Em
2011, Chad Harbach, um anónimo, coeditor e cofundador de uma pequena revista
literária (n-1), formado em Harvard,
mas desempregado, vê os direitos do seu romance de estreia, A Arte de Viver à Defesa, negociados numa
das disputas editoriais mais aguerridas das últimas décadas, e adquiridos pela
Little, Brown por 665 mil dólares. A Arte
de Viver à Defesa (Civilização), trabalhado durante onze anos, é um romance
ímpar sobre amizade, traição, complexos sociais de vária ordem e uma equipa
universitária de basebol. O protagonista é Henry Schrimshander, um virtuoso
jovem jogador que, um dia, comete um erro fatal. Uma metáfora poderosa sobre o
que, no desporto, como na arte ou na vida, significa errar ou vencer.
Logo que saiu, A Arte de Viver à Defesa foi aclamado como um romance, ao mesmo
tempo, tradicional e contemporâneo. Via-o assim quando o terminou?
Enquanto
trabalhei no livro, não o reli muitas vezes. Acabei-o quando achei que estava
pronto. Estava sem dinheiro, os amigos é que me pagavam a renda... Isso deu-me
um impulso extra.
Acreditava que tinha escrito algo novo?
Pergunta
difícil... Na altura, apresentava o meu romance de uma forma bastante modesta: quase
como uma mera comédia de costumes. Depois de os direitos terem sido vendidos,
passei cinco meses a editá-lo. Aí, sim, acreditei que este era o livro que eu
imaginara desde o início: uma conjugação entre algo tradicional, próximo do
romance de costumes do século XIX, e um cenário contemporâneo. Eu queria
capturar a minha própria noção do mundo atual.
Imagino que lhe interessava uma espécie de
verdade em relação às suas origens, na pequena cidade de Racine, no Wisconsin. De
que forma é que o basebol resume uma certa forma de vida americana, transversal
a todos os estados e estratos?
Os
americanos são obcecados por todas as práticas desportivas, profissionais ou
amadoras. O desporto, como verdadeira devoção, define a nossa identidade e a
nossa cultura de um modo quase perturbador, o que torna estranho que existam tão
poucos romances escritos sobre o tema [destaca Infinite Jest, de David Foster Wallace, e End Zone, de DeLillo]. Interessava-me contar o que acontece com
Henry, um atleta, em analogia com o que me poderia acontecer a mim, um
escritor, ou a qualquer outra pessoa de outra profissão: falar das aspirações,
dos obstáculos externos, das autolimitações e das autoimposições.
Henry é um defesa médio que sofrerá do síndroma
de Steve Blass [talentoso jogador de basebol que, em 1972, perdeu o controlo
sobre os seus lances]. Neste sentido, o centro do romance é a interiorização
extrema do medo de falhar.
A
posição de defesa médio é, muitas vezes, a mais central, atlética e artística
na defesa em campo. A minha primeira ideia era escrever sobre o síndroma de
Steve Blass; sobre alguém que, no pico das suas aptidão e excelência, as perde,
inexplicável e permanentemente, ocorrendo uma crise pessoal muitíssimo
profunda, também à vista do público. De algum modo, Henry teme o sucesso em
crescendo que se anuncia na sua vida — receia não o merecer ou não estar apto
psicologicamente para o enfrentar —, tanto quanto teme o fracasso.
No campo de basebol, os erros são ampliados.
E, no romance, alguém diz: «O basebol é uma arte, mas, para se ser bom, é
preciso ser-se uma máquina.»
Um
atleta erra em direto, na hora, sem margem para correções. O público adora o
desporto enquanto espetáculo, pela beleza estética que, às vezes, ali emerge,
pela graça e leveza dos atletas e das suas atuações. Mas, para vencer, um
atleta precisa de algo diferente; precisa de perfeccionismo técnico e de
dedicar toda a sua vida a esta busca de eficiência.
E não é isso, também, o que a América,
idealizada como meritocracia, pede a alguém que queira vencer?
Em
teoria, sim, isso ainda é verdade. Mas também é verdade que nós empolamos muito
essa noção, ao mesmo tempo que menosprezamos a consciência dos obstáculos. Sobrevalorizamos
os casos de sucesso...
Como o seu, aliás, anunciado como o do graduado
por Harvard, desempregado, que vendeu um primeiro livro por milhares de dólares...
Sim,
eu sou exemplo do que acontece a uma pessoa num milhão... Mas há 99,999 por
cento de escritores a quem isso não acontece. O destaque é sempre dado a quem
consegue, e, na verdade, trata-se de um embuste. Vivemos como que num sistema
de lotaria que ignora as pessoas comuns.
Na literatura, ganhar a lotaria seria
escrever a tal great american novel,
certo?
(risos)
Essa
noção é totalmente europeia. Nunca me perguntariam tal coisa nos EUA. É uma
falsa questão.
Não, não é. Você, como Franzen, colocam-se
numa linha de autores contemporâneos que, apelando à grande literatura do século
XIX (inglesa e dickensiana, no caso de Franzen; no seu caso, a Herman Melville,
que tutela todo o romance), querem compor painéis sociais muito ambiciosos, uma
espécie de romances-metáfora da América atual.
(longo
silêncio)
Acho
que cada geração tem uma versão disso; dos longos romances de Edith Warthon ou
de William Faulkner até à saga Coelho de John Updike. Mas, enquanto escrevia, a
minha maior ambição era gerir quatro personagens diferentes e as respectivas
histórias e psicologias, num enredo muito complexo. Se no romance existe um
painel social, ele provém de uma acumulação de detalhes e da atenção muito
concentrada num período de tempo e num espaço confinados. Esse é o meu
temperamento como escritor. Talvez desemboque na mesma busca de entendimento
das questões sociais de um romance programaticamente concebido como um grande
panorama. Todavia, o ponto de partida é diferente: do absolutamente particular
para o geral.
Inspirado em Tchékhov?
Tchékhov
é um pólo literário. Muitos dos meus outros autores preferidos (Melville,
Faulkner ou Wallace) trabalham num polo oposto; compõem quadros vastos, numa
prosa verborreica, musical, muito arejada, numa espécie de estilo máximo. O que
mais gosto neles é o facto de serem muito diferentes de mim e de, por isso, me
desafiarem. Tchékhov é-me mais próximo.
Na compaixão pelas personagens?
Absolutamente.
Ele é o mestre na compaixão pelas personagens, mas também numa composição completíssima
de cada uma delas. Mesmo sendo compassivo ou trabalhando-as com humor, ele
mostra-nos sempre as falhas, os lados negros, até a idiotia das personagens;
todos os lados do prisma que elas são. E fá-lo num estilo conciso e perfeito,
admiravelmente natural, tão simples como beber um copo de água.
É para atingir também um estilo espontâneo que escreve sempre à mão?
No
início, tentei o computador, mas não resultou. A passagem das ideias para o ecrã
era demasiado rápida e, depois, obrigava-me a um enorme trabalho de revisão. O
texto era quase uma performance, em constante
mutação. Escrever à mão obriga a uma maior reflexão e concentração prévias e, paradoxalmente,
resulta num ritmo mais natural e num texto mais autêntico. Dá-nos acesso a uma
dimensão subterrânea, mais inconsciente e, por isso, mais surpreendente, da
escrita.
Acesso ao talento?
Sim,
o talento talvez seja isso: descobrirmos em nós ideias que jamais imaginávamos
possuir.
LER / Novembro 2012
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)