O espanhol Javier Marías é um dos atuais génios da digressão
em prosa.
O
amor será constante para lá da morte. Disse-o, no século XVI, o poeta Francisco
de Quevedo num belíssimo soneto de amor, assim rematado: «pó se tornarão, mas pó enamorado». Em 2011, Javier Marías, brilhante
tradutor, o melhor ficcionista espanhol da atualidade, publica Os Enamoramentos, romance recém-traduzido
pelo poeta Pedro Tamen. E aqueles versos de Quevedo, escritos quando o
enamoramento era ainda invenção de soneto, podiam ser a epígrafe para esta história
que, como todas as de Marías, trata de um engano e de uma revelação. Desde Dumas
e Balzac, ou com o romance moderno, o enamoramento funde desejo e morte, dor e
esquecimento, justiça e impunidade. Superando o amor, ele é o estado mais incondicional
e, por isso, o mais irracional e poderoso. Javier Marías demonstra-o nesta obra
que lhe deu o Prémio Literário Europeu e o Prémio Nacional de Narrativa — atribuído pelo Ministério da Educação,
Cultura e Desporto espanhol e rejeitado pelo escritor, que insiste em «recusar qualquer remuneração que proceda
do erário público».
Maria
Dolz trabalha numa editora madrilena e chega atrasada todas as manhãs porque se
distrai a observar à distância um «casal
perfeito» que se senta no mesmo café. Após a morte do empresário Miguel
Desverne, apunhalado por um arrumador de carros, Maria aproxima-se da sua
mulher, Luísa, e conhece Javier Díaz-Varela, o melhor amigo do falecido, por
quem se apaixona. O resto da história? É menos inspirado do que o habitual, mas
isso pouco importa quando em Marías, sempre, os restos da ação são o miolo do
livro, iluminado por uma brilhante gestão da irregularidade, da quebra da frase
(o chamado anacoluto), esparramando-se em períodos amplos e envolventes, distensões,
remoinhos e contrações, digressões tão alongadas quanto certeiras. Maria é a
narradora que sustenta este caudal e, através dela, Marías mostra mais uma vez que
conhece a verdadeira respiração, o coração da prosa, tão bem como o coração dos
homens.
PS: A fotografia da capa, também aqui reproduzida, é de Elliott Erwitt.
Os Enamoramentos, Javier Marías, Alfaguara, 375 págs., 19.90 euros.
SOL/11-01-2013
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)
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