Agora povo agora pulso / agora pão agora
poema. A estrofe é do poeta cabo-verdiano Corsino Fortes (em Do ónus de ser ao ónus de crescer ilha,
da antologia Pão & Fonema) e
coloca por ordem as prioridades na vida do Homem: paz, pão e poema. Ou, como
escreveu Natália Correia: «Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer.»
Foi deste último verso que nasceu o título da antologia de poesia lusófona, com
conceito original e coordenação geral de Ana Vidal, que venceu o Best Food
Literature Book dos Gourmand Book Award 2007 e o prémio de Melhor Livro de
Literatura Gastronómica 2008, pela Academia Portuguesa de Gastronomia. Nessa
altura, A Poesia é para Comer: Iguarias para o Corpo e para o Espírito era
ainda um livro com capa a preto e branco, o esboço do álbum agora disponível na
loja da editora Babel, em Lisboa, com boas perspetivas de distribuição alargada
em Portugal, tal como já acontece no Brasil. São 250 páginas de feliz
correspondência e fusão entre poemas, criações gastronómicas e obras plásticas,
assinados todos por diversos criadores de todo o espaço lusófono. Tal como cada
fonema diferencia o significado das palavras, também aqui cada sensação provocada
no leitor confere unidade particular ao conjunto: uma festa de celebração dos
prazeres subjetivos da poesia, da comida e da expressão plástica, no espaço
fraterno da comunidade da língua portuguesa.
Ana
Vidal, guionista, letrista, com poesia, contos e prosa poética publicada, tem
um longo currículo de atividade ligada à comunicação, em jornalismo, copywriting, assessoria de imprensa e
escrita criativa. Daí resulta a proposta muito bem conseguida de união de
linguagens em A Poesia é para Comer, decorrente
da escolha prévia, por parte da coordenadora, dos poemas (cada um com pelo
menos uma referência gastronómica), dos chefs
convidados (com apoio, em Portugal, da consultoria do chefe José Avillez, e, no
Brasil, da curadoria da crítica gastronómica Luciana Frões) e das reproduções
de obras plásticas incluídas. Assim se degustam poemas de autores tão díspares
como Bocage, Ruy Belo, Clarice Lispector, Ondjaki, Adélia Prado, Fernando
Pessoa, Ferreira Gullar, Cesariny, Gil Vicente ou Vinicius de Moraes e criações
ou sugestões dos melhores chefs e gourmets dos dois lados do Atlântico, pontuadas
por obras de Cândido Portinari, Josefa de Óbidos, Vik Muniz, Fernando Calhau,
Emmanuel Nassar, Joana Vasconcelos ou Alfredo Volpi, entre muitos outros.
No pátio
da sua casa em Sintra, numa conversa regada a café e chá de gengibre, Ana Vidal
insiste em que «a cozinha é uma forma de alquimia». Fala do afecto pela «poesia,
comida estranha» (Carlos Drummond de Andrade) e de como, no seu livro, cada
poema deu origem a uma receita, com a palavra como elemento de ligação entre os
dois. A refeição completa estende-se por seis capítulos: Prelúdios Inspirados
(entradas), Boas Companhias (acompanhamentos), Prazeres da Carne, Presentes do
Mar, Finais Felizes (sobremesas) e Néctares dos Deuses (bebidas e licores). No
prefácio, o poeta Nuno Júdice apela a «saborear a língua» e a poetisa
brasileira Astrid Cabral elogia «uma saudável aliança entre iguarias que
costumam comparecer isoladas, como se pertencessem a mundos incomunicáveis […]
o alimento concreto e o abstrato, dispostos lado a lado em receitas e poemas». A Poesia É para Comer é, pois, um
desfile de luxo de 100 receitas poéticas
para a fome de coisas boas na mesa e no espírito.
Quais foram as suas primeiras memórias
afectivas da poesia e da cozinha?
O
meu pai, Paulo Vidal, veterinário, gourmet,
era também um poeta e um letrista [autor do Fado
do Cavalo Russo]. A poesia veio-me pela mão dele. Entre as poesias que ele
costumava dizer para mim e para os meus irmãos, lá estava a Nau Catrineta, muito ligada à nossa
história épica. Na nossa casa, havia o culto da cozinha e, dos pratos com dias
certos na semana que espreitávamos no tacho, lembro-me muito dos cozidos à portuguesa
dos sábados e da língua de fricassé dos domingos. E lembro-me dos pastéis de
massa tenra da minha mãe, aos quais um tio meu chamava «pastéis de nada com
recheio de coisa nenhuma». [risos]
Os laços das pessoas com a comida, tal como
com a poesia, são afectivos e muito subjetivos. O que é que unifica os vários
sabores que este livro propõe?
O
denominador comum são as emoções e as memórias olfactivas, visuais e de estados
de espírito que podem ser despertadas no leitor. É a sensorialidade das três
artes envolvidas, sendo que eu pretendia, precisamente, dar à gastronomia o
estatuto de arte maior. Agostinho da Silva diz: A quem faz pão ou poema / só se muda o jeito à mão / e não o tema. Se
a poesia é mais subtil, a gastronomia é uma forma de comunicação universal e
muito direta, que provoca reações imediatas e intensas. A comida é uma muito
forte forma de influência.
Este livro acabou por só ser possível graças
a apoios angariados no Brasil...
Depois
da primeira edição, modesta, em 2007, esta edição de luxo foi viabilizada, sim,
pela muito eficaz lei do mecenato brasileira e por uma equipa, à exceção de
mim, inteiramente brasileira. Por isso aumentei a proporção de poetas
brasileiros incluídos.
Qual era o seu principal objetivo?
Antes
de mais, através da gastronomia, que está muito na moda, trazer novos leitores
para a poesia, muitas vezes envolta numa aura de inacessibilidade. E proporcionar
também o contrário: levar as pessoas que vivem enfurnadas nos seus olimpos
literários até ao universo da cozinha.
Como é que foi a adesão dos vários criadores
convidados a participar?
Só
tive três nãos: os do artista plástico Pedro Cabrita Reis, do chefe Vítor
Sobral e de um novo poeta português, quase desconhecido [o livro inclui vários
criadores mais ou menos desconhecidos, nele integrados com a mesma visibilidade
do que os consagrados]. De resto, a adesão foi entusiástica.
Para os chefs
a quem propôs que criassem receitas a partir dos poemas selecionados, este deve
ter sido um desafio insólito...
Tudo
começou e partiu dos poemas. Creio que todos se sentiram lisonjeados com a
proposta. E houve um grande empenho, já que todos eles têm muito pouco tempo
disponível, também porque são, hoje em dia, considerados e tratados como
estrelas. E, na verdade, a generalidade deles são muito mais do que cozinheiros. São pessoas muito completas,
como por exemplo, o Nuno Dinis [atual chef
executivo da York House, em Lisboa], que também pinta, compõe e escreve.
Mas existe, de facto, essa lógica de
estrelato...
...
e que há de passar...
Sim, talvez, mas que é hoje uma realidade que
pode até ofuscar a capacidade de avaliação dos novos chefs e da nova cozinha que criam. Este livro permite, aliás,
avaliar a capacidade de resposta de cada um.
Há
muito embuste na cozinha hoje em dia, mas também existe muito talento. Este
livro propôs um teste de criatividade aos chefs
convidados e, portanto, apelava a essas construções e desconstruções do que era
tradicional. Ao mesmo tempo, tanto com a indisciplina como com o excesso de
criatividade de alguns deles, houve que chegar a consensos, na difícil
engenharia que foi toda a conjugação e equilíbrio do livro. Mas esta foi, de
facto, uma prova dos nove. Acho que todos passaram na qualidade técnica dos
pratos. Na resposta ao desafio, variaram muito. E daí também se vê a qualidade,
a maturidade e o grau de cultura que têm para além do exercício da cozinha.
O leitor pode fazer essa prova, executando estas
receitas?
Pode,
embora algumas sejam complicadas, também porque parte delas são já receitas
consagradas do chef em questão [é o
caso de José Avillez, que contribui com estrelas da sua ementa, como A horta da galinha dos ovos de ouro ou Cascais à beira-mar]. Há sensibilidades
muito distintas, o que tornou o processo muito divertido.
Como é que avalia hoje a cozinha
portuguesa, cujo consumo se reabilitou neste momento de crise?
Como
a cozinha mediterrânica está nos tops,
puxámos pelos nossos galões e estamos a voltar aos valores tradicionais, como o
uso do azeite. Hoje, come-se muito bem e muito mal em Portugal.
Onde?
Muito
boa cozinha tradicional, numa infinidade de restaurantes baratos e de tascas,
pelo país fora. Muito boa cozinha inovadora, nos restaurantes de cozinha de
autor. Estamos muito bem em termos de cozinha tradicional, embora tenha de existir
cuidados para não se servir como tal uma coisa que já nada mesmo tem que ver
com ela. Outro dia, serviram-me, por exemplo, bacalhau com queijo da serra, uma
brutalidade calórica e gastronómica... Acho que não vale tudo como inovação.
Reclama quando não gosta?
Quando
está mal feito, reclamo e mando para trás...
... o que não é hábito muito português.
Pois
não. Pior: o português come tudo e depois reclama no fim... [risos] e perde a
autoridade. Acho que deve haver uma crítica construtiva à comida, onde quer que
ela seja servida, mesmo que seja por um guru da cozinha, cuja autoridade hoje
dificilmente é contestada. Falta-nos mais e melhor crítica do consumidor e
profissional.
Na verdade, pode-se passar sem a
poesia, mas não se pode passar sem comer. A cozinha, como a poesia ou as artes
plásticas, permite, a quem faz e a quem saboreia, um voo da imaginação e da memória.
Conjugá-las neste livro foi, em muitos casos, estabelecer uma rede de
cumplicidades e encontrar várias sintonias de emoções. Revista EPICUR /2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)