Fernando
Pessoa garantiu que para viajar basta existir. Depois de mais de cinquenta anos
a correr mundo, a ler e a escrever sobre viagens, Paul Theroux atingiu o que é
reservado a poucos: um ponto onde milhares de vidas se cruzam com milhares de
rotas. Assim surgiu uma das melhores antologias de sempre sobre a arte da
viagem.
Ir
ao cabo do mundo é ir ao cabo de si mesmo. E voltar. Por mais ou menos iniciática,
romântica ou new age que seja, esta
convicção continua a alimentar o imaginário da grande arte de viajar. O verdadeiro
viajante será um andarilho, um peregrino, um intruso, um errante que desbrava o
mundo que lhe é desconhecido e temeroso, sem nunca o querer domar ou arrotear.
Um ser nos antípodas da espécie hoje mais comum em todas as rotas do globo: o
turista predador, desprezível papa-miles,
tours, snapshots, happenings, resorts, cruises, amusements, shoppings e memorabilia. O grande viajante deve antes entregar-se ao
ensinamento de Buda: «Não podes viajar pelo caminho antes de te tornares o
caminho.» O grande viajante viaja até quando está parado. É ele o protagonista d’
A Arte da Viagem e a fonte de inspiração
para o que este livro propõe ao leitor: partir, fisicamente estático, para todo
o alhures e com as melhores companhias.
A Arte da Viagem «pretende ser um guia,
um como fazer, uma miscelânea, um vade
mecum, uma lista de leituras, uma reminiscência». Recolha de experiências e
escritos de viagens organizada por Paul Theroux em 2011 a partir dos seus mais
de cinquenta anos de leitura, prática e escrita de viagens, esta antologia candidata-se
à lista dos melhores livros de sempre para ler numa praia, quer esteja superpovoada
ou fique numa ilha deserta.
A
primeira vez que viajei sozinha para o estrangeiro tinha doze anos, passei mais
de 24 horas (tirando umas quatro pausas para chichis) espremida num banco de camioneta,
a mastigar compulsivamente os frutos secos que a minha mãe me mandara por
farnel e a rever incessantemente os passos que teria de dar mal chegasse ao destino.
Quando pus o pé em Paris, as pernas pareciam de pedra, a cara tinha explodido
em borbulhas e eu estava aterrorizada. Mas pela primeira vez experimentava a
minha dose de uma mistura poderosa e aditiva de medo e euforia: a sensação de ser
um viajante. Mais, tinha sido iniciada na solidão e ganhara uma história para
contar.
Uma
das virtudes d’A Arte da Viagem é
precisamente o facto de Paul Theroux destacar a solidão como qualidade intrínseca
da maioria dos grandes viajantes (embora haja um capítulo reservado àqueles «Que
Nunca Foram Sozinhos», como Bruce Chatwin, André Gide, Sir Richard Burton ou V.
S. Naipaul). Estão aqui muitos dos mais respeitados viajantes-contadores de que
há memória, mas nunca as suas narrativas e experiências são comparadas entre si,
o que sustenta as suas excecionalidade e singularidade. Ainda assim, e é o único
senão da estratégia, a perspectiva de Theroux serve de soberano fio condutor: no
primeiro dos vinte e sete capítulos do livro (em grupos de três, iniciados com
a Sabedoria de Viagem de um grande
viajante) são dele 94 das 120 citações de aforismos ou epigramas incluídas, o
que, convenhamos, se revela um escusado périplo à volta do próprio umbigo.
Segundo
Sir Francis Galton, os dorminhocos e os surdos são os únicos humanos incapazes
de viajar sozinhos e isto só porque a vigília e a vigilância são essenciais em
viagem. Freya Stark, autora de mais de trinta livros sobre as tradições do Médio
Oriente, do Afeganistão e da Turquia («o país mais esplêndido, mais variado e
mais interessante do mundo», disse ela), acreditava na viagem solitária como uma
vacina para a «doença de estar sempre a fazer
alguma coisa». Também para o compulsivo gregarismo da vida ocidental: «A
solidão, refleti eu, é uma profunda necessidade do espírito humano a que nunca se
dá o reconhecimento adequado nos nossos códigos. É considerada um castigo ou um suplício,
mas quase nunca como o agradável ingrediente indispensável à vida normal, e
desta carência vem metade dos nossos problemas domésticos.»
Acompanhado
ou rodeado por uma multidão, cada viajante só se torna um narrador no momento
em que a solidão e o silêncio o destacam de todos. Só então adquire olhos de ver, apercebendo-se e sentindo no
singular. Quando eu era pequena e estava nas colónias de férias, esta sensação
manifestava-se depois de me isolar algures para escrever o postal regulamentar para
casa. As duas primeiras frases eram sempre: «Por aqui está tudo bem. Tenho os
olhos cheios de vistas.» Só depois vinha o relato. Theroux conta que, em
viagem, se não falasse durante dois dias seguidos, «tinha a impressão alarmante
de que estava a desaparecer». Parece contraditório: «viajar é um ato de
desaparição» mas, como escreveu Jonathan Raban, «a solidão faz acontecer
coisas.» Dentro e fora das nossas cabeças.
Noutro
passo, Theroux afirma que «Infinito é
o tipo de hipérbole que afecta muitos viajantes iludidos em África». Paul
Bowles, na verdade, é muito culpado pela metáfora estafada do chá no deserto. Todavia, o próprio Bowles
esclarece que o Sara é um dos poucos locais acessíveis à face da Terra onde
dinheiro não é sinónimo ou garantia de conforto. Então, porquê ir? Porque é lá
que se escuta o maior silêncio e ocorre o «baptismo da solidão»: «Uma vez que
esteja sob o feitiço do país vasto, luminoso e silencioso, nenhum outro lugar é
suficientemente forte para [um homem], nenhum outro ambiente pode
proporcionar-lhe a sensação supremamente satisfatória de existir no meio de
algo que é absoluto. Voltará, custe o que custar em conforto e dinheiro, porque
o absoluto não tem preço.»
Comparável
a A Arte da Viagem entre as
antologias do que de melhor alguma vez se escreveu sobre viagens, só mesmo A Book of Traveller’s Tales (1985) de
Eric Newby, mas este peca por se centrar no anacrónico viajante da época de
ouro da descoberta, exploração e colonização do mundo. Paul Theroux, a par de
Bruce Chatwin, Rory Stewart, Rudyard Kapucinski ou James Fenton, pertence à geração
inovadora que, associada à primeira
edição Travel Writing lançada pela Granta em 1983, cunhou uma nova tradição
de viagem e escrita de viagens, destacada de qualquer ismo ou doutrina e mais
próxima de noções como liberdade, diferença.
Em A Arte da Viagem desfilam as mais variadas
experiências (e conselhos), mas está implícito que ir e voltar de verdade significa sobretudo mergulharmos
como que nus no quase absoluto desconhecido, entre estranhos, fora do tempo e
aguardando mais a estranheza, as dificuldades e o medo do que a felicidade, a
surpresa ou o fascínio. Viajar é como atravessar um espelho e ver-se do avesso
do outro lado. O verso e o reverso da grande
viagem tem tantas expressões quantas as personalidades e objetivos dos
viajantes que nela se refletem. Pode ser uma expedição guiada no Evereste: Jon
Krakauer garante que esta escalada só deve ser feita por pessoas programadas
para ignorar o sofrimento pessoal e driblar o terrível dilema do equilíbrio
certo entre motivação e noção do perigo. Pode ser a procura de uma droga:
William Burroughs odiava viajar e desprezava estrangeiros, mas percorreu a América
Latina e embrenhou-se na selva da Alta Amazónia em busca da ayahuasca, uma poção feita de videira. Pode
ser um bom par de horas a regatear uma dejellaba
num souk marroquino, onde «uma pessoa é tentada a pensar que há mais tipos de
preços do que tipos de pessoas no mundo» (Elias Canetti). Pode ser o êxtase da
luz crepuscular reflectida no Palácio Potala em Lhasa ou... provar escaravelho
de saguzeiro frito na Nova Guiné (Tim Cahill), pés de urso, barbatanas de foca ou
mão de macaco. Pode ser um memorável exercício de paranoia (Evelyn Waugh no
Ceilão) ou um desafio para vencer a agorafobia (Geoffrey Moorhouse, seis mil
quilómetros pelo deserto desde o Atlântico até ao Nilo: «para explorar o
extremo da experiência humana»). Theroux reserva mesmo um capítulo para os casos
de escritores que descreveram lugares onde nunca foram, como Kafka em relação à
América ou Edgar Rice Burroughs (criador de Tarzan) e Saul Bellow em relação a África.
No limite, «fechar os olhos é viajar», como assegurou a poetisa norte-americana
Emily Dickinson, a Grande Reclusa (viveu 25 anos sem sair do perímetro da casa
dos pais).
Quando
os inuit polar viram pela primeira vez um branco diferente deles (o explorador
Sir William Harry em 1821) questionaram-se: «É do Sol ou da Lua?» Salto no
escuro, «fuga e perseguição em partes iguais» (Theroux), toda a viagem significa
um encontro marcado com o Outro e a
sua diferença e estranheza. A relação entre locais e viajantes pode ser a
experiência mais trágica ou a mais hilariante e A Arte da Viagem contém várias histórias que ilustram as duas
possibilidades. Contudo, ainda é mais cativante descobrir que o grande viajante
é alguém capaz de, muitas vezes de forma extremada, revelar-se um Outro que antes
supunha não existir dentro de si. Efeito de adaptação, transformação ou forma
de resistência? Dervla Murphy, por exemplo, disfarçou-se de homem para viajar
através da Etiópia. Mas, quando foi de bicicleta da Irlanda à Índia (a base do
relato Full Tilt), viveu uma experiência
tão ou mais radical: «Quando cheguei à fronteira afegã, parecia-me
perfeitamente natural, antes de uma refeição, limpar a lama seca do pão, tirar
os pelos do queijo e catar os insetos do açúcar. Também tinha deixado de
registar a presença de moscas, a ausência de talheres e o facto de não despir a
minha roupa nem dormir numa cama há dez dias.» Outra coisa não seria de esperar
de quem aconselha: «Ao nascer do Sol, não é necessário, nem sequer desejável,
saber onde iremos estar ao pôr do Sol.» Valerian Albanov, atravessou 235 milhas
do Ártico na neve, no gelo e no mar alto. Após dois meses sem se lavar e com a
roupa interior tomada pelos parasitas, afiançou: «Se puséssemos uma das nossas
blusas infestadas no chão, ela arrastar-se-ia sozinha para longe!»
Em A Arte da Viagem, Paul Theroux arruma os
vários viajantes e narradores de viagens segundo rotas, meios de transporte
(privilégio para os amantes do comboio), motivações, bagagens, medos e neuroses,
companhias, nacionalidade («Sobre Fugir de Inglaterra»), delírios, refeições, fantasias,
epifanias ou até pela duração das viagens. Neste último caso, destaca-se o
antropólogo Paul du Chaillu, primeiro estrangeiro
a confirmar a existência de gorilas e de pigmeus na África Central. Passou no total
só três anos a viajar, mas fê-lo «sempre a pé e sem a companhia de outros
homens brancos — cerca de 13 000 quilómetros»: «Abati, embalsamei e trouxe para
casa mais de 2000 aves, mais de 60 das quais são espécies novas, e matei mais
de 1000 quadrúpedes, 200 dos quais foram embalsamados e trazidos para casa,
sendo 60 até aí desconhecidos da ciência. Sofri cinquenta ataques de febre
africana, tendo tomado, para me curar, mais de quatrocentos gramas de quinino.»
Que diferença de Xavier de Maistre, defensor das viagens à volta do próprio
quarto. Ou do grande poeta romântico inglês William Wordsworth: anósmico (não
tinha olfato), adorava flores, estar ao ar livre e toda a vida compôs poemas durante
caminhadas (sobretudo pelo Lake District inglês). Aos sessenta anos de idade, os
seus passeios a pé diários iam pelo menos até às quatro horas de duração e aos
trinta e seis quilómetros de percurso. As viagens, pequenas ou grandes, longas
ou curtas, reais ou imaginárias, incómodas ou confortáveis, assustadoras ou
pacificadoras, são sempre partidas de Cá para Lá. Em A Arte da Viagem transformam-se em «histórias de Lá e Volta»(Theroux).
1ª edição: The Tao of Travel: Enlightments
from Lives on the Road, Paul Theroux, Houghton Mifflin Harcourt, Maio 2011,
Boston, EUA
Personagens principais:
Paul
Theroux é o protagonista de todas as escolhas e reserva-se o maior espaço de
citação, relato e opinião. Ainda assim, destaca a «Sabedoria de Viagem» de
Henry Fielding, Samuel Johnson, Sir Francis Galton, Robert Louis Stevenson,
Freya Stark, Claude Lévi-Strauss, Evelyn Waugh e Paul Bowles.
Curiosidades:
• Da
Patagónia, não passarás. Também para Paul Theroux e Bruce Chatwin, fundadores
de um novo tipo de experiência e escrita de viagens no século XX, ainda que com
personalidades diferentes e em alguns aspectos opostas, a Patagónia foi uma
experiência e uma metáfora do «cabo final do exílio», limite metafórico para as
suas ambições de conhecimento e exploração do mundo. Da memorável conversa que
um dia os dois tiveram na The Royal Geographical Society sobre esta influência
nasceu, em 1986, um pequeno livro que é um tesouro: Regresso à Patagónia (Quetzal, 2009).
• O
livro de viagens mais famoso e considerado de Paul Theroux foi o de estreia, O Grande Bazar Ferroviário (1975;
Quetzal, 2011), relato do percurso que fez da Grã-Bretanha ao Japão e volta.
Mas talvez o seu relato de viagens mais talentoso seja Subway Odissey, um texto publicado no The New York Times a 31 de Janeiro de 1982 e ainda acessível no
site do jornal. Nele, Theroux descreve as suas impressões sobre o metro de Nova
Iorque com a mesma intensidade com que descreveria uma viagem ao coração da
selva ou ao pico dos Himalaias.
• O
mais recente livro de viagens de Paul Theroux chama-se The Last Train to Zona Verde: My Ultimate African Safari e foi lançado
em Maio deste ano pela Houghton Mifflin Harcourt.
Porque
se todo o verdadeiro caso amoroso puder ter o sabor de uma viagem a um país
estrangeiro, onde não sabemos falar a língua e não sabemos para onde vamos e
somos puxados cada vez mais para dentro da sedutora escuridão, toda a viagem a
um país estrangeiro pode ser um caso amoroso em que ficamos a pensar quem somos
e por quem nos apaixonámos. (…) Todas as viagens têm que ver, como o amor, com
sermos tirados de dentro de nós próprios e depositados no meio do terror e do
espanto. Pico Iyer
Tchekov
disse: “Se tens medo da solidão, não te cases.” Eu diria: se tens medo da solidão,
não viajes. A literatura de viagens mostra os efeitos da solidão, umas vezes
desolada, mais frequentemente enriquecedora, de vez em quando inesperadamente
espiritual. Paul Theroux
Escolha
o país, sirva-se de guias de viagem para identificar as zonas mais frequentadas
por estrangeiros — e depois vá em sentido contrário. Dervla Murphy
LER 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)