Modelo
de linguagem ultra modernista, Ulisses
tem novo tradutor em português. Para Jorge Vaz de Carvalho, o romance de James
Joyce só será lido por uma elite intelectual, disposta a perder o pé numa
tempestade de vagas altas. Mas o que ali está não é um mar, antes um lago onde
navega o herói grego transformado em homem comum.
A
tia Josephine ajudou James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) nos detalhes
mais ínfimos da composição do mapa concreto de Dublin em 1904. Em troca, ele
obrigou-a a ler Odisseia de Homero
para compreender melhor o seu Ulisses.
Ao
amigo italiano Carlo Linati, o escritor irlandês enviou um resumo-chave-esqueleto-esquema, para entrar no romance-monstro, «uma epopeia de duas raças (israelita-irlandesa) e
ao mesmo tempo o ciclo do corpo humano, uma pequena história de um dia de vida e
uma espécie de enciclopédia».
Jacques
Benoîst-Méchin não teve direito ao esquema de Linati, apenas à informação de
que os enigmas e quebra-cabeças do romance ocupariam os académicos durante
séculos, a tentarem adivinhar o que Joyce quis dizer. Esse seria o melhor modo
de lhe garantirem a imortalidade.
Em
1922, em Paris, pouco antes da primeira publicação integral do romance por
Sylvia Beach, Joyce disse a Djuna Barnes: «O mal é que o público há de pedir e
há de encontrar lições morais no meu livro, mas dou-lhe a minha palavra de
honra de que não há nele uma única linha escrita a sério.»
O
poeta americano Max Eastman acusou-o de culto
da ininteligibilidade e Joyce respondeu-lhe: «O que peço ao meu leitor é
que dedique a sua vida inteira a ler as minhas obras.» Coisa pouca, ainda há quem
esteja disposto a isso?
Ulisses volta às livrarias portuguesas pela
editora Relógio d’Água, 47 anos após a primeira tradução, assinada pelo
filólogo brasileiro Antônio Houaiss, e 24 depois da adaptação desta por João
Palma-Ferreira. Esta nova tradução é de Jorge Vaz de Carvalho, poeta (A Lenta Rendição da Luz, 1992), ensaísta
e professor universitário, doutorado
em Estudos da Cultura (com a tese Jorge
de Sena: “Sinais de Fogo” como
romance de formação), também cantor lírico (barítono) eclético e com uma carreira
internacional consistente. Não se assume como tradutor profissional, mas traduziu Ciência Nova de Giambattista Vico (Prémio de Tradução
Científica e Técnica FCT/União Latina 2006), Canções de Inocência e de
Experiência de William Blake
ou Vida Nova de Dante
Alighieri.
Vaz
de Carvalho acusa Houaiss de uma adulteração extrema do texto original e de quase
o usar para construir um determinado modernismo brasileiro. Em contraponto, a
sua tradução, concretizada em dois anos e sustentada por décadas de convívio
com a obra, busca a maior fidelidade possível à matriz. O tradutor restringiu-se
a uma posição de «transparência»: «Não tenho o direito de disputar a autoridade
do romance. Guiei-me pela convicção de que o estou a traduzir como penso que
Joyce o escreveria em português.»
Joyce
pertence ao grupo de autores preferidos do tradutor português: aqueles que
«nunca tratam o leitor como um cretino». Ulisses,
em ruptura com tudo o que era o paradigma narrativo do século XIX, «exige apenas
essa raridade de leitor que possui curiosidade
intelectual perante o texto literário e as possibilidades infinitas da língua».
Esta é uma leitura que «nos atira para fora de pé, sem sequer nos termos
chegado a molhar.». Obriga o leitor a abdicar da bengala do enredo e a
transformar-se «de banhista da rebentação em banhista de ondas poderosas». Não
é de todo uma leitura para todos.
Os
vários níveis narrativos, como camadas de cebola, podem ser lidos consoante o
grau de cultura ou o domínio das técnicas narrativas do leitor, «mas a maioria
dos leitores o que quer saber é da historiazinha e o problema é que Ulisses não a tem». Pior: tal como
defende o poeta, crítico e historiador espanhol José María Valverde, Ulisses representa «o negativo
caricatural de Odisseia: o “herói”
volta ao seu lar para não ser nada, nem sequer o que ele tentou fracassadamente
durante o dia». Então, como podemos ajudar
os leitores convencionais a entrar no romance? Responde Vaz de Carvalho: «Não
podemos. Se o leitor não estiver disposto a aceitar novas regras de jogo, será
uma perda de tempo tentar convencê-lo». Essa não é uma atitude demasiado
intimidatória? «Claro que é. Mas a literatura é só para os fortes.»
Estamos
de acordo, Ulisses será devidamente apreciado
sobretudo por leitores-corredores-de-fundo. Na verdade, desde há 91 anos que o
seu público ideal é esta espécie de leitores, hoje em vias de extinção, que
aceita a perseverança e a disciplina como passes inevitáveis para o acesso à alta-leitura, logo à alta-cultura. Contudo,
defender que Ulisses se destina só a essa
elite intelectual pode prestar um mau serviço à riqueza e à complexidade de Joyce.
É o
próprio Vaz de Carvalho, na linha do académico irlandês Declan Kiberd, autor de
Ulysses and Us: The Art of Everyday Living,
quem defende esta obra como um livro magistral «onde não se passa nada a não
ser a banalidade do quotidiano» e da luta de pessoas comuns pela sobrevivência
e nas relações com os outros. «Não é por acaso que o título aponta para uma
epopeia, mas toda a estrutura do romance é a da tragédia», alerta o tradutor.
No
fim destas 24 horas de rotinas triviais e de pequenos dramas pessoais, sem a grande
retórica ou a eloquência da epopeia, as personagens regressam todas às suas Ítacas.
Todavia, elas partilham com Ulisses a mesmíssima e absoluta necessidade de
sobreviver. Segundo Vaz de Carvalho, este é o centro da renovação moderna do mito
antigo grego concretizada por James Joyce e obriga-nos a uma reavaliação do
valor da História e da história pessoal.
Ulisses pretende retratar o homem comum e
as suas muito vulneráveis condições de acesso à dignidade. Então, como entender
que Joyce (um socialista) tenha vedado o acesso do grande público ao seu
romance? Pois se a fala interna do cidadão comum é o objetivo e o objeto máximos
da sua experimentação... O próprio Joyce definiu, logo em 1900, na conferência Drama And Life: «Penso que da triste
monotonia da existência podemos extrair aspectos do drama da vida. O maior
lugar-comum e o mais morto dos vivos podem ter um papel neste grande drama.»
Quem
diminui o valor da leitura direta do romance e privilegia a abordagem a Ulisses como uma oeuvre à clef (e não é de todo este o caso de Jorge Vaz de Carvalho)
corre o risco de reduzir o romance a um busílis formal e esquemático. As suas
três partes e 18 capítulos-episódios
não foram totalmente definidos por Joyce; pelo caminho ele desistiu dos títulos
que faziam remissões para a Odisseia (ver
o estudo The Ulysses Theme, de W.B.
Stanford). Cada uma destas etapas corresponde
a uma hora do famoso dia 16 de Junho de 1904: das 8h de manhã às 2h da
madrugada seguinte, à exceção das três primeiras horas, repetidas para Dedalus
e Bloom, e de vazios entre as 11h e as 12h (suposto banho de Bloom) e as 18h e as
20h (provável visita de pêsames).
Em
inglês, o romance tem cerca de 265 mil palavras e um léxico de 30 mil. A cada
episódio corresponde um estilo diferente e, segundo alguns teóricos sugestionados
pelo autor, um órgão físico, uma cor ou até uma arte ou ciência diferentes. Os
protagonistas são três: Stephen Dedalus (alter
ego do jovem Joyce, com ecos de Hamlet), Leopold Bloom (símbolo do Judeu
Errante ou do irlandês excluído, como Joyce) e a sua mulher Marion (Molly) Bloom.
Mas Ulisses foi escrito para dar
privilégio absoluto e absoluto protagonismo à linguagem. É «um livro tão opaco
e pormenorizado como a vida» (John Updike). Como entrar nele?
Suponho
que a poucos agradará a ideia de provar um pequeno-almoço de rim de porco com
chá e torradas ou andar com uma batata no bolso, em homenagem ao tormento da
fome por que passaram os antepassados. Por exemplo, para (re)criar com
fidelidade a Dublin do Bloomsday, a via sacra de Bloom em Dia do Juízo Final
(Doomsday), James Joyce recorreu a um exemplar do Dublin Evening Telegraph desse dia e à edição de 1904 do Thom’s Directory, o diretório de todos
os imóveis residenciais e comerciais da cidade e respetivos proprietários. O
escritor acreditava que, se um dia fosse necessário reconstruir a cidade,
bastaria compô-la, tijolo a tijolo, a partir de Ulisses.
Talvez
só mesmo identificando-se com esta obsessão joyceana com os detalhes exteriores
mais microscópicos e dando um tremendo salto de contextualização histórica é
que o leitor atual de Ulisses conseguiria
penetrar de facto na vida das personagens, no tema principal (Bloom e o
Destino, segundo Nabokov) e no grande motor do romance: a verbalização
interior.
Segundo
José María Valverde, «Joyce foi um grande ouvido: a princípio [em Dublinenses] com uns olhos que captam de
vez em quando um instantâneo, uma “epifania”, como ele disse; finalmente, já
sem olhos [quase cego, criando a pirueta lexical Finnegans Wake]. […] Para o ler não basta a tradução (se não
sabemos inglês); temos de voltar à época em que a linguagem vivia na boca, no
ouvido e na lembrança.» Mais: para compreender realmente Ulisses, teríamos que ter presentes de memória todas as frases da
obra (E. R. Curtius).
Conhecemos
o mar verde-ranho ou mar escroto-constritor que Joyce parece
opor ao oceano azul de Byron. Conhecemos
bem de perto as opiniões de Stephen sobre a paternidade (pai = um mal necessário) ou sobre a trajetória
do mijo (com Bloom). Conhecemos a retrete e os borborigmos intestinais e as
reflexões masturbatórias do Sr. Bloom. Ou os devaneios de Molly sobre atos e
órgãos sexuais (os seios são, em definitivo, mais bonitos do que os pénis) explanados
em oito frases e 66 páginas de
solilóquio. O que sobressai em todos os casos é a franqueza e a crueza da
expressão-retrato de um ser humano. A repugnância pode ser um convite à empatia
humanitarista. Por exemplo, com Bloom, «uma criatura intrinsecamente decente»
(Vaz de Carvalho).
Este
portento de aproximação simultânea ao interior profundo de uma personagem «nos
extremos do realismo» (W. B. Yeats) só é possível graças a uma fidelidade ao
linguajar específico que o traduz. Joyce cria palavras interiores que se
deslocam em divagação e evocação, mas com naturalidade, pelo bruaá quotidiano
das grandes avenidas ou das ruelas esconsas, das bibliotecas e das redações, das
casas e dos pubs da Dublin moderna. «Eles estão todos aqui, os grandes
faladores, eles e as coisas que eles esqueceram», confidenciou o escritor a
Djuna Barnes. Para lá disso, o que existe é uma cadeia de acontecimentos
triviais sincronizados: «no decurso do livro, as pessoas tropeçam
constantemente umas nas outras: os seus caminhos encontram-se, separam-se e
voltam a encontrar-se […] uma coisa leva à outra neste maravilhoso livro»
(Nabokov).
Em Sobre a Literatura, Umberto Eco salienta
que Joyce estaria profundamente convencido de que a verdade artística está
contida em todas as línguas do mundo; manipulando-as, o escritor poderia
atingi-la. «Assim, dedicou grande parte da sua vida à invenção de uma nova
gramática e a procura da verdade tornou-se para ele [como para Dante] a procura
de uma língua perfeita.» Obcecado em inventar essa língua «perfeita, moderna e
natural», Joyce obstinou-se em restaurá-la «através da sua pessoal invenção
poética […] uma língua que não será arbitrária como a linguagem comum, mas
necessária e motivada». Onde tem origem esta odisseia do escritor?
José
María Valverde e John Updike colocam a interessante hipótese de a raiz estar na
educação jesuíta de Joyce. Foi ela que o levou «a criar uma novela do
quotidiano, guarnecida com referências e caixas e esquemas tão rigorosos como
num esotérico livro de feitiçaria», defende o escritor americano. É nela que
encontramos uma noção essencial que perpassa o desafio estilístico e temático
de Ulisses: a consciência do homem é
a consciência da linguagem humana e esta antecede os seus atos. Segundo
Valverde, o romance é «um exemplo extremo de exame de consciência, ao modo
jesuítico». Recorre a uma técnica de inspeção psicológica (o famoso stream of consciousness) que aceita a
linguagem como limite do homem e se constitui como «um processo de sentido
linguístico, de verbalização do vivido, mesmo que este tenha sido pecaminoso, tomando-o
em si mesmo com a maior objetividade».
Aqui,
o exame de consciência surge sem remorso, desejo de emenda ou qualquer intenção
moral ou catequista. Jorge Vaz de Carvalho defende: «Para que este seja um
romance pacifista, basta-lhe pôr na boca de Molly a queixa de que a guerra está
a matar todos os rapazes bonitos.» Para ser um retrato soberbo e original da
condição humana, basta-lhe tão só centrar-se num homem, Stephen, torturado por
não ter acedido ao pedido da sua mãe moribunda para que ele rezasse por ela, e
noutro homem, Leopold, reduzido, após a perda de um filho, a aceitar as
infidelidades da mulher, a deitar-se em posição invertida no leito conjugal e a
beijar os roliços melões adocicados
alourados perfumados do rabo dela.
«Há
quem diga que Ulisses é uma epopeia da mente, que é onde o indivíduo
pode conquistar uma Ítaca, de onde pode regressar de uma maneira relativamente
livre.» Para Vaz de Carvalho, o romance é, na sua épica do quotidiano, um
monumento à capacidade interior de superação. A proposta de Joyce é a de
mergulharmos num «não-estilo, que é exatamente a confluência e a profusão dos
vários estilos e vários níveis de língua, construídos ou pessoalmente ou
através de atos paródicos».
Entretanto,
Bloom escreve na areia
da praia: «eu sou um» e nunca completa a frase. «Esta ideia pode explicar a
questão central: a nossa vida, tal como o texto de Ulisses, está sempre a ser escrita e sempre toda ela por escrever.»
História incompleta e rede de encontros falhados expressa nos limites da
linguagem, Ulisses está muito próximo
de uma das fontes que Umberto Eco lhe atribui: o Livro de Kells (manuscrito composto por monges celtas entre os
séculos VIII-IX a.C.), «modelo do livro infinito ainda por escrever, só legível
por um leitor ideal afectado por uma ideal insónia». Para este leitor ideal,
aqui está um exemplo da obra-prima do escritor ideal: Pensamento é o pensamento do pensamento. Luminosidade tranquila. A alma
é de certa maneira tudo o que é: a alma é a forma das formas. Tranquilidade
súbita, vasta, candente: forma das formas.
LER Janeiro 2014
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)