Trezentos anos após o
seu nascimento, Jean-Jacques Rousseau permanece um dos mais controversos
contribuidores da grande história das ideias. Terá ele sido um abnegado
filantropo ou um narciso ressabiado? Um libertário democrata ou um potencial
totalitarista? Com as comemorações, renasce o debate sobre a importância e
atualidade dos pensamentos do cidadão de Genebra.
«Nasci quase morto.» Ao ver pela primeira vez a luz do dia,
a 28 de Junho de 1712, Jean-Jacques Rousseau provoca a morte da mãe (Suzanne
Bernard, filha de um relojoeiro) e enfrenta um primeiro combate com a sua própria
morte, que o vencerá apenas aos 66 anos, em 1778, vítima de hemorragia. Graças
ao desvelo de uma tia, a criança sobrevive, mas permanece sempre no homem uma
infantil necessidade de atenção maternal e uma sensação de orfandade e
desajuste no contacto com os outros, compensadas ambas por um ímpeto truculento
e seguro de si e um grande amor à natureza e à solidão. O pai, Isaac Rousseau, descendente
de huguenotes franceses e relojoeiro de profissão, guarda, entre as ferramentas
do ofício de alta precisão, «as obras de Tácito, Plutarco e Górcio». É um homem
culto, independente, arrebatado e muito pouco convencional. Obrigado a
abandonar Genebra devido a uma rixa, abandona também o filho, com quem irá
manter um contacto irregular, mas terno.
Jean-Jacques convence-se mais tarde de que o progressivo
afastamento por parte do pai se deveu ao facto de este não querer reivindicar
junto do filho o direito a também usufruir da pequena herança materna. Na
primeira parte das memórias autobiográficas Confissões
(edição póstuma em 1782; a segunda parte, em 1789), escreve: «Extraí daí esta
grande máxima de moral, talvez a única de utilidade prática, que é a de evitar
as situações que põem os nossos deveres em oposição com os nossos interesses, e
nos revelam o nosso bem no mal dos outros, convencido de que, em tais situações,
mesmo que a elas tragamos um sincero amor da virtude, fraquejamos mais cedo ou
mais tarde sem dar por isso, e tornamo-nos injustos e maus nas ações sem
deixarmos de ser justos e bons na alma.» Estabelecida como objetivo para todos
os atos futuros (e, paradoxalmente, não o impedindo de colocar os cinco filhos
na roda em nome da boa educação que não lhes poderia dar; ele, que sempre disse
desprezar o dinheiro, mas que assumia ter «uma avareza quase sórdida»), esta máxima,
central na ideia futura de «felicidade colectiva», provocaria a perplexidade «aos
olhos do público» e, sobretudo, a dos seus «conhecidos».
Rousseau quer manter a bondade e a justiça na alma porque
acredita que elas são inatas e não dependentes de Deus. Mas, como fazê-lo? Procurando
a virtude, que não se possui de antemão, antes se adquire. Evitando o conflito
entre os seus próprios interesses e os interesses dos outros homens, as situações
passíveis de corromper o desejo do bem dos outros – a base para O Contrato Social ou Princípios de Direito
Político
. Mais: rejeitando a supremacia das regras e do
artificialismo que esmagam a simplicidade e naturalidade originais do homem.
Para Rousseau, é neste sentido que a civilização humana, orientada para o
progresso através do avanço da ciência e da tecnologia, resultou numa fraude, pervertendo
o homem, naturalmente bom e justo, no seu caminho de aperfeiçoamento ao
encontro da natureza (escreve, a Voltaire: «se é verdade que todo o progresso
humano é pernicioso para a espécie humana, o do espírito e da inteligência, que
aumenta o nosso orgulho e multiplica os nossos erros, apressa a chegada dos
nossos dias maus»). O conhecimento e a arte apenas trazem proveito ao homem se
forem subjugados às necessidades sociais e à moral. Contra a voz da razão e da lógica (acessíveis
a poucos), Rousseau enaltece a voz do coração e da consciência (que todos
possuem). Em vez dos pré-conceitos, privilegia os exemplos e os paradoxos. Aos
salões elegantes e civilizados, aos filósofos «impostores», o pensador
genebrino virará as costas, em favor da virtude desafectada, do humanitarismo e
da vida campestre. Ao teatro e à hipocrisia social, oporá a solidão e a
sinceridade individual.
Em 2012, a obra do autodidata Jean-Jacques Rousseau («Eu
estava destinado a ser o rebotalho de todas as profissões»), tão contraditória
e tão exaustivamente contraditada, continua a colocar perguntas para as quais
ainda não encontrámos (boas) respostas. É inegável que a sua teoria do homem plantou
muitas das mais importantes sementes da modernidade. Rousseau estabeleceu o
cisma entre as ciências, as «artes» (mecânicas e belas-artes) e a moral e conduziu
o homem à divisão entre o sentimento e a razão. Graças a ele, e ao seu intempestivo
questionamento das convicções iluministas, a Revolução Francesa consagrou como
lema três princípios fundamentais, tão consubstanciais como a identidade das três
pessoas da Santíssima Trindade, e ainda hoje em vigor como grande utopia humana:
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Foi com Rousseau, e com Émilio ou da Educação, que a criança
deixou de ser vista como um pequeno adulto, para se tornar objeto de atenção e direitos
específicos e o centro do processo educacional. É ele quem primeiro elogia a
formação no meio familiar e o vínculo materno através da amamentação e quem faz
nascer uma relação estreita entre política e educação. Foi Rousseau quem elevou
o homem a sujeito da sua própria vontade e, em simultâneo, o condenou à consciência
do perpétuo conflito entre as ações e os propósitos morais. Por tudo isto, eis-nos
ainda hoje às voltas com o paradoxo Rousseau. É ao cidadão de Genebra (apodo que
colocava no frontispício dos seus livros) que podemos agradecer a
responsabilização de cada homem como autónomo construtor e legislador da sua
vida (raiz da filosofia prática kantiana) e o desenvolvimento deste conceito até
à noção de Estado de Direito (cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, em
1835) e de Liberalismo (enquanto expressão dos direitos individuais e do governo
representativo). Mas é também em Rousseau que repudiamos uma justificação
racional para a alienação de todos os direitos individuais em nome do direito
da sociedade a forçar os homens a serem livres. Da sujeição total a um contrato
social como vontade geral, nasce a
legitimidade de um Estado omnipotente, ao qual se deve submissão total, terreno
fértil para os déspotas absolutos e os totalitaristas.
Pleno homem e cidadão do seu tempo, Jean-Jacques Rousseau previu
ele mesmo que o julgariam noutros tempos. Apesar do seu gritante narcisismo e de
um neurótico complexo de perseguição, não terá sido capaz de imaginar a que
ponto o fariam (Isaiah Berlin, por exemplo, explicita que o mal por ele
provocado consiste «em ter iniciado a mitologia do eu verdadeiro, em nome do
qual nos é permitido forçar as pessoas» e aponta-o como «um dos mais funestos e
formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno»).
Nas Confissões, Rousseau prometeu
pintar-se «tal como sou», expondo ao mundo os pormenores mais ínfimos de «um
destino que não tem exemplo entre os mortais», julgando torná-lo assim um monumento
seguro contra os ataques e as desfigurações dos inimigos: «Quero mostrar aos
meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu.
[…] ouso crer não ser feito como nenhum dos que existem. […] Soe a trombeta do
juízo final quando lhe aprouver; irei com este livro na mão apresentar-me ao
juiz supremo» [tradução de Fernando Lopes Graça para a única edição disponível
de Confissões, da Relógio D’Água, com
prefácio de Jorge de Sena]. A si mesmo, Rousseau impunha a tarefa de «ser
verdadeiro»; ao leitor, a de «ser justo» («Nunca lhe pedirei mais do que isso»).
Se possuía algum defeito, deus nosso, era apenas o de ser... brutalmente
honesto e justo consigo mesmo (como pretendeu também em Rousseau juge de Jean-Jacques). Mais uma vez, caiu na espiral
contorcida do paradoxo.
Primeiro educado numa escola religiosa, na companhia feliz
de um primo e melhor amigo de infância, Jean-Jacques falhou como aprendiz de
notário e foi colocado na oficina de um gravador tirano, de onde fugiu, aos 16
anos, para correr mundo. Em Annecy, depois em Chambéry, às portas dos Alpes, acolhe-o
a deísta suíça Madame Warens, descendente de uma nobre e antiga família, primeiro
e grande amor da sua vida (chamava-lhe «Maman»), fonte da aprendizagem das
maneiras de sociedade, da conversão temporária ao catolicismo e do contacto com
a filosofia e a música (Rousseau ganha primeiro fama como compositor e, durante
muito tempo, vive da transcrição de partituras; assina as 200 entradas da Encyclopédie sobre música, produzidas em
apenas três meses, e um muito reputado Dicionário
da Música). Pouco mais tarde, em Itália, enquanto lacaio da altiva Madame
de Vercellis, Jean-Jacques experimenta pela primeira vez «aquele jogo maligno
dos interesses ocultos em que esbarra[rá] toda a vida e que provocou [nele] uma
bem natural aversão pela ordem aparente que os gera». Morta a senhora, o rapaz
rouba-lhe uma fita velha. Acusado pelo furto, incrimina a cozinheira. Rousseau
garante que, quarenta anos depois, a lembrança deste episódio e a necessidade
de repor a justa verdade foram o principal motor para escrever as Confissões. Em contraponto à obra homónima
de Santo Agostinho, estas irão abrir portas para a secularização da escrita de
memórias, como gesto puramente público, terapêutico ou literário.
Jorge de Sena aponta uma questão fundamental: «O que choca,
em Rousseau, é a contraditória complacência consigo mesmo e as suas recordações
e o tom perturbado e perturbador em que estas são evocadas.» Salientando o carácter
obsessivo da narração de Confissões,
Sena acha-o chocante porque aquela é «uma obra-prima indecisa entre o documento
e a arte». Disfarçado sob a ambiguidade
estética, o livro está carregado de «ilusões moralistas». «A hipocrisia de
Rousseau é a homenagem do seu individualismo, da sua sensibilidade, do seu
anseio de ser ele mesmo único e irrepetível, aos preconceitos legalistas e moralistas
da sociedade burguesa [e, acrescente-se, da sociedade do espetáculo] que ele
anunciava.» Rousseau, com a sua retórica persistente e a sua suposta nudez
confessional, a sua conjugação explosiva de criatividade e narcisismo, lega-nos
o problema da confusão entre a sinceridade estética e a sinceridade do indivíduo.
Edmund Burke repudia-o em particular por essa «nova espécie de glória» que ele
conquista por trazer à luz «vícios obscuros e vulgares» que sabemos que muitas
vezes afectam «até os talentos mais eminentes». Para Sena, Confissões «é um grande livro irritante e comovente, atraente e
repulsivo, em que a chateza e a profundidade estão indissoluvelmente ligadas. […]
É a história dolorosa de uma ascensão para a genialidade. […] O anseio de
justificação de uma vida pela mesma vida, a fúria de impor aos outros a própria
personalidade, a inquietação desesperada do homem que ascende socialmente pelo
próprio mérito mas nunca adquire um status
definido — a tudo isso trouxe Rousseau uma coloração nova.»
Rousseau, que sempre foi pobre e descendia «com todo o
prazer» de homens comuns, mantém toda a vida um sublimado complexo de classe; não
o superará nem com a amizade dos enciclopedistas e a plena integração nos salões
parisienses, nem com a fama e glória que o público lhe devota desde os 37 anos
de idade e o ensaio Discurso sobre os
efeitos morais das Artes e das Ciências
(primeiro prémio num concurso da Academia de Dijon e resultado de uma «inspiração
súbita» numa tarde quente de Outubro de 1749, no caminho para Vincennes, onde
ia visitar o amigo Diderot, preso por ter violado a censura). Ao contrário de
Voltaire, que também não possuía ascendência nobre, Jean-Jacques jamais
pretende ascender socialmente ou conquistar a unanimidade: «Nada me pareceu
maior e mais belo do que ser livre e virtuoso, acima da fortuna e da opinião, e
bastarmo-nos a nós mesmos.» O puritanismo original e um apego sempre presente
aos oprimidos molda a sua observação crítica do mundo e fá-lo decidir-se a quebrar
as amarras que o prendem à vida em sociedade. Rompe com os amigos. Larga os
dourados e as meias brancas, põe uma peruca redonda, depõe a espada e vende o
relógio. Instala-se numa pequena aldeia e aspira a ser um camponês anónimo,
dependente apenas do caderno branco e do lápis que levava sempre na algibeira
para longos passeios meditativos. De ocupação em ocupação, de mulher em mulher,
Rousseau repudiara as convenções. Nenhum como ele vivera todos os cambiantes de
categoria social. Ele é aquele que experimenta, depois recua, assiste de longe,
e vê. Nada como a filosofia, ligando-o ao essencial da religião, o «havia
libertado daquela moxinifada de formulazinhas com que os homens a obscurecem».
Só no encontro com a natureza (aos 65 anos, dedica-se à Botânica), Jean-Jacques
Rousseau se torna verdadeiramente livre, o narrador pacificado dos incompletos Devaneios de um Caminhante Solitário (antecedente
remoto do trabalhador no gozo de férias pagas ou da reforma).
O trabalho de interpretação da álgebra iluminista e dos
paradoxos radicais e desestabilizadores do pensamento de Rousseau começa a ser
feito ainda em vida do autor, mas excede-a num desentendimento sem remédio. Os
enciclopedistas não lhe perdoam o desprezo pelo luxo («essa tão necessária coisa»,
Voltaire) e pelas ideias de progresso, refinamento e liberdade que preconizam. Os
românticos recuperam-no na defesa de que o homem deve viver não só pela razão,
mas pelo instinto e pela emoção. O sonho americano encontra fundamentos na sua
confiança na meritocracia. As suas reticências quanto à civilização cosmopolita
servirão tão bem os habitantes das periferias urbanas, os ambientalistas ou os
adeptos de um êxodo para o campo. A filosofia plástica de Rousseau serve todos
e nenhum por completo, sendo o seu nome mais popularmente associado a mitos e a
lugares-comuns. Entre eles, destaquem-se o conceito de Bom Selvagem e a defesa
do primitivismo ou a leitura incompleta da frase «O homem nasceu livre e,
todavia, por toda a parte se encontra a ferros» como uma espécie de apelo ao
anarquismo — quando o pensador pretendeu tão só sustentar a passagem do estado
de natureza ao estado social, do poder físico ao poder moral, ou seja,
legitimar as leis e a subordinação política: «O que o homem perde pelo contrato
social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo aquilo que lhe é
necessário; o que ele ganha é a liberdade civil [limitada pela convencionada vontade geral] e a propriedade de tudo
aquilo que possui.»
Jean-Jacques Rousseau, cidadão de Genebra (como das
idealizadas Roma ou Atenas), J.J., autor mais de um diagnóstico do que de uma
reforma radical, mantém-se hoje como o filósofo mais enigmático do século
XVIII. Nele, como resume Laurence Mall (Magazine
Littéraire), «as máquinas de fazer sonhar são também máquinas de fazer
pensar, e máquinas de guerra». A sua obra permanece «um vasto terreno de demolição»
e Rousseau, paradoxalmente capaz de «lirismo político» e «emoção filosófica»,
criador de um «sonho antropológico» e de «uma reflexão sensivelmente universal»,
persiste sendo aquilo que sempre quis ser: um homem verdadeiramente singular.
LER Junho 2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)