Bernardo
Santareno testemunhou a crueza e a violência da pesca bacalhoeira portuguesa no
Atlântico Norte, o avesso de um regresso lendário do país ao mar.
«No
meio do mar (um homem sozinho no seu dóri!) há um silêncio estranho, musical e
ciciado: o silêncio dum Olhar longínquo e intenso. É um silêncio doloroso,
quase feliz...» Entre outras experiências que viveu a bordo dos navios
bacalhoeiros portugueses, o escritor e médico Bernardo Santareno (pseudónimo de
António Martinho do Rosário, 1920-1980) descobriu o silêncio do mar alto. Um
silêncio que suspende tudo e obriga o homem a entrever o seu próprio nascimento
ou a sua própria morte. Um silêncio épico, fundador e terrível. Nos mares mais
violentos e traiçoeiros, os do Atlântico Norte, ele foi escutado por gerações
de portugueses que integraram a Frota Branca portuguesa (ativa durante meio
século, até 1974), cumprindo a tradição familiar ou escolhendo o bacalhau
para se safarem à mobilização para a Guerra do Ultramar.
Poucos
testemunhos existem ainda hoje que rompam a «membrana ideológica» (Álvaro
Garrido) com que o Estado Novo revestiu a condição e a vivência dos
pescadores-marinheiros portugueses na faina do bacalhau. Logo em 1957, Bernardo
Santareno rasgou este silêncio com a peça A
Promessa, regressando ao tema em 1959 em dois documentos excecionais: a
peça O Lugre e o seu único título em
prosa, Nos Mares do Fim do Mundo.
Este último, escrito em registo diarístico e de crónica de viagens, foi agora
reeditado pela E-Primatur, em edição ilustrada, acrescentada de dois textos,
provavelmente autocensurados pelo autor. Num deles, «Responsabilidade»,
Santareno escreve: «Claridade: Quero terminar esta viagem mais puro, mais
harmónico, mais seguro.»
No
prefácio, o historiador Álvaro Garrido esclarece que são desconhecidos os
motivos que levaram Bernardo Santareno a embarcar como médico no arrastão David
Melgueiro, em 1957, depois no navio-motor de pesca à linha Senhora do Mar e no
navio-hospital Gil Eannes, em 1958. Num dos primeiros textos de Nos Mares do Fim do Mundo, o autor,
revelando o seu profundo catolicismo, diz: «Como Jesus lavando os pés aos
apóstolos, assim eu queria servir esta gente.» Pelos mares da Terra Nova e da
Gronelândia, assiste e participa no quotidiano dos pescadores, terminando por
chamar-lhes «tipos perfeitos da raça». Junto deles encontra perfis humanos cuja
autenticidade supera a heroicidade empolada pelo discurso oficial e ideológico.
Próximo das estéticas do simbolismo e do realismo social, regista com detalhe «todos
os aspetos da vida» a bordo, os movimentos e as práticas, os sotaques, as
dinâmicas coletivas, a rotina violenta de trabalho, mas também as
sensibilidades, as crenças e fantasias individuais e o enfrentamento solitário
da força do mar ou do destino. Muitas vezes, descreve tipos e situações
caricatas, noutras compõe quadros quase crísticos, de profunda poesia ou
profunda solidariedade para com os homens da companha, «a carne pisadinha dos
pobres».
Obra
única na literatura portuguesa, Nos Mares
do Fim do Mundo é, como Peregrinação de
Fernão Mendes Lopes, um documento esclarecedor e desmistificador sobre os «Mais
Rijos Navegadores do Mundo» (Alan Villiers). Com grandes subtileza psicológica
e capacidade dramática, Bernardo Santareno relata o que vê, o que sente, o que
faz e o que ouve. Ele esteve lá, onde os homens postos sozinhos «frente ao
infinito», em silêncio, pescaram o bacalhau nas mais duras condições de que há
memória. Não deixem de ler este livro.
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Nos
Mares do Fim do Mundo, Bernardo Santareno, E-Primatur, 245 págs., 17.90 euros
Jornal
“i” | 18-04-2016
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)