Luka e o Fogo da Vida é a segunda incursão de Salman Rushdie na literatura infanto-juvenil. Sequela de Harun e Outras Histórias (1990), o romance oferece-nos a mesma alegria provocatória e vibrante, mas despreocupada, que, em 1989, motivou uma fatwa contra o escritor (n. 1947, Mumbai). Na escrita, como nas fotografias, Rushdie gosta de exibir um meio-sorriso irónico, de bem-disposto desalinhado. Coincidentes com esta personalidade são também a referência a O Feiticeiro de Oz como primeira influência literária e o facto de o autor ter decidido criar a primeira história infantil logo após o furacão de Os Versículos Satânicos.
Se, em Harun, escrito para o primeiro filho, o enredo e cenários se baseavam no realismo mágico e numa inspiração mais tradicional (homenagem a As Mil e Uma Noites), em Luka, publicado em 2010 para o segundo filho (de 12 anos, a mesma idade do protagonista), Rushdie reactualiza as estratégias das Alice de Lewis Carrol para falar da contemporaneidade. Aproximando-se delas, ele quer vencer as dinâmicas dos videojogos.
Idealmente, este é um livro para pais e filhos. Na aventura de Luka (irmão mais novo de Harun), pelo Mundo da Magia, as lições de vida, história e filosofia servem-se com despretensiosa erudição e uma adorável ternura. Luka, o miúdo canhoto, filho tardio, pretende tirar o pai, Rashid, contador de histórias profissional, das garras do Grande Sono (espécie de coma, prenúncio da Morte) e, em simultâneo, voltar a dar forma humana ao seu urso de estimação (chamado Cão) e ao seu cão de estimação (chamado Urso). Como nos vários níveis de um videojogo, esperam-no múltiplos desafios e peripécias para ultrapassar o Mar das Histórias, o Rio do Tempo ou o Lago da Sabedoria, atingir o cume da Montanha do Conhecimento e, supostamente, roubar o Fogo da Vida.
Pelo caminho, Luka aprende a sabedoria da realidade da vida (aqui, para lá dela, só há o Nada e Ninguém). Encontra-a reflectida num mágico mundo paralelo, ocultado durante milhares de anos por «uns misteriosos desmancha-prazeres embuçados», intitulados «Aalim ou ilustrados». A linguagem é cuidadíssima, há trocadilhos, lengalengas, canções e poemas, pequenos desafios lógicos e «PDCE (Processos Demasiado Complicados Para Explicar)». Rushdie escreveu uma inteligente fábula de «supercolossal ultraproeza» para dizer que as histórias são «a identidade, o sentido e a força vital» do Homem.
Luka e o Fogo da Vida, Salman Rushdie. Tradução de J. Teixeira de Aguilar, Dom Quioxote, 228 págs.
LER/ Dezembro 2010
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