Território privilegiado do imaginário de Claudio
Magris, a Europa Central, cujas fronteiras continuam vagas, mutáveis e indefiníveis,
poderá ser apenas uma nostalgia do passado ou a fonte para uma outra e nova
percepção da Europa.
Noite de solstício de verão de 2007, Pico de
Cankar, colina de Rožnik, junto à capital
eslovena, Lubliana. Há gulache, cerveja e slivovica (aguardente),
servidos em pratos e copos de papel. Há gargalhadas estrepitosas, uma corrente
de euforia prazenteira entre os convidados espalhados pelas mesas e bancos de
madeira em torno da cabana de Ivan Cankar. Entre 1910 e 1917, Cankar
(1876-1918), o maior poeta esloveno, comparado a Kafka ou a Joyce, viveu aqui.
Por isso se celebra todos os anos nesta colina a entrega do Kresnic, o mais
importante prémio literário esloveno. Durante a cerimónia, honra-se também
Kresnic, divindade eslava associada ao fogo e ao solstício, um camponês que se
tornou rei, com poderes mágicos, cabelo e braços e mãos de fogo e doze
trabalhos cumpridos, como Hércules. Entre o fogo de artifício e as danças, que
recriam encenações e coreografias pagãs milenares em homenagem à natureza,
pergunto a um jovem escritor esloveno: «Tudo isto pela literatura? Toda esta
festa? Toda esta alegria?» Ele levanta a sua caneca, e grita: «Pela literatura!
Pela sobrevivência da Eslovénia!» Todos rimos e brindamos. Mais tarde, em
surdina, diz-me: «Porque é que achas que nunca passamos do fundo da tabela do
campeonato de futebol europeu?»
Será talvez demasiado difícil para um português
imaginar um país com cerca de dois milhões de habitantes, constituído graças à
tradução da Bíblia para a sua língua (em 1551, pelo reformador protestante Primož Trubar), onde os monumentos públicos e a
toponímia homenageiam sobretudo ficcionistas, poetas, gramáticos, ensaístas e
dramaturgos, um país com um dos mais altos níveis de literacia de todo o mundo
e onde a indústria cultural é mais importante do que a agrícola. Integrada na União Europeia em 2004, a Eslovénia foi durante anos a menina
dos olhos de Tito, isto é, a única ponte de contacto do leste comunista com o
ocidente europeu, simbolizada no cosmopolitismo de Trieste, cidade-natal de
Claudio Magris.
Ao longo da história, o povo do território que é
hoje a Eslovénia (com fronteira com quatro países e o mar Adriático) foi
subjugado pelo Império Romano, pelo Império Bizantino, pela República de
Veneza, pelo Ducado da Carantania (o primeiro estado eslavo), pelo Sacro-Império
Romano-Germânico dos Habsburgo, pelos Impérios Austríaco e Austro-Húngaro, pela
ocupação nazi, depois pela integração no Reino dos Sérvios, Croatas e
Eslovenos, por fim na República Socialista Federalista da Jugoslávia. Em 1991,
conquistou por fim a sua independência. O escritor esloveno Drago
Jančar explica: «À semelhança de outras nações
centro-europeias, na ausência histórica de qualquer poder político real, a
identidade da pequena nação eslovena afirmou-se através da cultura e da
literatura. Ou seja, fê-lo através da língua que os eslovenos salvaguardaram ao
longo dos séculos, como os judeus fizeram com a sua Tora.» O exemplo da Eslovénia
traduz uma força escondida no centro da Europa e identificada por Milan
Kundera: «A Europa Central não é
um estado. É uma cultura ou um destino. As suas fronteiras são imaginárias.»
Europa Central, Mitteleuropa, Europa de Leste, Zwischeneuropa,
Leste europeu, Zentraleuropa, Ásia Ocidental (Brodsky), Südosteuropa, Europa
Central de Leste... O que é? Uma cultura tornada comum entre povos pela
monarquia Habsburgo? Uma área relativamente barroca que se estende de Triste até
ao Báltico? Nações do centro da Europa que estiveram sob os domínios otomano,
austro-húngaro, alemão e soviético? Uma entidade política e geográfica cujas
coordenadas fronteiriças seriam, a oeste a atual Suíça, a leste a Ucrânia, a
norte os Países Bálticos, a sul a Croácia? A comunidade de pessoas que, ao
tempo da Primeira Guerra, viviam «entre os alemães e os russos» (Thomas G.
Masaryk)? Os países que, em 1915, o teólogo evangélico alemão Friedrich Naumann
quis integrar num sonho de pan-germanismo e liberalismo imperial chamado Mittleuropa, depois transformado em Lebensraum, pesadelo de expansionismo
territorial nazi? O espaço controlado pelos partidos comunistas ou com uma relação
política, militar e ideológica com a URSS até ao seu término? Um Leste
abandonado? Os sítios onde o Leste e o Ocidente colidem? Ou, muito
simplesmente, todos os sítios europeus onde se come strudel?
Aqui, preferiremos identificar a Europa Central
tal como ela surge como utopia num livro-peregrinação extraordinário chamado Danúbio. Nele, Claudio Magris refere
como este rio surge com frequência envolto num halo simbólico anti-alemão. Mas,
relembra: «É o rio ao longo do qual se encontram, se cruzam e se misturam
gentes diversas, em vez de ser, como o Reno, um mítico anjo tutelar da pureza
da estirpe. É o rio de Viena, de Bratislava, de Budapeste, de Belgrado, da Dácia
[atual Roménia], a faixa que atravessa e cinge, como o Oceano cingia o mundo
grego, a Áustria dos Habsburgos, da qual o mito e a ideologia fizeram o símbolo
de uma koinè múltipla e
supranacional, o império cujo soberano se dirigia “aos meus povos” e cujo hino
era cantado em onze línguas diferentes. O Danúbio é a Mitteleuropa
alemano-magiar-eslavo-românico-judaica, polemicamente contraposta ao Reich, germânico, uma ecúmena “hinternacional”,
como a celebrava em Praga Johannes Urzidil, um mundo “anterior às nações”.»
A discussão
sobre a viabilidade e utilidade do termo e do conceito de Europa Central (criado pelos franceses nos anos vinte e propagado
pelo jornal homónimo publicado pelo governo da Checoslováquia) começou
nos anos 80, com a publicação dos textos The Tragedy of Central Europe, de
Milan Kundera (New York
Review of Books, abril 1984) e Does Central Europe exists?, de
Timothy Garton Ash (New York
Review of Books, outubro 1986), dos ensaios do checo Václav Havel (1936-2011)
e do polaco Czesław Miłosz
(1911-2004). Juntaram-se-lhe variadas abordagens, condensadas na plataforma Cross Currents,
criada pelo departamento de Línguas e Literaturas Eslavas da Universidade de
Michigan e ativa entre 1982 e 1993. As ideias então defendidas determinaram que
o estudo académico da região se alargasse a mais do que «notas de rodapé da
Sovietologia» (Garton Ash) e para lá dos condicionalismos de uma abordagem
meramente histórica. Hoje, as perspectivas de Kundera, Ash ou Miłosz estarão
desfasadas no tempo, urgente que é analisarem-se os efeitos do exacerbamento
dos nacionalismos e da evocação das memórias nacionais após a queda do regime
soviético e, sobretudo, avaliar a calamidade e as cicatrizes provocadas pela
guerra servo-croata dos anos 90. Contudo, como defendeu a jornalista e ensaísta
polaca Barbara Torunczyk, o debate dos anos 80 contém a essência da pesquisa do
que une «um número de nações com histórias antigas e complexas, cujas aspirações
à elevação a Estado e à independência política datam de tempos imemoriais».
No
centro da discussão, subsiste a ideia de que, ainda que seja uma mera utopia ou
uma invenção intelectual, uma certa forma de considerar a cultura e a história
na Europa Central pode ser a chave para a sobrevivência da própria Europa: uma
Europa bastião do humanismo universalista, aspiração colocada no centro do seu
significado económico, social e político. A concretização de uma idealizada
harmonia de povos diferentes, contra o bastião de Limes. Afinal, uma Europa a
milhas de distância da presente Europa, onde a ignorância generalizada dos europeus ocidentais
sobre o Leste europeu se traduz na forma bárbara como acolhem os seus
imigrantes. Em Portugal, por exemplo, são todos metidos no mesmo saco (é
frequente serem denominados indiscriminadamente como «ucranianos», ignorando-se
a distinção básica entre o grupo dos eslavos - ucranianos, búlgaros, russos - e
o grupo dos latinos - romenos e moldavos), recebidos como europeus de segunda
classe, parentes pobres a quem se cede esmolas e trabalhos desqualificados.
Pergunto-me até mesmo se será abordada nas escolas a memória do
passado de ouro da Europa Central, situada na última fase do império dos
Habsburgos, quando «o centro de gravidade vital» da civilização europeia se
situava entre Viena ou Budapeste» (Kundera).
A época áurea da Europa Central (que, saliente-se,
nunca foi uma «unidade desejada ou intencional») resultou
de uma mescla entre culturas regionais, o melhor do iluminismo alemão e a cultura
dos judeus asquenazes assimilados. Produziu símbolos maiores do
interculturalismo produtivo. Dela herdámos, entre tantas outras coisas, a
psicanálise, o lied, a música dodecafónica,
a semiótica, a cultura dos cafés (e dos bolos com creme), as primeiras noções
de união monetária ou de ecologismo, a filosofia polaca, a literatura
vanguardista checa, a crítica e a teoria sociais húngaras, a poesia lírica
austríaca, a valorização do multilinguismo, o dadaísmo de Tzara, o humor negro
e o niilismo de Urmuz e..., e... E a nostalgia de toda esta riqueza que, hoje,
nos faz sentir órfãos da modernidade e das suas promessas (Magris). Em Danúbio, Magris diz-nos que os grandes
poetas da ironia vienense se alimentaram também da «brutalidade mascarada de
bonomia» que fez de Viena o «baixo-ventre da História», uma «estação metereológica
do fim do mundo» (Karl Kraus). Em frente da casa de Joseph Roth, Magris assegura-nos,
por exemplo, que ninguém que ali morasse podia deixar de se tornar «especialista
em melancolia, a nota dominante de Viena e da Mitteleuropa; uma tristeza de colégio
e de quartel, a tristeza da simetria, da fugacidade e do desengano»: «Em Viena,
temos a impressão de que se vive e sempre viveu no passado, cujas rugas escondem
e protegem até a alegria.» Uma mescla de ocaso e de futuro.
Não podemos esquecer-nos de que, naquela mesma Europa
Central onde ocorria uma explosão de génios intemporais, a taxa de iliteracia
entre os húngaros era de três por cento e elevava-se para setenta a oitenta por
cento nos países balcânicos. A transmissão das distintas tradições e culturas
era, desde sempre, marcadamente oral. A abertura e assimilação dos judeus era
uma simples brecha numa longa história de perseguição. O Império Austro-Húngaro
tinha traços fortes de Cacânia. «Num estado [que não fora] guiado nem por um
conceito claro, nem pela vontade criativa das pessoas, nem “pela associação
livre de nações que poderia ter sido o seu esqueleto e revigorado os seus
tecidos com o seu sangue” (Robert Musil), provavelmente o único conceito que
[verdadeiramente] ganhou forma […] como um tumor, criado pela estruturas
administrativas anónimas das duas cabeças do império, foi o antissemitismo» (Miłosz).
«O nazismo é a inesquecível lição da perversão da presença alemã na Europa
Central» (Magris).
Nos tais génios intemporais germinava já um
pressentimento deste fim de festa, um desavisado prenúncio do tumor dos
totalitarismos do século XX. Kundera enuncia-o:
«Gustav Mahler escreveu uma canção de adeus a um mundo que estava a
desaparecer. Musil, no Homem Sem
Qualidades, fala de uma sociedade que, sem o saber, não tem futuro. Hermann
Broch percepcionou a história contemporânea a partir da degradação dos valores.
Kafka concebeu o mundo como um infinito labirinto burocrático, dentro do qual o
homem está inexoravelmente perdido. O valente soldado Švejk de Jaroslav Hašek
imita os cerimoniais do mundo à sua volta com tanto zelo que os transforma numa
enorme gargalhada. […] Foi na Europa Central que irrompeu uma forma lúcida de cepticismo
no meio da nossa era de ilusões. Este cepticismo nasce de uma experiência
extremamente concentrada da história: assistimos ao colapso de um grande império
ao longo do nosso século, ao acordar das nações, à democracia, ao fascismo,
assistimos à ocupação nazi, à miragem do Socialismo, a deportações massivas, ao
reino de terror estalinista e à sua queda, e, finalmente, assistimos à coisa
mais importante de todas: à agonia do Ocidente nos nossos próprios países e
perante os nossos olhos. […] A Europa Central representa o destino do Ocidente,
na sua forma concentrada. […] E, no entanto, a Europa Central já não existe. Os
três sábios de Ialta dividiram-na e condenaram-na à morte. Não ligaram mínima
se era uma questão de alta cultura ou não.»
Winston Churchill disse um dia que «os Balcãs
produzem mais história do que aquela que conseguem consumir localmente». E poderia
ter dito «cultura» em vez de «história». Na verdade, os pequenos países do
centro-europeu nunca se renderam aos seus opressores porque, como defendeu Robert
W. Seton-Watson, «as culturas nacionais são virtualmente indestrutíveis».
Alimentadas pelo passado, as fronteiras civilizacionais atravessaram os séculos,
comprovando a efemeridade dos regimes políticos. Kundera afirmou-o numa
entrevista conduzida por Finkielkraut: «Todo o homem sabe que é mortal, mas está
totalmente convencido de que a sua nação possui uma espécie de vida eterna.»
Acreditar na sobrevivência de uma língua, de uma literatura e de uma cultura tornou-se
o principal motor de resistência. Os pequenos países do centro-europeu
engrandeceram graças a uma vida espiritual autónoma, que fez a história perder,
afinal, o seu valor e conferiu um valor transcendente à arte. Permanentes
vítimas de opressão, as literaturas centro-europeias desafiam os limites dos
estudos de literatura comparada, mas constituem um património que pertence,
hoje, a toda a Europa («há várias literaturas europeias, mas só uma
literatura europeia», defende Kundera). Ali, a força da cultura, nascida da
ruptura entre o indíviduo e a realidade, simboliza uma recusa da política e a exigência
de valores e de sentido.
Czesław Miłosz escreveu em 1986: «A Europa Central parece
existir apenas na cabeça de alguns intelectuais. Contudo, o passado desta área
— um passado comum apesar da multiplicidade de línguas e nacionalidades — está
sempre presente ali e é bastante real na arquitetura das cidades, nas tradições
das universidades e na obra dos poetas. O próprio presente não consegue escapar
a sinais que indicam o factor comum que sublinha a diversidade. Quando reflito
sobre obras escritas hoje em checo ou polaco, húngaro ou estónio, lituano ou
servo-croata, descubro um tom e uma sensibilidade que não encontro em mais lado
nenhum, nas literaturas europeia ocidental, americana ou russa.» O escritor
jugoslavo-sérvio Danilo Kiš (1935-1989) lembrou que, durante o domínio
soviético, pertencer à cultura centro-europeia, identificar-se como tal, foi
uma forma de dissidência que conduziu ao exílio (Miłosz, Kundera), à marginalidade, à publicação em samizdat (Konrád) ou à prisão (Havel). Todavia,
esta idealização do Ocidente como pedestal da cultura e da civilização nunca
produziu imitações, antes criações autónomas, profundamente originais. «A
cultura europeia de leste orienta-se pelo ocidente, enquanto a nossa vida é
modelada pelo Leste. […] Esta dualidade, este estar-entre, caracteriza cada um dos nossos movimentos, das nossas
reações, e é notório nos livros que escrevemos», defende o húngaro Péter Esterházy (n. 1950).
Segundo
Miłosz, na literatura ocidental, «o tempo é neutro, não
tem cor, não tem peso, flui sem ziguezagues, curvas súbitas ou quedas de água
(cataratas)». Na literatura centro-europeia, pelo contrário, ele é «intenso,
espasmódico, cheio de surpresas, […], praticamente um participante na história»:
«Isto acontece porque o tempo é associado ao perigo que ameaça a existência da
comunidade nacional à qual o escritor pertence.» Nesta associação da história a
uma ameaça, os centro-europeus aproximam-se da identidade sempre em risco
experienciada pelos judeus europeus, para os quais existir é ter sempre a mala à
porta e, lá dentro, só é possível arrumar o património imaterial: a Tora, o hebraico,
o saber, a literatura — ser judeu é um eterno recomeço. Como a marca de um
sapato de Ahasverus, o mítico judeu errante, conservada em Ulm até ao século
XVII, talvez nasça ali alguma raiz da sensação de lentidão e de tempo suspenso que
se entrevê em praticamente toda a literatura centro-europeia e a insistência
daqueles povos na cultura como algo espiritual, metafísico, mas que resiste e deixa
traços reais na paisagem. A «consciência
da forma é uma característica partilhada por todos os escritores da Europa
Central, forma como desejo de dar um sentido à vida e à ambiguidade metafísica,
forma como possibilidade de escolha,
forma que é uma tentativa de, no meio do caos à nossa volta, localizarmos
pontos de fulcros como os de Arquimedes (“Dêem-me uma alavanca suficientemente
longa e um fulcro onde a apoiar, e eu farei mover o mundo”), forma que é oposta
às desordens da barbárie e à irracional arbitrariedade dos instintos» (Danilo
Kiš). Claudio Magris exemplifica-o de outro modo: «No cadastro [de Grillparzer
e de Kafka], a vida mostra toda a sua maldade; quem as sofre e regista pode
atirar à cara da vida esse protocolo da sua inconveniência e por isso dominá-la,
olhando-a de cima para baixo, como o reitor que dá a sua nota ao último da
turma.»
A ideia é recorrente e tão romantizada como a
associação dos centro-europeus à figura dos rebeldes hajduks. Dominados durante
séculos, forçados a várias formas de exílio interior e de gueto, os
centro-europeus terão sido impulsionados para a coragem e para a procura da
verdade em todas as atividades humanas, incluindo a arte (Milan Jugman). A
transmissão de traumas entre gerações levou a que esta ideia se transformasse numa
metáfora com existência interna, uma arma de resistência perante o quotidiano
opressivo. «A nossa literatura não procura alterar a realidade (sendo bastante resignada,
neste aspecto), mas, sim, ajudar a realidade a sobreviver», sustentou o ensaísta
húngaro Peter Balassa. Referindo que Miłosz terá
dito um dia que «os escritores
ocidentais nunca levaram suficientes pontapés no rabo», Péter Esterházy acrescentou: «De acordo com este aforismo, (na nossa
disfarçada luta por fazer o Ocidente reconhecer os nossos distintivos valores,
forças, estranhezas) o nosso trunfo é o facto de a nossa condição brutalizada
nos ter aproximado da vida, tal como ela é.»
Derrubado o muro de Berlim (1989), os europeus
olharam para o horizonte e uma parte da Europa eclipsara-se. Quantos nostálgicos
europeus ocidentais ainda a procuram? Tomam-na por utopia ou ainda como
realidade? Hoje, a Europa Central é como uma lenda transmitida oralmente (são
quase inexistentes as traduções de autores centro-europeus no resto da Europa,
sobretudo os contemporâneos). Um rumor. Tomar todos aqueles países como iguais,
uniformizados pela cultura soviética ou, agora, pela globalização, é
menosprezar a sua capacidade de resistência e a sua riqueza original. Mas, como
entender ou valorizar o que não se conhece? Como fazer-se valorizar se não se
existe? Milan Kundera fala em permanente e obstinado resgate da identidade por
parte da Europa Central, algo que não ficaria mal também à Europa ocidental.
Talvez assim dela pudéssemos herdar de facto noções como a importância da presença
imanente da cultura e da história e do confronto de cada um com a sua própria
história e a da comunidade à sua volta, na qual ele se integra ou se destaca, decidindo
rejeitá-la. A herança da Europa Central poderá ser a utopia do europeu como
alguém em permanente balanço de si mesmo, das fronteiras com os outros, com os
valores éticos e com a história (a grande História e a história doméstica de
culpas, glórias, arrependimentos ou lamentações). Afinal, como nos quis fazer
saber Claudio Magris, descendo o rio Danúbio qual Ulisses europeu, «a vida,
dizia Kierkgaard, só pode ser compreendida quando se olha para trás, embora
devesse ser vivida olhando para a frente — ou seja, para alguma coisa que não
existe».
LER Outubro 2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)