
sentido essa é a perspetiva de toda a gente. A única maneira de alguém perceber
alguma coisa é comparar essa coisa com outras que já conhece; tentar imaginar
pontos de semelhança entre coisas que lhe são muito familiares e coisas que lhe
são menos familiares. Mas creio que se estava a referir a uma embirração
recorrente minha: contra a redução do mundo àquilo que nos é familiar e contra
a tentativa de descrever o mundo como simplesmente obedecendo às categorias e
descrições que nos são mais próximas e comezinhas.
O que é identificável, em especial, no modo de ser português?
Sim. É uma
forma particular de loucura, que consiste em imaginar que todo o mundo gira à
volta de Portugal.
Um messianismo espiritual...
... que é
simplesmente um mecanismo de consolação por não haver nenhuma forma de
messianismo mais musculado que alguém em Portugal tome a sério. Portanto,
imagina-se que a língua portuguesa é a língua das línguas, que o futebol
português é diferente do futebol espanhol ou que a poesia portuguesa é
diferente da poesia eslovena.
Em que é que se define como português?
Um certo
cartão de cidadão?
Só? Nasceu aqui...
Nasci e vivi
a maior parte do tempo em Lisboa. Não me passa pela cabeça deixar de ser
português, porque, tirando casos de emergência (pessoas perseguidas,
apátridas...), a ideia de mudar de nacionalidade não faz para mim sentido
nenhum. Mas não sinto nenhuma responsabilidade ou peso especial por ser
português. Não sinto que deva dizer ou pensar certas coisas por ser português.
Aliás, se fosse esloveno, norueguês ou tanzaniano, teria esta mesma opinião.
Se tivesse de escolher um combate,
hoje, em Portugal, ou dois, ou três, quais seriam?
A eliminação do direito administrativo, da ideia de que devam
existir modos jurídicos especiais para as nossas interações com o Estado.
A ideia de identidade nacional é determinante em e para quê?
Não o é, com
certeza, nas declarações que fazemos ou nas teorias que formulamos. Quando
muito, a ideia de identidade nacional coincide com certas maneiras habituais de
fazer coisas — mas estas incluem, muitas vezes, a possibilidade de nos
distanciarmos das maneiras habituais dos nossos vizinhos.
Mas isso não é, afinal, uma forma de comparação?
Não. Não me
sinto nada tentado a fazer comparações do género: nós cá e eles lá. Há
muito tempo ouvi a história de uma pessoa a orgulhar-se da sua educação
cosmopolita, de ter lido Stendhal e de ter ido ao Prado. E houve alguém também
presente que lhe perguntou: “Operado a quê?” Acho a pergunta perfeita.
Quer queiramos quer não, subsiste uma ideia de hierarquia na
aproximação à arte e ao saber.
Que tipo de
hierarquia?
No acesso, na capacidade de entender, de relacionar com
conhecimento adquirido e referenciais históricos e estéticos...
Existe saber
mais, saber menos, aprender, não perceber, discordar...
E não existe também ser-se mais ou menos cosmopolita?
Há a frase
assassina do Fernando Pessoa, numa conversa com Mário de Sá-Carneiro, em que
ele lhe diz algo como: ‘O seu problema, meu caro, é que você admira as grandes
cidades.’ Para Pessoa, esta admiração pelas grandes cidades é uma forma de
provincianismo, e eu concordo com ele. Veja-se, por exemplo, a atração dos
jornalistas contemporâneos por Nova Iorque.
No seu caso, formou-se na
Universidade de Lisboa e depois na University of Minnesota. O contacto com a
filosofia analítica norte-americana não foi determinante?
Foi, mas a minha ideia de perceber coisas é mais
antiga do que o meu interesse pela filosofia. Sinto uma afinidade grande com
pessoas que não aldrabam aquilo que não percebem e que tentam clarificar e
explicar bem aquilo que percebem, sem que, em nenhum momento, achem que podem
dissolver todas as suas incompreensões.
O que pode definir tanto
um filósofo como um pedagogo, certo?
Há uma relação muito antiga entre filosofia e ensino
de Filosofia, mas o tipo de clareza que se deve procurar pode existir também
numa aula de Francês ou de Matemática.
O professor deve orientar
os alunos para a vida através de uma pedagogia específica?
A única coisa que me interessa no ensino é dar
aulas.
Ser professor é uma
vocação?
Não o vejo assim. Mas falar com pessoas sobre coisas
que não se percebe muito bem é, para mim, muito importante. Um filósofo que
admiro costumava referir-se à sua longa e ilustre carreira de filósofo e de
professor como a de alguém que conduzia a sua educação em público.
Essa afirmação
interessa-lhe como sinal de quê? De honestidade, de humildade?
Não necessariamente.
Porque é questionável.
Ainda que saber mais seja sempre conhecer e conhecer-se mais, a prática como
professor implica um determinado grau de saber, logo, um estatuto
pré-estabelecido.
Sim, mas não implica saber tudo. A propósito de
humildade, desconfio muito daqueles professores que dizem que aprendem sempre
muito com os seus alunos. Eu não aprendo praticamente nada com os meus alunos.
Começa cada novo semestre
e cada conferência, dizendo aos
auditores: ‘São estes os artigos que tenho; alguns eu acho que são muito
importantes — e vou explicar porquê. O resto é convosco.’
Justamente. Porque há uma parte muito importante do
ensino que se passa nas cabeças dos alunos. E, portanto, o professor não deve
explicar ou fazer tudo, mas deve esperar que os alunos façam qualquer coisa. Há
uma frase que também cito, do Saul Bellow: ‘Eu ensaboo, vocês barbeiam.’
Sou alérgico à noção de discípulo, à ideia de que a
excelência de um aluno é medida pela maneira como ele se parece com os
professores que teve. O melhor que pode acontecer a um ex-aluno meu é pensar
pela sua própria cabeça e ir por aí fora, sem pedir satisfações a ninguém.
Numa conferência, algures nos EUA, defendeu: ‘Muitos daqueles
que reconhecemos como nossos heróis intelectuais não seriam hoje convidados
para os lugares [académicos] através dos quais se tornaram reconhecidos como
tal.’ Antes de mais, quais são os seus heróis intelectuais?
Bem, não
quero especificar, tenho muitos, a maior parte deles mortos...
Pode dar um exemplo de um deles e do porquê de achar que,
hoje, ele não teria hipótese de ser contratado para qualquer dos lugares que
teve na universidade?
Wittgenstein
teria quando muito aquilo que nós chamaríamos em Portugal uma licenciatura em
Engenharia e, em 1929, com base num livro que ele publicara oito anos antes, o Tratactus Logico-Philosophicus, dois
filósofos da Universidade de Cambridge, [Bertrand] Russell e [George Edward]
Moore, decidiram atribuir-lhe um doutoramento. Wittgenstein deu aulas naquela
universidade nos vinte anos seguintes.
O reconhecimento do talento de pessoas cujo conhecimento não
podemos medir deixou de ser possível na universidade?
Eu diria que
não há consequências da admiração. Do facto de eu admirar muito uma pessoa não
se segue quase nada na universidade, pelo menos nas Humanidades. E esse é um
problema muito sério.
Pode dar exemplos na área da crítica literária?
Um deles é o
de William Empson, talvez o maior crítico literário do século XX, que teve
muitos problemas nas universidades em que deu aulas. Hoje, Paul de Manou Harold
Bloom não teriam qualquer hipótese de arranjar um lugar numa universidade.
O caso de George Steiner é uma exceção.
Steiner não é
nem crítico literário, nem filósofo... Sabe, não tenho admiração nenhuma por
ele.
Não? Porquê?
Acho-o um
fala-barato. Dá-nos sempre a impressão de que sabe coisas que não sabe.
E isso é alimentado por quê? Pela aura de intelectual judeu,
poliglota...
É alimentado
pelo modo misterioso como fala de coisas que não são nada misteriosas.
Como é que se reconhece um fala-barato na academia?
Os critérios
são os mesmos dentro e fora da academia: é preciso tempo. Às vezes não se
reconhece um fala-barato à primeira.
Há quem diga que os falsários estão cada vez melhores também a
esse nível.
Relembro-lhe
o princípio do presidente Lincoln: não se consegue enganar toda a gente durante
todo o tempo.
O que resta hoje da ideia de humanismo ligada às Humanidades?
O que me
interessa na ideia das Humanidades na universidade é a possibilidade de uma
conversa, com certeza com imensos mal-entendidos, mas de uma conversa entre pessoas
que se interessam por arte, por filosofia, por história, ... O fato de esta
espécie de conversa comum se dar em termos que não são exatamente idênticos
requer uma tradução constante — o que me parece ser também muito importante
numa conversa entre pessoas que fazem ciências ditas mais sérias ou ciências
ditas menos sérias. Deve ser possível a qualquer pessoa fazer-se entender. Este
esforço de clareza e de tradução deve ser requerido em qualquer lado.
Por mais específico que seja o campo de saber em questão?
É inquietante
e muitas vezes triste a maneira como as pessoas se defendem por detrás das suas
especialidades. E, quanto mais pequenas forem as especialidades, menor é a
probabilidade de haver quem consiga falar com elas e, portanto, menor é a exigência
de justificação.
O que, no caso das ciências humanas, faz aumentar o espírito
de exclusivismo.
Um bocadinho
como Sá-Carneiro admirava Paris, as Humanidades repetem e imitam o pior do pior
das ciências: neste caso, a ideia de que existem pequenas comunidades de
profissionais acessíveis apenas a quem a elas ganhou acesso.
Em What Art is Like [Harvard 2012], para abordar o discurso sobre a arte, parte dos livros de Alice, de
Lewis Carroll. Porquê?
Muitas vezes certos problemas parecem-nos muito difíceis
porque nos esquecemos das soluções simples. Há certos livros muito complicados
que são intuitivamente evidentes para pessoas que não dispõem das ferramentas
para perceber a complicação desses livros. Tive um professor que dizia que,
para se perceber A Origem da Obra de Arte,
um ensaio muito complicado e exasperante de Heidegger, era preciso ter cinco
anos de idade.
Logo no início do ensaio, surge Humpty Dumpty, que se diz
capaz de explicar a Alice todos os poemas alguma vez inventados e até alguns
ainda por inventar. Mas, apesar de ele ter respondido a todas as perguntas
dela, no final, o poema permanece tão estrangeiro
para Alice como na primeira leitura.
O Humpty
Dumpty é como um professor de Literatura, de Linguística ou de Filosofia. Ele é
uma máquina de produzir explicações.
Quase a tombar do muro?
É uma máquina
de produzir explicações porque acha que as palavras querem sempre dizer aquilo
que ele quer que elas queiram dizer. É o oposto da ideia de comunidade e da
convicção de que, para conseguirmos tornar uma coisa explícita, ou
compreensível, ou inteligível, temos de tentar perceber as outras pessoas. O
Humpty Dumpty não precisa de mais ninguém.
No mesmo ensaio, diz que tem de existir um patamar comum de
familiaridade com a obra de arte, mas que, em simultâneo, tem de aceitar-se que
não existe uma linguagem da poesia ou uma linguagem da arte. Ou seja, aquilo
que não é familiar é intrínseco na obra de arte ou na obra literária?
Sim, mas isso
não é caraterística exclusiva do discurso sobre a obra de arte; é caraterístico
de qualquer conversa. As pessoas começaram a conversar sobre coisas muito antes
de nós termos nascido. Como é que nós somos admitidos à mesa dos crescidos, à
mesa das conversas? De muitas maneiras diferentes. É como entrarmos numa sala
em que as pessoas já estão todas a conversar: temos de nos adaptar aos termos
da conversa já existentes e, depois, só devagarinho e quando as pessoas nos dão
atenção, é que podemos dar o nosso contributo. E, depois, há pessoas que não se
calam...
Quais são as melhores armas para nos fazermos ouvir: a
originalidade, a tenacidade, a riqueza do ponto de vista?
É tão
completamente contingente. Muitas vezes, depende da sorte. Às vezes, depende da
riqueza do ponto de vista, sim, mas também da capacidade das pessoas que já
estão a falar prestarem atenção a quem acabou de entrar na sala. Esse é um
talento muito importante: o de saber prestar atenção, por exemplo, a quem está
calado ou a quem diz algo de que não se está à espera; não imaginar apenas que
as pessoas que estão ali há muito tempo é que têm coisas interessantes com que
contribuir. Não se trata de um talento de uma determinada profissão: é um
talento pessoal. Há pessoas para quem tudo o que importa são as credenciais, há
outras que privilegiam antes o que as pessoas dizem (como fez Russell em
relação a Wittgenstein).
Porque é que deixou de escrever crónicas para o Observador [publicou-as semanalmente
entre 2014 e 2017, reuniu-as em Erro
Extremo]?
Queria acabar
um livro, e deixei de ter tempo para as escrever como achava que deviam ser
escritas; e quando pensei que as ia poder recomeçar a minha profissão
alterou-se inesperadamente e continuei a não ter tempo.
Essas suas crónicas, a que poderíamos chamar pequenos ensaios,
motivaram reações bastante antagónicas. Metaforicamente, houve leitores que
disseram que o Miguel só conseguia falar em chinês e outros defenderam que
ninguém diria melhor o que disse. O que é que pretendia quando começou a
escrevê-las?
Não tinha
nenhuma agenda, apenas um jornal hospitaleiro, o compromisso de tentar
escrevê-las, de encontrar um tom que me fosse agradável e de continuar enquanto
achasse que estava a fazê-lo bem. Muitas vezes escrevia sobre coisas que me
intrigavam, noutras sobre coisas que me faziam rir, me interessavam ou eram
muito importantes para mim. O que eu
fazia nessas crónicas é exatamente aquilo que faço nas minhas aulas: comparar
coisas diferentes e distinguir coisas parecidas.
Não necessariamente o avesso?
Às vezes,
sim, mas não necessariamente. E desconfiar intuitivamente daquelas coisas que
são ditas com um tom muito enfático por muitas pessoas. Quando há muitas
pessoas a dizerem a mesma coisa, adotam um tom muito caraterístico...
Usado, por exemplo, no name
dropping?
É uma parte
desse tom.
Um tone dropping?
Sim, um tom
no sentido prosódico do termo. Quase todas as pessoas na televisão, nas arenas
políticas, nas conferências profissionais, usam esse tom: o de
alguém-que-está-a-ensinar-coisas. É um tom que sugere que elas vêm coisas que
não são evidentes para mais ninguém e que elas nos vão explicar a todos
como-é-que-essas-coisas-são.
Em grande parte, o sucesso dessas pessoas depende da absoluta
evidência e banalidade do que dizem.
Mas o sucesso
depende de os outros estarem convencidos de que eles sabem mais. Trata-se de
pessoas que têm acesso a conhecimentos e a segredos especiais e que se dignam
comunicá-los, com o tom um bocadinho impaciente e um bocadinho enfadado de um
professor para quem os alunos são todos estúpidos. É o tom habitual dos debates
na televisão e das discussões políticas e intelectuais em Portugal.
É o tom também de um certo discurso intimidatório relativo à
arte e à literatura.
É aquilo a
que um crítico literário chamava ‘demonstrações no sentido militar do termo’.
Hoje, muitos visitantes dos museus mais famosos limitam-se a
tirar selfies ou fotografias às obras
expostas, quase ou sem mesmo olharem diretamente para elas. Como o explica?
O que conta
para essas pessoas é o fato de terem estado na vizinhança de certos quadros. É
como tirar fotografias ao pé da Torre Eiffel ou colecionar autógrafos de
pessoas famosas.
Nas paredes dos barracões visitáveis em Auschwitz-Birkenau,
por exemplo, confundem-se hoje as inscrições originais feitas pelos
prisioneiros com outras, entretanto sobrepostas por visitantes, com mensagens
como: X loves Y ou X was here.
O meu impulso
imediato é dizer que existe um contraste horrível entre a frivolidade dessas
inscrições sentimentais contemporâneas e a seriedade daquilo que se passou
naquele sítio. Mas depois, a seguir, faço uma pausa e digo que todas as coisas
duram e continuam por causa desses acrescentos fúteis.
Na medida em que eles são uma forma de apropriação?
Sim, como as
árvores com coisas marcadas a canivete e como as inscrições triviais que são
apagadas e depois reinscritas e por aí em diante. Aquilo a que hoje chamamos
Auschwitz é Auschwitz com aquilo que se passou lá e com o atrito causado pelas
pessoas que visitaram um sítio onde já não se passava aquilo que era, no fundo,
a razão pela qual, na maior dos casos, elas ali estavam.
A relação das pessoas com a obra de arte está dependente
sobretudo de quê?
Das próprias
pessoas. O critério para a relevância da arte não é que a arte seja um
documento da história do espírito humano... Para já, falar da arte em geral
faz-me confusão porque o acho um bocadinho exagerado. Falar da arte com ‘A’
grande assusta-me.
Qual é a alternativa?
Falar de
objetos individuais, de coleções ou de grupos de objetos.
É a ideia de autoridade da Arte o que o assusta?
Normalmente,
quando se fala da arte com ‘A’ grande está-se a imaginar uma coleção de objetos
e uma espécie de dever indiscriminado de dedicar a mesma afeição a todos esses
objetos.
Ou seja, normativiza-se a aproximação?
Claro. Não quer
dizer que não haja muitos, infinitos, objetos desses que não sejam merecedores
da mais extraordinária afeição (ainda que eu não saiba muito bem o que é um
objeto merecedor da nossa afeição, mas essa é outra discussão). O critério da
relação com a arte não pode ser, por exemplo, ter estado na proximidade de
muitos desses objetos ou ter lido muitos livros. Tal como o critério para
conhecer o género humano não é conhecer muitas pessoas.
No entanto, fala da importância de a arte ser algo contíguo à
pessoa. Defende que ‘a arte é algo que nos acontece’ e que o discurso sobre ela deve
assemelhar-se a, como disse Alice, ‘enviar presentes para os nossos próprios
pés’. Quer explicar?
As coisas que
realmente nos importam são aquelas sem as quais não nos conseguimos imaginar.
São muitas vezes as coisas que queremos ter ao pé de nós e há muitas maneiras
de podermos ter coisas ao pé de nós: quer tê-las literalmente, quer pensar
nelas constantemente, quer, em certos casos, porque isso é tecnicamente possível,
repeti-las sob forma diminuída, como, por exemplo, quando assobiamos ou nos
lembramos de uma linha melódica. Esse tipo de proximidade leva-nos
frequentemente a usar essas coisas que são importantes para nós na descrição de
uma série de outras coisas. Eu descrevo aquilo que não percebo bem com a ajuda
daquilo que me é mais próximo. O repertório das coisas que me são próximas
varia imenso. A relevância da arte não é dada por eu ter iluminações
particulares que em mim são causadas pela arte, mas pela maneira como ela não
se consegue separar de todas as outras coisas que são importantes para mim:
pessoas, animais, coisas, ideias, argumentos, opiniões, emoções, ...
É importante existir uma relação física com o objeto
artístico?
Não sei se é
física, mas tem de haver uma relação. Stendhal observou uma coisa que é
exatamente o oposto do famoso síndrome de Stendhal [segundo o qual o contato
com uma obra de arte pode ser tão intenso que chega a provocar perturbações
físicas], nomeadamente que a proximidade em relação às coisas não assegura que
o que quer que seja aconteça. Há o episódio muito famoso, em A Cartuxa de Parma, em que o
protagonista, Fabrice, fascinado por Napoleão, foge de casa para ver o grande
homem e aterra na batalha de Waterloo, para descobrir que esta, afinal, não se
assemelha a nada de tudo o que ele lera sobre Napoleão e sobre batalhas.
Depois, há uma série de acidentes, Fabrice acaba por cair e torcer um pé e é
salvo por um sargento e, por fim, evacuado na retirada do exército francês. A
certa altura, deitado numa maca, ele pergunta ao sargento: ‘Então é isto que é
uma batalha?’ E o sargento, muito experimentado, responde: ‘Um bocadinho.’
Fabrice esteve lá e não percebeu nada. As pessoas podem ter ido ao Prado ou ter
sido operadas e não perceberem nada de nada. Pode haver alguém que nunca foi ao
Prado, mas que percebe melhor As Meninas do
Velásquez do que uma pessoa que passou lá a vida.
No ensaio Amigos de
Objetos Interpretáveis [Harvard, 2001; Assírio & Alvim, 2003], defende
que os objetos inanimados ganham vida através da sua interpretação, no contexto
de ‘sociedades de amigos’. Quer defini-las?
‘Sociedade de amigos’ é o modo como os quakers
se referem às suas assembleias, que são conduzidas em silêncio. Nesse contexto,
que é teológico, a comunicação entre as pessoas e a interação com Deus não se
dá de um modo verbal. Os amigos serão ‘comunidades interpretativas’, como lhes
chamou o crítico Stanley Fish, pessoas que estão em acordo e em desacordo em
conjunto, mas, muitas vezes, são também pessoas que sabem que não precisam de
dizer nada umas às outras.
Porque existe uma familiaridade entre elas?
Exato, muitas vezes a
familiaridade não se traduz em acordos explícitos, nem em proposições que nos
merecem o mesmo grau de aprovação, mas traduz-se, antes, em não sentirmos a
necessidade de dizer mais o que quer que seja sobre esse assunto. Imagine que
está num grupo de admiradores de Velázquez e entra uma pessoa que diz: ‘Gosto
tanto, tanto, d’As Meninas!’ Os outros olham para ele com
um ar esquisito, porque não é preciso dizer aquilo. A nossa admiração nem
sempre tem de ser explicitada através de palavras, muitas vezes pode
traduzir-se, antes, em ações ou omissões.
A afirmação de que o ensino é uma conversa traduz-se em quê, na sua ação
como diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa?
A minha responsabilidade
é assegurar-me de que a conversa continua.
Essa conversa existia antes?
Nem sempre existiu. Mas a
minha responsabilidade é assegurar-me de que ela continua, de que as pessoas
não são admitidas à conversa por causa das habilitações, de que existam
ambientes em que não se façam perguntas (como ‘quem é esta pessoa que apareceu
aqui?’), mas se oiçam argumentos. Esta é a maior escola de Humanidades em
Portugal e eu tomo muito a sério que todas as pessoas que estudam e que ensinam
aqui possam participar nas várias conversas e nos vários desacordos que
caracterizam uma escola.
Imagino que os anticorpos a esse seu posicionamento sejam imensos...
É possível. Mas as minhas
ambições são muito moderadas e muito conservadoras. Não quero transformar a
natureza humana. E, ainda mais difícil do que transformar a natureza humana,
seria transformar a Faculdade de Letras de Lisboa.
Einstein dizia que é mais difícil desagregar um preconceito do que um
átomo.
Ele tinha toda a razão e,
aliás, a evolução da Física mostrou isso.
Como é que se explica que esteja aqui, nesta posição, hoje?
Deve-se a uma série de
acasos. Estudei aqui na minha licenciatura e no meu mestrado. Depois, decidi ir
estudar para outro lado e, nessa altura, pensei que era altamente improvável
que eu voltasse a Portugal tão cedo.
Porquê?
Noutros lugares, havia
uma audiência e um ambiente mais acolhedor para o tipo de coisas que me
interessavam. Eu não via isto como drama nenhum e muito menos me vi ou veria
como um exilado — aliás, esta palavra é séria demais para se aplicar neste
contexto.
Temia ser um estrangeirado? Como o foi Jorge de Sena, por exemplo, quando
regressou após o 25 de abril e a academia lhe fechou as portas?
O caso dele é complicado
porque ele era um engenheiro que se reinventou como professor de Literatura e
em Portugal isso não seria possível. A academia, sobretudo nas Humanidades,
nunca mostrou um discernimento especial e não havia por aqui, infelizmente,
(ELIMINAR Bertrand) Russells e Moores que pudessem olhar para pessoas com um
talento especial. Eu digo isto, ainda que, para mim, Jorge de Sena, um poeta
notável, não tenha sido um crítico literário ou um historiador de literatura
notável. Acho é que foi uma grande perda para a universidade portuguesa não lhe
ter dado mais atenção. Como o foi no caso de Ruy Belo, também um grande poeta
do século XX, que, aliás, tinha um doutoramento.
Quem é que o ouviu a si?
Durante a minha
licenciatura em Lisboa, o número de bons professores que tive conta-se pelos
dedos de uma só mão, e de uma pessoa com uma deficiência na mão. A maior parte
dos professores que tive foram muito maus.
Maus em que sentido?
O nome do mal é legião,
havia muitas variedades. Havia pessoas que começavam a aula das nove ao quarto
para as dez e interrompiam-na às dez e vinte para tomar um café; uma preguiça
extraordinária! Havia pessoas que improvisavam, outras que mudavam as regras a
meio. Havia pessoas que não se calavam, outras que não abriam a boca. E,
depois, havia alguns, muito poucos, que eram pessoas extraordinárias, exemplos
de professores, que ainda hoje estimo muito.
Quando terminei o
mestrado, dei aulas como assistente durante dois anos, até que decidi ir fazer
o doutoramento na América e fui admitido em várias universidades. Quando
comuniquei a minha decisão ao então presidente do Conselho Científico, uma
personagem (ELIMINAR venerável) com uma longíssima carreira de modéstia
intelectual continuada, olhou para mim com um ar condescendente, disse-me que
eu era muito novo para pensar em doutoramento, aconselhou-me a não partir e,
por fim, esclareceu-me que, então, o meu contrato com a faculdade teria de
cessar. Pensei que não regressaria jamais.
Mas voltou, depois de concluir o doutoramento. Porquê?
Por razões familiares e
pessoais. E, durante o primeiro ano a dar aulas na Faculdade de Letras,
convenci-me de que tinha feito o pior erro da minha vida.
Nisso pesou também a comparação entre os alunos portugueses e os alunos
norte-americanos?
Os meus alunos de
pós-graduação aqui são tão bons como os de pós-graduação lá. Já os de
licenciatura são francamente piores. Nos Estados Unidos, pelo menos nas
Humanidades, os alunos de licenciatura são melhores do que os de pós-graduação.
Quanto às pós-graduações, nos Estados Unidos, para as Humanidades vão as
pessoas menos espertas e menos interessantes — os realmente espertos, vão fazer
outras coisas.
O que distingue a universidade
portuguesa da americana?
A falta de autonomia, e a falta de pessoas interessadas na
autonomia.
Então, o que o fez ficar em Portugal e na Faculdade de Letras?
O António Feijó tinha
voltado da América um bocadinho antes, estava numa situação semelhante à minha
e, no fundo, embora nunca tenhamos falado sobre isso, se calhar fizemos das
nossas fraquezas forças. Quase como terapia ocupacional, envolvi-me na criação,
com ele, de um programa de pós-graduação muito pequenino, em Teoria da
Literatura. No primeiro ano, 1991, ainda só com oferta de mestrado, tivemos
quatro alunos e dois desistiram antes do Natal. Depois, o programa tornou-se
cada vez mais interessante e, ao longo de 25 anos, foram aparecendo cada vez
mais alunos. Hoje, temos sessenta alunos e pós-doutorandos, e o programa, de
que me orgulho muito, é um dos melhores do mundo. Por antonomásia, chamamos-lhe
O Programa. Paralelamente, temos uma revista online, ‘Forma de Vida’, com cinco mil seguidores e recensões novas
todas as semanas, workshops semanais
durante todo o ano letivo. Participamos em muitas outras atividades e temos
muitos spin-offs, pessoas que estão
ou estiveram ligadas ao Programa, têm ideias e vêm ter connosco.
Por que é que esse saber e esse discurso ainda não saíram da universidade
para o espaço público?
Essas coisas não se
passam por desígnio ou por intenção. As propostas do Programa são tão
completamente variadas que não existe um fio condutor — por isso, chamamos-lhe,
genericamente, de Humanidades. Há ex-estudantes nossos que agora estão, dentro
e fora de Portugal, noutras universidades; uns são poetas, outros distribuem
flores, outros são estivadores, outros são investigadores... A ideia de
controlo institucional não nos interessa.
Por exemplo, permanece a ideia de que o discurso jornalístico e o discurso
académico não podem cruzar-se, habitualmente para desprestígio do primeiro.
Quando os jornalistas
culturais falam com professores de Humanidades, falam habitualmente com outro
tipo de professores, e se calhar porque precisam de uma imagem tradicional de
professor. Aqui, como no estrangeiro, muito do que se faz nas Humanidades não
me interessa nada ou particularmente. Mas o ponto aqui é haver um conjunto de
pessoas que conseguem pensar de uma maneira distintivamente diferente.
A licenciatura em Estudos Gerais da Universidade de Lisboa existe desde
2011 e é inédita a vários títulos. Congrega várias escolas fundadoras, para
oferecer uma formação nas ‘artes liberais’, e privilegia a escolha individual
do aluno pelo seu currículo de interesses, definida com o apoio de um tutor.
Mas é inevitável perguntar-se: no final, serve para quê?
Quando as pessoas fazem
essa pergunta, estão a pensar numa profissão. E, se imaginam que os cursos
superiores servem para uma profissão, então, todo o resto da equação vai
aparecer errado.
Esse é o argumento principal do ensaio A
Universidade como deve ser, que publicou recentemente, em coautoria com
António Feijó, e onde afirmam que ‘a valorização do emprego como fim último, se
não único, da educação universitária revela uma aspiração social pobre’.
Há toda esta ênfase na
empregabilidade, mas ninguém está em posição de garantir emprego a quem quer
que se forme em qualquer curso, exceto no caso em que existe um monopólio
protegido, que é o caso do exercício das profissões médicas.
A lógica é a de que o Estado financia o ensino superior público, logo,
deveria assegurar essa empregabilidade...
Mas o Estado só pode garantir
todos os empregos na Coreia do Norte. Não há possibilidade de garantir que uma
pessoa com um curso de engenharia vá ser engenheiro ou que alguém com um curso
de arquitetura vá ser arquiteto. É muito importante as pessoas terem emprego e
não há nada de pouco dignificante em trabalhar como caixa num supermercado ou
em ser estivador. Isto não significa nenhuma espécie de displicência da minha
parte em relação a isso. Quero simplesmente chamar a atenção para o fato de que
aquilo que as pessoas fazem e aquilo que as pessoas estudaram não está
naturalmente ligado; há ligações, mas, com exceção da medicina, elas não são
causais.
A mudança de mentalidades necessária para que se admitir esse fato é tão
revolucionária como aceitar-se que, no futuro, as pessoas serão sobretudo freelancers...
Ou como pensar pela
própria cabeça... Mas, é capaz de ter ocorrido entretanto mudanças geracionais
importantes e, hoje, os miúdos que se formam já não estão tão interessados pela
ideia de terem um único emprego ao longo de toda a vida. Vão provavelmente
mudar de emprego e reinventar-se várias vezes. Alguns deles vão ter ideias e,
como não têm possibilidade de arranjar um emprego por conta de outrem, criarão
o seu próprio emprego. Tudo isto é uma consequência de vivermos em Portugal,
uma sociedade livre e rica, como só o são um número muito pequeno de países.
Está a ironizar?
Não. Sempre que se fala
das dificuldades portuguesas, eu sugiro que se olhe para as estatísticas do
Burkina Faso. Ou, já agora, que se olhe para os famosos países de expressão
portuguesa, aos quais nós somos tão iguais. Portugal tem mais a ver com a
Suécia do que com o Brasil.
É por isso que diz que a lusofonia é ‘uma má ideia’?
Ainda ninguém me explicou
a teoria física que transforma os falantes de uma língua em pessoas parecidas
entre si. As pessoas podem falar a mesma língua e estarem em desacordo acerca
de tudo e viverem de maneiras completamente diferentes.
E é por isso que diz que ‘a melhor e única decente política da língua é:
nenhuma’ ou que ‘deviam desaparecer todas as cátedras portuguesas pagas pelo
governo português em universidades estrangeiras’?
A não ser os linguistas
ou certos atletas poliglotas, raras vezes as pessoas estão interessadas numa
língua. O que lhes interessa é aquilo que saber uma língua torna possível. Por
exemplo, eu sempre quis ler Tolstói em russo, e por isso aprendo russo.
Garantem-me as pessoas que sabem russo que quem consegue lê-lo nessa língua
consegue perceber em Tolstói coisas que os que o lêem em tradução não conseguem.
Não acredito completamente nessa teoria. Acho que, para a esmagadora maioria
dos efeitos, é suficiente ler Tolstói em tradução. Aliás como, para todos os
efeitos relevantes, basta ler Camões em espanhol.
Admite exceções?
Não vou descontar a
existência de casos em que a famosa língua original seja importante. Mas para a
esmagadora maioria das pessoas as traduções são suficientes.
Então, aceita que o Estado apoie programas de tradução?
A ideia de um apoio à
tradução de obras literárias para outras línguas como missão política faz-me
logo franzir o nariz. Porque com o apoio vem a sugestão de que o acesso àquelas
obras é o acesso a uma alma que está escondida.
Vem também a imposição de uma determinada autoridade.
Pois, e vem uma
metafísica de que eu não partilho. Eu não sei russo, e li Tolstói em traduções
que não foram pagas por nenhuma agência russa. Portanto, ninguém me estava a
dizer que eu ia ter acesso às qualidades extraordinárias da alma russa por
estar a ler Tolstói. Dito isto, não quer dizer que eu não ache que haja
qualidades extraordinárias na alma russa, mas dispenso a ajuda das agências
públicas, muito obrigado.
Ler torna as pessoas melhores?
Ou piores. Na maior parte
dos casos, continuamos a ser assim-assim.
Ou seja, ler não influencia o caráter?
Pode influenciar, mas a
relação não é necessária, é contingente.
A questão moral não está envolvida?
Muitas vezes está, mas
não necessariamente. Há quem não se consiga descrever sem falar de certos
livros que lhe fizeram funda impressão, mas essa é uma muito pequena minoria de
pessoas. Concebo que haja uma pessoa que diga: ‘Proust mudou a minha vida.’ Mas
é uma afirmação quase patológica e, normalmente, as pessoas que dizem isso,
estão a exagerar, estão a tentar impressionar alguém.
Como é que define uma mente independente, em termos intelectuais e em
termos académicos?
É uma pessoa que tem
pouca paciência para os tontos. É uma pessoa que dá atenção aos raciocínios das
outras pessoas e aos seus próprios raciocínios. É uma pessoa que acha que as
questões da verdade não se decidem por referendo e, portanto, não se decidem
pela opinião da maioria. É uma pessoa que, ao mesmo tempo, confia nas opiniões
das outras pessoas, mas desconfia das opiniões partilhadas.
Qual é o preço de não ficar, como Montaigne, fechado numa torre? É preciso
ter um discurso provocatório? É preciso forçar os outros ao diálogo?
Às vezes, e, se somos
pagos para isso, como acontece quando somos professores, com certeza que sim. A
descrição clássica mais antiga e talvez mais extraordinária das dificuldades
desta relação é a maneira como Sócrates fala de si próprio em relação a Atenas,
na Apologia de Sócrates. Ele diz algo
como isto: ‘Sou um pateta que anda a fazer perguntas às pessoas pelos caminhos
de Atenas, todos me acham um bocadinho excêntrico, não tenho grande medo do que
me vá acontecer a seguir, mas, ao mesmo tempo, estou completamente ligado a
esta sociedade de idiotas de que faço parte e não posso ir pregar para outra
freguesia.’ No Críton, quando já foi
condenado à morte e um amigo fretou um barco e subornou os guardas para o
ajudar a fugir da prisão, Sócrates sugere que mudar de cidade é um plano
injusto.
É uma ideia de pertença.
É a ideia de que Sócrates
e Atenas é como bifes e batatas fritas. São duas coisas que vão muito bem
juntas.
Sócrates e muitas pessoas
muito menos espertas do que Sócrates não achavam que fossem pessoas especiais,
antes achavam que precisavam das outras pessoas. E este é um ponto filosófico
muito importante: não acharmos que o mundo começou connosco, que vai acabar
connosco e que não existe mais ninguém. Aliás, a cultura contemporânea sublinha
esta possibilidade de não haver ninguém melhor que nós. Há poucas pessoas que
gostam de admitir que, para serem as pessoas que são, precisam das outras
pessoas, e que pensam nisso como uma responsabilidade.
Hoje em dia, são cada vez menos as pessoas que identificam, ainda menos as
que compreendem, a alusão a um clássico...
Mas, se estiverem
interessados, a gente explica-lhes, aqui, na universidade. Entre outras coisas,
é para isso que ela serve. Ler Platão ou Shakespeare não significa ter acesso a
conteúdos cognitivos ou, ainda menos, a valores que eles tenham veiculado. Muitas vezes é reconhecer coisas em que
tínhamos pensado, mas ditas por outras pessoas. Wittgenstein disse num prefácio
de um dos seus livros que este só seria percebido por pessoas que já tivessem
pensado aqueles pensamentos.
Voltamos à tal ‘sociedade dos amigos’, que partilha uma familiaridade de
base.
Há dois mil e quinhentos
anos, Platão observou, astutamente, que a experiência principal da aprendizagem
é anamnésica, é uma experiência de rememoração. Como se disséssemos: ‘Ah, estou
a lembrar-me de uma coisa que afinal sabia!’
Nos clássicos, estamos a lembrar-nos de quê? De uma universalidade
qualquer, que transcende o texto?
Não acho que seja isso.
Estamos a lembrar-nos de pensamentos que podíamos ter tido ou já tivemos.
Imagine alguém que está a assistir a uma representação do Rei Lear. Logo no início, ouve a Cordélia dizer: ‘Eu não consigo
içar o coração até à boca.’ E pensa: ‘É extraordinário como eu já pensei isto.’
Como explica que isso aconteça?
Porque somos parte da
mesma espécie e por pura coincidência. Ou então, pela extraordinária qualidade
de Shakespeare, que dá muitas vezes a impressão de nos conhecer melhor do que
nos conhecemos a nós próprios.
Que livros lê por puro prazer?
Romances.
Qual foi o último que leu?
Pierrette, de Balzac.
Pode indicar cinco ou seis clássicos que gostava que
fossem lidos pelos seus alunos?
Os seis
romances de Jane Austen, ou pelo menos cinco deles.
Bibliografia:
Hermenêutica e Mal-Estar (INCM,
1987, Prémio de Ensaio do Pen Club Português) Manners of Interpretation: The Ends of Arguments in Literary Studies (State
University of New York, 1993; INCM, 1994)
The Matter of Facts: On
Invention and Interpretation (Stanford University Press, 2000)
Artigos Portugueses (Assírio
& Alvim, 2002; ed. aumentada, Documenta, 2015)
Amigos de Objetos Interpretáveis (Assírio & Alvim,
2003),
What Art Is Like, in Constant Reference to the Alice
Books (Harvard University Press, 2012)
Erro Extremo (Tinta-da-China, 2017)
Ler Primavera 2018
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