O fulgor e a crueldade dos cossacos no século XVI ainda hoje eriçam os cabelos do leitor. Nikolai Gogol descreveu-os, no epicentro histórico da tensão entre a Ucrânia e a Rússia.
Em 1936, ao concluir o conto satírico O Nariz, Nikolai Gogol tinha 27 anos, vivia em São Petersburgo, era um funcionário ministerial apagado, mas um artista dominado por complexas preocupações moralistas e patrióticas. Procurava corresponder ao legado romântico (e nacionalista) do mestre Pushkin, ainda assim a sua prosa conjugava elementos de terror e humor absurdos ou mesmo grotescos com uma forte sensibilidade realista; a fonte da futura grande literatura russa. E, na verdade, ainda hoje a encenação deste texto provoca tão facilmente o riso como uma apreensão tensa.
Nikolai, o «russo mais estranho na Rússia» (Nabokov), nasceu em 1809 na Ucrânia, à data pertença do Império Russo. Filho de um antigo oficial cossaco, entendia que uma narrativa épica devia iluminar um herói e, em torno dele, todo um povo, ambos poeticamente inflamáveis, como faíscas na lenha seca. São prova disso as ficções folclóricas incluídas na coletânea de contos Mírgorod, de 1935, e, em especial entre elas, o conto Tarass Bulba, o cossaco, transformado, em 1942, em novela. Estes dois textos acabam de ser publicados pela E-Primatur, com tradução do russo por Maria Vassilieva.
Em Tarass Bulba, Nikolai Gogol compõe uma homenagem ao heroísmo dos seus antepassados, o que justifica a aura de artificialidade evocativa e colorida que envolve as figuras centrais: o velho líder guerreiro Tarass Bulba Tarass e os seus dois filhos, Ostap e Andrii. Veja-se, por exemplo, como este último se deixa inebriar pela música da guerra: «Ignorava o significado de ponderar, calcular ou medir com antecedência as suas forças e as dos outros. Encontrava nas batalhas um raivoso êxtase e encantamento: via-se-lhe como que uma embriaguez, naqueles minutos em que uma pessoa perde a cabeça, quando aos seus olhos tudo corre e voa: voam cabeças com estrondo, caem por terra os cavalos, e ele avança, como que embriagado, sob o assobio das balas e no esplendor dos sabres, distribuindo golpes sem se importar com os que recebia.»
Tarass, Ostap e Andrii têm o sangue frio dos cossacos, cuja expressão facial era tão imperturbável que nem os bigodes se moviam. Segundo Gogol, este povo havia brotado do seio russo «pela chama das desgraças». Guerreiros e guardiões dos postos fronteiriços, eram nómadas independentes ou camponeses fugidos ao domínio dos senhores feudais e instalados nas terras selvagens na parte sudeste da Europa, mais precisamente naquilo a que se chamou a Pequena Rússia, a região de fronteira (U Krajina) com os tártaros e os otomanos. Possuíam o «hábito desregrado do feitio russo» e uma bravura totalmente destemida. A época da ação de Tarass Bulba é o rude século XVI, o cenário é a estepe e o enredo acompanha a revolta, junto ao rio Dniestr, dos cossacos zaporójianos (da Zaporígia) contra a República das Duas Nações, confederação entre a Polónia e a Lituânia que, então, dominava esse território que é hoje a Ucrânia. Após massacrarem polacos e judeus com extraordinária brutalidade, os cossacos juraram fidelidade a Moscovo, em troca de uma autonomia que nunca foi totalmente respeitada ou assegurada.
Em Cossacos, Novela do Caúcaso, Tolstoi explicita «o amor à liberdade, ao ócio, à pilhagem e à guerra» como principais traços de carácter deste povo. Ressalta também a sua bárbara misoginia e o seu desprezo por todos os outros seres humanos. Está tudo muito bem expresso em Tarass Bulba, bem como um antissemitismo desprezível, na origem provável de muito do que de ignóbil se virá a passar no leste europeu.
No texto original, de 1935, Gogol é claramente pró-ucraniano. Na segunda versão, bem mais extensa, de 1942, claramente pró-russo (nessa altura da vida, assume-se como um autocrata e abandona as antigas ideias liberais). As duas versões ilustram a dualidade ideológica e nacionalista do escritor, a sua pertença simultânea e indiscernível às duas culturas e países que ainda hoje o disputam com fervor.
Mas o conto/novela de Gogol é muito mais do que descrições de crueldade, mística de grupo ou bravura, discursos inflamados de líderes guerreiros e cenas heroicas de batalhas; contém uma difusa inspiração bíblica. Durante um cerco a uma cidade polaca, Andrii, apaixonado pela filha do líder inimigo, trai os seus e passa-se para as fileiras contrárias (a descrição do percurso de acesso à cidade tem traços surrealistas). Atraído para uma emboscada, Andrii é levado à presença do seu pai, que exclama, impassível, antes de o matar: «Fui eu quem te trouxe ao mundo e serei eu quem dele te vai tirar!» E, depois, em frente do corpo sem vida: «Que bom cossaco poderia ter sido!» Na cena da execução de Ostap (Tarass assiste, disfarçado, entre a assistência polaca) ou na descrição final da obstinação e do sacrifício de Tarass sobressai a moldura de libelo nacionalista («Mas haverá no mundo chamas, torturas e forças capazes de vencer a força russa?»), mas ainda assim, e apesar da rigidez da psicologia das personagens, Tarass Bulba é uma leitura histórica e literariamente importante.
Tarass Bulba, Nikolai Gogol, E-Primatur, 245 págs., 17.90 euros
Jornal «i» 05-06-2017
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)