Ler
o novo livro de poemas de Helberto Helder rasga, dói, ilumina, é um intenso choque
de beleza, originalidade e lucidez. Por isso, Servidões, composto por 10 páginas de prosa autobiográfica e 73
poemas inéditos, deve ser acolhido pelo leitor como uma dádiva rara. É o presente
(para já, reservado: ao todo são só três mil exemplares impressos; os poemas
serão incluídos numa próxima Poesia Toda)
de um poeta que se entregou ao servi ço
intransigente de procura «da medida intrínseca,/
a densa meditação que conduz ao poema puro»; «o poema soberbo acerca do fim da inocência». Aos 82 anos de idade,
conclui: «um pequeno poema bastava para
meter tudo lá dentro,/ e a minha vida como nota,/ rápida, ríspida,/ nas margens».
Então,
que se leiam estas páginas, repletas de metapoesia e de grande poesia, como de
um «livro [que] vai sendo o seu prefácio, e o posfácio, a inacessível e prontamente
acessível evidência». Este é o testemunho de quem, «iminente para sempre», se diz e se lega aos outros nesse ponto de
passagem entre o momento em que nasceu «de
si próprio», dando verbo ao mundo (a infância na Madeira, «mundo espesso e quente, um mundo de imagens
orgânicas») e o momento em que a morte se aproxima (com «técnica atenção») e ele a espera, atónito,
estremecendo, mas sereno, crente de que «só
morremos de nós mesmos».
Cinco
anos após a publicação de A Faca Não
Corta o Fogo, 55 anos após o livro de estreia (Poesia – O Amor em Visita), Herberto Helder diz-nos: «dos trabalhos do mundo corrompida/ que
servidões carrega a minha vida». Uma vida que desejou «subtil, unida e invisível», uma vida «que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua
realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical». A nobreza e
integridade do que lemos nestas páginas está na revelação profundamente confessional
de alguém que viveu de facto e só quer que o lembremos como: «escritor de poemas». De mundano,
apenas uma frase ouvida num transporte público: «as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa». E até nela,
misteriosamente, se reflete a coerência e o sentido da opção pelo abandono do mundo: Herberto Helder
sempre recusou a exibição pública (nada de fotografias, entrevistas e aparições
públicas) ou o circo dos círculos da vida literária («disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos/ e eu
respondi: mando se não colaborar ninguém, porque/ nada se reparte: ou se devora
tudo/ ou não se toca em nada»).
Na
prosa inicial, é referida a «insolvência
biográfica» que, afinal, ali se contraria, o poeta largando sinais de como
terá crescido «no meio do atordoamento
de flores e animais» e de uma espécie de experiência demoníaca da inocência.
Herberto fala desse dentro de si mesmo que sempre quis íntimo e secreto. Mas
depressa sinaliza que todos os poemas estão entregues «ao serviço de uma só inspiração», essa que «dirige profundamente a nossa vida». Neles, a vida real é como uma paisagem transfigurada,
sobre a qual domina o silêncio, só quebrado pela ação do verbo e dos encontros.
Se nesta casa não encontramos o homem, é porque só assim poderemos entrever
nela, entre o dia e a noite, «uma risca
de luz», a poesia: «luz suposta ao
meio, alta, sumptuosa,/ morro da sua risca exacta,/ ou morro da minha vida
nenhuma».
Na
ascese e exigência por que optou, Herberto Helder não se revela um místico, mas
antes um vedor da justeza e iluminação das palavras. Ele é o «devorador», que quis «esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo»,
em poemas «com as costuras das gramáticas
inventadas tortas». O segredo que esta poesia revela é o de uma língua
pessoal, reservada e restrita, que nos é dada clara, mas espessa e sempre lúcida:
«escrevi o poema cada vez mais curto
para chegar mais depressa,/ escrevi-o tão directo que não fosse entendido,/ nem
em baixo,/ nem em cima,/ nem no sítio do umbigo que se liga ao sangue impuro,/
nem no sítio da boca onde se nomeia o sopro,/ e ficou assim:/ económico, íntimo,
anónimo/ ou:/ chaga das unhas cravada na carne irreparável».
Reluzem
(e desmorrem) nestas páginas o sangue, a faca, o osso, o nervo, a mãe, as putas,
o sangue, o sopro, a erudição, a cegueira, a memória, a poalha, a fome e o
corpo a corpo de uma vitalidade poética e nominal, mas toda carnal. Sobre tudo,
a trabalhosa delicadeza da palavra exacta («quero
encontrar uma voz paupérrima»; «o
terror da beleza delicadíssima/ tão súbito e implacável na vida administrativa»).
A dor não é académica («que me devore um
buraco ou fora ou dentro») nesta «vida
aguda, atenta a tudo», dedicada à procura da música «sob a força devastadora» e o silêncio da poesia. Aqui, a calma profunda que se
pressente no poeta é como a nudez de um moribundo, exposta e vítrea, completa.
Herberto
Helder escreve sobre o agora, não se
nega ao desprezo pelos «burrocratas»,
nem às responsabilidades da sua «geração
inteira,/ inclitamente vergonhosa,/ que em testamento vos deixou esta montanha
de merda». Servidões é tecido,
habitado e sustentado por uma profunda liberdade. A liberdade de quem viveu
ciente de que «o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe
corda, dá-se uma volta, meia volta, e já era» e procurou «o nada disso tudo». Hoje, aos 82 anos,
diz-nos: «adeus a quem vê, que eu morro
inteiro para dentro,/ e vejo tudo só de entendê-lo». De Herberto Helder,
ficará o fogo forte e o silêncio.
Servidões
Herberto Helder
Assírio & Alvim
124 págs., 22 euros
SOL/ 07-06-2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)