... parecia correcto fazer um relato tão coeso quanto possível da
estadia dos Dabney na Ilha do Faial que, enquanto existir no planeta alguém que
lá tenha nascido, será sempre olhada como a sua «Meca».
Roxana Lewis Dabney
(1827-1913)
Em 1806, John Bass Dabney, o
patriarca de uma abastada família brahmin
de Boston, instala-se com a família na cidade da Horta, ilha do Faial, como cônsul-geral
dos EUA nos Açores e empresário de excepção. Nos oitenta e seis anos seguintes,
os Dabney serão verdadeiros senhores das ilhas. Prova-o o surpreendente legado
epistolar da família, em parte divulgado na antologia Os Dabney, Uma Família Americana nos Açores, editada pela
Tinta da China em 2010, com apoio da Fundação Luso-Americana (e recentemente traduzida e divulgada nos EUA). Motivo para uma digressão
pela ilha de Mau Tempo no Canal, a
obra-prima de Vitorino Nemésio.
Está uma acinzentada tarde de
domingo, daquelas «em que parece haver fios entre as nuvens e os nervos».
Anuncia-se mau tempo no Canal, alastra esse «eterno capote-e-capelo de nuvens
que o Pico [franze] na garganta». Podíamos estar a vê-lo com Margarida, da
janela do seu quarto, nas «torrinhas», quase umas águas-furtadas da casa grande
da família Clark Dulmo no Pasteleiro. Ou admirá-lo sentados no alpendre de uma
das mansões yankees dos Dabney, a
Bagatelle, a Cedars House ou a Fredónia, todas beneficiando das melhores vistas
da cidade. Hoje, como no início do século XX, tempo da acção do romance de Nemésio
(Mau Tempo no Canal, 1949), ou na época
dos Dabney, os três cônsules norte-americanos (John Bass, o filho Charles
William e o neto Samuel Willis) instalados na ilha do Faial entre 1806 a 1892,
a cidade da Horta permanece «um camarote de frente para aquele palco de todo o
ano». O paradoxo da mesmice sempre diferente da paisagem do Pico e do
caprichoso braço de mar e ninho de nuvens que nos separa dela reforça a sabedoria
de Vitorino Nemésio (1901-1978). As horas, os dias, os meses, os anos passados
na ilha «dão fundura ao tempo». É ali que escavamos a história de uma família
americana nos Açores, a partir das cartas que deixou, procurando-a nas pedras
que restam da sua passagem e seguindo a enunciação do poeta açoriano: «Eu me
construo e ergo, peça a peça de saudade, vagar e reflexão» (poema 13 em Eu, comovido a Oeste, 1940).
Desde 1892, ano da partida dos Dabney
do Faial, de volta a Boston, a sua memória na ilha foi-se desvanecendo, até não
restar na voz das ruas mais do que uma referência romântica, mas sumária, «a
essa família americana que foi importante por aqui no século XIX». O
esquecimento gradual acompanhou a progressiva decadência dos múltiplos imóveis
outrora pertença dos Dabney (um deles, a casa de veraneio do Monte da Guia, em
Porto Pim, será agora recuperado) ou a sua reconversão (caso da Cedars House,
actual residência oficial do presidente da Assembleia Legislativa Regional, e
da Fredónia, cuja fachada sofreu lamentáveis transformações e que agora é uma
creche).
Nos jardins da Bagatelle, a primeira
das três casas-quintas que os Dabney construíram e habitaram na ilha, sabemos
que uma ombú (ou árvore bela-sombra) de grande porte continua a produzir bagas
vermelho-escuras, tendo talvez atingido a sua altura máxima de dezoito metros.
Trata-se de um exemplo das muitas espécies agrícolas, hortícolas, frutícolas,
ornamentais e exóticas introduzidas pela família
no Faial, como as hortênsias, os dragoeiros ou as imponentes araucárias que
descobrimos espalhadas pela Horta, já classificadas e protegidas pela Secretaria
de Estado do Ambiente. A Bagatelle é hoje uma propriedade privada votada ao
abandono. Ervas daninhas e mato cerrado espreitam já do portão à Rua de São
Paulo. Só com muita imaginação recriamos ali a presença de D. Pedro (I do
Brasil e IV de Portugal), em Março de 1832 e plena luta entre liberais e
miguelistas, uma das várias convulsões políticas que os cônsules Dabney mediaram
no Faial com diplomacia, como o afundamento do brigue norte-americano General
Armstrong, em 1814. Naquele jardim frondoso e na mansão construída por
carpinteiros americanos, o rei-imperador, acompanhado pelo seu estado-maior,
passeou, jantou e dançou até «invulgarmente tarde», às duas da manhã.
«Certamente que ficaríeis
divertidos por ver o espírito com que o imperador dança o galope.» O relato,
escrito por Emmie, filha de John Bass, inclui-se nos cerca de dez mil items do
espólio epistolar da família relativo à sua permanência no Faial, organizado e
coligido a partir de 1880 por Roxana Lewis Dabney (1827-1913, neta de John
Bass), a pedido das suas sobrinhas. Como resultado do trabalho de Roxana, a
intelectual do clã Dabney (por sugestão de Manuel de Arriaga, traduziu para o
inglês Os Fidalgos da Casa Mourisca),
imprimir-se-ia em Boston, em 1899, Annals
of the Dabney Family in Fayal, uma extensa edição com 83 capítulos,
destinada à leitura exclusiva pela família. Entre 2004 a 2006, a compilação foi
traduzida para português e impressa na íntegra (três volumes, mais de mil e
setecentas páginas), com prefácio do historiador Ricardo Madruga da Costa e edição
pelo Instituto Açoriano de Cultura. A antologia de 541 páginas agora publicada
pela Tinta da China, com apoio da FLAD, significa a sua difusão alargada, possível
graças à selecção de excertos do original pelo investigador Paulo Silveira e
Sousa, numa edição coordenada e prefaciada pela historiadora Maria Filomena Mónica.
A sucessão cronológica de cartas
familiares e de negócios, excertos de diários e correspondência oficial inicia-se
nos finais do século XVIII, com referências à ascendência, infância e período
de aprendizagem de John Bass como mercador, sua estadia temporária em França e
primeira viagem à ilha do Faial, em 1804. Termina em 1871, ano da morte de Charles
William, ficando por cumprir a pretensão de Roxana de compilar os documentos
relativos aos 21 anos seguintes de consulado e actividade comercial do seu irmão
Samuel, até ao regresso da família à América.
A colectânea comentada com
detalhe por Roxana tinha por objectivo dignificar a memória familiar, e,
sobretudo, a figura de Charles William, o mais aberto e cativante dos Dabney,
intitulado «pai do pobres» pelos ilhéus. A narração, simples, eficaz, sem voos
de elegância ou estilo, corresponde à epistolografia corrente da época. Tal
como destaca Paulo Silveira e Sousa, a maior virtude destas «cartas escritas à
pressa para embarcarem no próximo navio e serem lidas por uma família inteira» é
a autenticidade. Juntas, dão-nos retalhos de observação panorâmica e de
pormenor da paisagem natural e humana açoriana, reminiscências pessoais da vida
doméstica, considerações várias sobre negócios e política. A Horta fixada como
porto mais importante na esfera atlântica, um anfiteatro aberto à vista do
mundo para lá da ilha do Pico por uma família cosmopolita e culta
Os Dabney primeiros colonos de
Boston descendiam dos huguenotes franceses D'Aubigné e de um avô da famosa
Madame de Maintenon, segunda esposa de Luís XIV, o Rei Sol. Cedo bem sucedidos
como comerciantes, converteram-se primeiro ao Congregacionismo, depois ao
Unitarismo progressista e abolicionista. John Bass, que nunca aprendeu a falar
bem português, era conhecido pela sua austeridade. Em 1820, escrevia ao filho
Charles William, que viria a ser bem mais tolerante e integrado nos meios
sociais da ilha: «Trabalho, Método, Decisão e Perseverança são a minha divisa.
[…] a estrita regularidade no levantar, nas refeições e até nas distrações fez
da minha casa um pequeno paraíso.»
Imaginemos, pois, os Dabney a
levantarem-se todos às cinco da manhã, depois juntos para os primeiros exercícios
de ginástica no jardim, antes de rumarem ao pequeno-almoço, marcado para as
oito. Depois do jantar, às duas horas,
bilhar e mais exercícios físicos. À tarde, o chá, a ceia às nove, seguida de serão
de música, canto, leitura e bordados, quando não havia baile em casa ou a
convite de uma das famílias ilustres de morgados faialenses. Foram os Dabney
quem incentivou as práticas desportivas na ilha, eles que eram amantes do ténis,
da equitação, do mergulho e da vela, das burricadas e caminhadas pela natureza,
a esquadrinhar todo o Faial e o Pico. Vemo-los assim nas fotografias do
excelente álbum Família Dabney 1804-1892,
Memória de um Legado, de João A. Gomes Vieira (edição Intermezzo, distribuição
Medialand). São imagens naturalistas recolhidas no final do século XIX pelos
amadores Rose e Raoul Dabney, hoje na posse do New Bedford Whale Museum, que
gentilmente permitiu a sua reprodução nestas páginas. Rijos, desportistas, enérgicos,
metódicos e frugais, os Dabney apenas viriam a sofrer de reumatismo, um mal
corrente na ilha. Aparentemente, não os atingirá o mal da alma coberta pelo
capote ilhéu de isolamento, melancolia e fatalismo. Aos 40 anos, regressada de
uma viagem aos EUA, Roxana escreve: «A vida aqui deve provir de dentro e estou
decidida a que venha.»
Pressentimos o ambiente social de
hoje na cidade da Horta, numa semana em que, na Sociedade Amor da Pátria (fundada
como loja maçónica em 1859, hoje instalada num belíssimo edifício do arquitecto
Norte Júnior), alguns membros ensaiam a quadrilha para as comemorações do 150º
aniversário. É domingo, já se disse, nublado, e as ruas estão quase vazias. No
Peter Café Sport, dois iatistas ingleses enaltecem o prazer de parar ali, na
Horta, para o famoso gin tónico a meio do Atlântico. Conhecem pouco da ilha,
dizem, mas o porto, ah, parar neste porto vale sempre a pena. Como eles, são
milhares os estrangeiros que, por ano, passam por aqui, trazidos pelas
actividades naúticas ou pelas rotas turísticas.
Recordemos, entretanto,
Margarida, que deixámos à janela, no Pasteleiro. Não seria muito diferente da
do tempo dos Dabney a rigidez da estrutura estratificada da sociedade faialense
do início do século XX como a retratou Nemésio. Num fragmento do diário, a 18
de Março de 1937, o escritor anota, sobre a criação do seu «romance ilhéu»: «Bem bom já haver em mim uma 'atmosfera', um não sei
quê de nebulosamente poético em que vive a heroína e a substância da intriga;
uma espécie de lodo quente por detrás da vontade humana.» Na base da inspiração,
a figura e o desejo de vingança de Januário Cardoso, pequeno burguês, pai de João
Garcia, cuja paixão por Margarida será rejeitada pelos aristocratas, mas
arruinados, Clark Dulmo. Nas ilhas, a origem, a
linhagem social marca o compasso das relações quotidianas dos autóctones. John
Bass expressou-o logo em 1804, em nota a um amigo: «Não há povo à face da terra
que seja mais obstinado nas distinções familiares.»
Anote-se que, em 1864, a Horta tem
8549 habitantes, em 1884, supera os 24000, em 2001, tem cerca de 6400. Mas, já em
1823, Nancy Dabney (filha de John Bass) descreve em carta ao seu irmão John: «Os
estrangeiros têm afluído ao Faial de todos os quadrantes, e dificilmente
saberias onde estás se cá viesses. […] Há pouco tempo, quando a maior parte dos
nossos visitantes estava no Pico, numa sexta-feira à noite, cerca de 20
cavalheiros estavam reunidos na nossa sala de estar e alguém reparou que nenhuma
das pessoas presentes era desta ilha.» Portanto, distinga-se entre eles, os
Dabney, estrangeiros, e os outros, os portugueses faialenses. Não é sem
preconceitos que olham a sociedade em volta (no prefácio, Maria Filomena Mónica
dá conta de outros olhares estrangeiros, entre eles o de Mark Twain). Durante
quase um século, os Dabney nascerão e morrerão no Faial (contam-se 14 campas
com o seu nome no topo do cemitério da Horta, entre elas a de John Bass). Só um
deles, Nancy, precisamente, casará com um português e local, José Maria de
Avelar Brotero, contrariando a vontade da família, que privilegia os laços, por
exemplo, com os Hickling, diplomatas em São Miguel.
Entretanto, os Dabney dominam o
comércio na ilha. Entre 1809 e 1810, por exemplo, no porto seguro da Horta
atracam 160 embarcações americanas, «em geral grandes navios com carregamentos
valiosos» com destino a Inglaterra, três quartos dos quais, nota John Bass, lhe
eram consignados. A riqueza dos Dabney aumenta com a exportação de laranjas, limões,
vinho e aguardente do Pico, depois com o negócio da caça à baleia, o enorme
movimento no seu estaleiro naval, a indústria de moagem e a expansão da
actividade como importadores. O eldorado esmorece a partir de 1842, com a praga
das cochonilhas nos pomares, depois o oídio, o míldio e a phyloxera nas
videiras, e quase termina em 1875, com a proibição pela administração
norte-americana de qualquer actividade comercial pelo corpo consular. Das bay windows da Cedar's House, em 1876, os
Dabney observam a chegada das madeiras para a construção do molhe do porto da
Horta, o primeiro negócio em que terão de chegar a acordo com a família Bensaúde,
depois imparável na competição pelo monopólio comercial.
Os Dabney, ensinados em casa
antes de seguirem para Harvard, reclamam em todas as gerações da inexistência
ou das instituições de ensino na ilha. Darão um contributo inquestionável para
a criação de diversas estruturas públicas na Horta, serão beneméritos, sim,
deixando uma memória de agradecimento das gentes pobres, por exemplo, pela
ajuda alimentar em 1847, aquando da grande fome (na letra da marcha da Semana
do Mar deste ano, referem-nos como «família mais valia, a luz do dia para um
povo empobrecido»). São cosmopolitas, claro, viajam com frequência pela Europa
e até aos EUA, foram educados para receber gente influente nos seus escritórios,
jardins e salões, confortáveis e requintados como qualquer mansão da altura em
Paris ou em Boston. Roxana garante que os Dabney têm grande «propensão para rir».
Isso deve-se, em parte, aos «personagens tão estranhos» que por vezes recebem
ou hospedam em casa ou no seu Hotel Fayal: «como, por exemplo, um sueco ou
norueguês (capitão de um navio, presumo) que subitamente se pôs de pé e,
inclinando-se por cima da mesa, espetou um garfo num inhame e, levantando-o no
ar, disse: 'Como se chama isto?'»
O século XIX no Faial ficou
conhecido como «o século Dabney»; o que as antigas e mais influentes famílias
faialenses devem considerar um exagero; bem vistas as coisas, houve outros a
fazerem também pela riqueza e progresso da ilha. É inquestionável, contudo, o
muito que os Dabney deixaram por ali, influência cultural e incentivo ao
progresso. Aqueles foram, assegurou Roxana, e descobrimo-lo nas cartas que
salvou do esquecimento, «tempos semipatriarcais, tão cheios de romantismo e
vivacidade». Será difícil avaliar o que os Dabney levaram de português para
Boston, quando os vários ramos da família se reencontraram com a história da América.
Na bagagem, sabemo-lo, seguia uma caixa de prata mandada fazer por Charles
William para guardar uma velha e rara edição de Os Lusíadas, antes comprada num alfarrabista de Boston. Um pedaço
de uma história marítima de grandeza, transportado com certeza também em memória
da glória particular de uma família americana nos Açores. À partida da Horta,
como neste domingo de nuvens, talvez os Dabney tenham sentido, como Nemésio o
descreveu, que «o vento soprou com este levantamento que enche os minutos
perdidos». Já não voltariam a ver o Pico, de um camarote na ilha.
LER / Dez 2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)