É
sabido que, para compor a Dublin do emblemático 16 de Junho de 1904 de Ulisses, James Joyce (1882-1941) se
muniu da edição desse ano do Thom’s
Directory, diretório de todos os imóveis residenciais e comerciais da
cidade e respetivos proprietários. Em 1922, quando publica esta que é a sua obra-prima
(a par do mais audaz desafio modernista, Finnegans
Wake, de 1939), o escritor tem 40 anos e defende que, se algum dia a sua
cidade natal for destruída, poderão reconstruí-la tijolo a tijolo a partir do
seu romance. Contudo, a habitar as ruas, casas e pubs, o leitor encontrará
sempre o linguajar dos dublinenses, a verdadeira fonte do paradoxo joyceano de
simplicidade e complexidade, exterioridade e interioridade. Como o escritor
explicou a Djuna Barnes: «Eles estão
todos aqui, os grandes faladores, eles e as coisas que eles esqueceram».
Ulisses, traduzido no Brasil por Antônio
Houaiss em 1966 e, a partir deste, em Portugal, por João Palma-Ferreira (em
1989), terá, em breve, uma nova tradução portuguesa,
assinada por Jorge Vaz de Carvalho. Antes, para entender
a composição joyceana de obsessiva atenção aos detalhes exteriores e à vida
interior das personagens, há que ler as primeiras obras. Para tal, a editora
Relógio D’Água presta louvável serviço, naquela que é já a mais importante
iniciativa editorial de 2012. Em Janeiro (de 2012), com tradução de Paulo Faria, saiu o
semiautobiográfico Retrato do Artista
quando Jovem, romance de formação, editado em 1916, e onde nasce Stephen
Dedalus, o alter ego do autor, também
presente em Ulisses. Em Fevereiro do mesmo ano,
com tradução e prefácio de João Almeida Flor, surgiu a edição bilingue de Música de Câmara, o livro da estreia em
1907, coligindo 36 curtos poemas-baladas de amor, numa antologia batizada,
segundo o autor, a partir do som da urina a cair num penico (chamber pot). Chega agora (Junho de 2012) às
livrarias, com tradução de Margarida Periquito, Dublinenses, 15 contos de retrato
naturalista das gentes de classe média e baixa de Dublin, trabalhado como «um espelho bem polido», na sua «escrupulosa vulgaridade», e publicado
em 1914.
Desde
os 19 anos que Joyce procura «arrancar o
segredo da vida» e cunhar para si mesmo um «imponente poder impessoal», como aquele que, em carta, elogia a
Henri Ibsen. Mas, só aos 32 consegue editar Dublinenses, durante oito anos recusado por 15 editores devido à
audácia das referências nacionalistas, sexuais e morais. A ler como um painel
mimético da diversidade com que a vida, a corrupção, a paralisia e a morte se
exprimem no dia-a-dia da cidade, Dublinenses
é a obra mais acessível de Joyce. Nela, assiste-se ao seu treino de todos os
sentidos ao serviço do ponto de vista de cada personagem, uma fala iluminada num caminho da infância para a
adolescência e a maturidade, em episódios decisivos de vida pública ou interna
ou da história moral de um país.
Dublinenses, James
Joyce, Relógio
d’Água, 192
págs., 14 euros.
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)