Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

Chad Harbach | A beleza do erro


Em 2011, Chad Harbach, um anónimo, coeditor e cofundador de uma pequena revista literária (n-1), formado em Harvard, mas desempregado, vê os direitos do seu romance de estreia, A Arte de Viver à Defesa, negociados numa das disputas editoriais mais aguerridas das últimas décadas, e adquiridos pela Little, Brown por 665 mil dólares. A Arte de Viver à Defesa (Civilização), trabalhado durante onze anos, é um romance ímpar sobre amizade, traição, complexos sociais de vária ordem e uma equipa universitária de basebol. O protagonista é Henry Schrimshander, um virtuoso jovem jogador que, um dia, comete um erro fatal. Uma metáfora poderosa sobre o que, no desporto, como na arte ou na vida, significa errar ou vencer.

Logo que saiu, A Arte de Viver à Defesa foi aclamado como um romance, ao mesmo tempo, tradicional e contemporâneo. Via-o assim quando o terminou?
Enquanto trabalhei no livro, não o reli muitas vezes. Acabei-o quando achei que estava pronto. Estava sem dinheiro, os amigos é que me pagavam a renda... Isso deu-me um impulso extra.

Acreditava que tinha escrito algo novo?
Pergunta difícil... Na altura, apresentava o meu romance de uma forma bastante modesta: quase como uma mera comédia de costumes. Depois de os direitos terem sido vendidos, passei cinco meses a editá-lo. Aí, sim, acreditei que este era o livro que eu imaginara desde o início: uma conjugação entre algo tradicional, próximo do romance de costumes do século XIX, e um cenário contemporâneo. Eu queria capturar a minha própria noção do mundo atual.

Imagino que lhe interessava uma espécie de verdade em relação às suas origens, na pequena cidade de Racine, no Wisconsin. De que forma é que o basebol resume uma certa forma de vida americana, transversal a todos os estados e estratos?
Os americanos são obcecados por todas as práticas desportivas, profissionais ou amadoras. O desporto, como verdadeira devoção, define a nossa identidade e a nossa cultura de um modo quase perturbador, o que torna estranho que existam tão poucos romances escritos sobre o tema [destaca Infinite Jest, de David Foster Wallace, e End Zone, de DeLillo]. Interessava-me contar o que acontece com Henry, um atleta, em analogia com o que me poderia acontecer a mim, um escritor, ou a qualquer outra pessoa de outra profissão: falar das aspirações, dos obstáculos externos, das autolimitações e das autoimposições.

Henry é um defesa médio que sofrerá do síndroma de Steve Blass [talentoso jogador de basebol que, em 1972, perdeu o controlo sobre os seus lances]. Neste sentido, o centro do romance é a interiorização extrema do medo de falhar.
A posição de defesa médio é, muitas vezes, a mais central, atlética e artística na defesa em campo. A minha primeira ideia era escrever sobre o síndroma de Steve Blass; sobre alguém que, no pico das suas aptidão e excelência, as perde, inexplicável e permanentemente, ocorrendo uma crise pessoal muitíssimo profunda, também à vista do público. De algum modo, Henry teme o sucesso em crescendo que se anuncia na sua vida — receia não o merecer ou não estar apto psicologicamente para o enfrentar —, tanto quanto teme o fracasso.

No campo de basebol, os erros são ampliados. E, no romance, alguém diz: «O basebol é uma arte, mas, para se ser bom, é preciso ser-se uma máquina.»
Um atleta erra em direto, na hora, sem margem para correções. O público adora o desporto enquanto espetáculo, pela beleza estética que, às vezes, ali emerge, pela graça e leveza dos atletas e das suas atuações. Mas, para vencer, um atleta precisa de algo diferente; precisa de perfeccionismo técnico e de dedicar toda a sua vida a esta busca de eficiência.

E não é isso, também, o que a América, idealizada como meritocracia, pede a alguém que queira vencer?
Em teoria, sim, isso ainda é verdade. Mas também é verdade que nós empolamos muito essa noção, ao mesmo tempo que menosprezamos a consciência dos obstáculos. Sobrevalorizamos os casos de sucesso...

Como o seu, aliás, anunciado como o do graduado por Harvard, desempregado, que vendeu um primeiro livro por milhares de dólares...
Sim, eu sou exemplo do que acontece a uma pessoa num milhão... Mas há 99,999 por cento de escritores a quem isso não acontece. O destaque é sempre dado a quem consegue, e, na verdade, trata-se de um embuste. Vivemos como que num sistema de lotaria que ignora as pessoas comuns.

Na literatura, ganhar a lotaria seria escrever a tal great american novel, certo?
(risos)
Essa noção é totalmente europeia. Nunca me perguntariam tal coisa nos EUA. É uma falsa questão.

Não, não é. Você, como Franzen, colocam-se numa linha de autores contemporâneos que, apelando à grande literatura do século XIX (inglesa e dickensiana, no caso de Franzen; no seu caso, a Herman Melville, que tutela todo o romance), querem compor painéis sociais muito ambiciosos, uma espécie de romances-metáfora da América atual.
(longo silêncio)
Acho que cada geração tem uma versão disso; dos longos romances de Edith Warthon ou de William Faulkner até à saga Coelho de John Updike. Mas, enquanto escrevia, a minha maior ambição era gerir quatro personagens diferentes e as respectivas histórias e psicologias, num enredo muito complexo. Se no romance existe um painel social, ele provém de uma acumulação de detalhes e da atenção muito concentrada num período de tempo e num espaço confinados. Esse é o meu temperamento como escritor. Talvez desemboque na mesma busca de entendimento das questões sociais de um romance programaticamente concebido como um grande panorama. Todavia, o ponto de partida é diferente: do absolutamente particular para o geral.

Inspirado em Tchékhov?
Tchékhov é um pólo literário. Muitos dos meus outros autores preferidos (Melville, Faulkner ou Wallace) trabalham num polo oposto; compõem quadros vastos, numa prosa verborreica, musical, muito arejada, numa espécie de estilo máximo. O que mais gosto neles é o facto de serem muito diferentes de mim e de, por isso, me desafiarem. Tchékhov é-me mais próximo.

Na compaixão pelas personagens?
Absolutamente. Ele é o mestre na compaixão pelas personagens, mas também numa composição completíssima de cada uma delas. Mesmo sendo compassivo ou trabalhando-as com humor, ele mostra-nos sempre as falhas, os lados negros, até a idiotia das personagens; todos os lados do prisma que elas são. E fá-lo num estilo conciso e perfeito, admiravelmente natural, tão simples como beber um copo de água.

É para atingir também um estilo espontâneo que escreve sempre à mão?
No início, tentei o computador, mas não resultou. A passagem das ideias para o ecrã era demasiado rápida e, depois, obrigava-me a um enorme trabalho de revisão. O texto era quase uma performance, em constante mutação. Escrever à mão obriga a uma maior reflexão e concentração prévias e, paradoxalmente, resulta num ritmo mais natural e num texto mais autêntico. Dá-nos acesso a uma dimensão subterrânea, mais inconsciente e, por isso, mais surpreendente, da escrita.

Acesso ao talento?
Sim, o talento talvez seja isso: descobrirmos em nós ideias que jamais imaginávamos possuir.

LER / Novembro 2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)