Um país-prisão
África do Sul, 1972. Aos 32 anos, Michael K é um peão «numa guerra em que não [ocupa] lugar nenhum». Com o seu rosto bizarro (nasceu com o lábio e as narinas deformados), parece «um insecto que acabou de cair». Como o príncipe Mischkin, de Dostoievski, ele é o idiota cujas consciência e inocência permitem a revelação da verdade de uma história. A história, neste caso, é a da sociedade do regime apartheid (abolido em 1990) que John Maxwell Coetzee (Nobel da Literatura 2003) comparou a uma prisão. Uma paranóica paisagem humana de sofrimento e injustiça à qual o escritor sul-africano dedicou 38 anos de carreira literária e 17 romances (o último, «Diary of a Bad Year», acaba de ser publicado em língua inglesa). Nas livrarias portuguesas está agora disponível este «A Vida e o Tempo de Michael K», de 1983, distinguido com os importantes Prémio Booker e Fémina Étranger.
Nestas páginas não sabemos quem é negro ou branco, quem tem ou não o poder, nem sequer o mapa exacto do trajecto de Michael K em fuga à violência da Cidade do Cabo. Porque o único ideal deste herói é «viver à velha maneira, flutuando no tempo, acompanhando as estações da natureza, não [se] interessando, mais do que um grão de areia, em modificar o curso da História».
Michael K cresceu num orfanato, foi jardineiro num parque público e, quando a mãe ficou gravemente doente, decidiu conduzi-la num periclitante carrinho improvisado de regresso à sua terra natal. A viagem far-se-à através de «meio mundo de raízes arrancadas, de terra húmida e de esquisitos cheiros fétidos», em fuga aos postos de fiscalização, ao frio e à fome. Após a morte da mãe, Michael K decide continuar na direcção desse «campo» idealizado. Ali, por algum tempo ele será um Robinson Crusoe, ligado à terra, longe da civilização. Até que o internam num acampamento de refugiados, onde um médico (narrador da segunda parte do livro) acompanha a sua fuga final até «um sagrado e fascinante jardim».
J.M. Coetzee é um dos mestres contemporâneos na criação de ficções centradas num universo histórico e político muito particular mas dotadas de uma misteriosa dimensão universal, que as transforma em distopias intemporais. Para muitos críticos, ele é um descendente directo de Kafka ou Beckett, compondo fábulas modernistas assentes no absurdo da sujeição do homem a sistemas repressivos, cruéis e impessoais.
Para a leitura coetziana da nova ordem social na África do Sul aconselha-se a leitura de «Desgraça», de 1999. Para melhor entendimento biográfico e teórico do autor, sugere-se, respectivamente, o livro de memórias «Boyhood: Scenes from Provincial Life» (1997) e o romance «Elizabeth Costello» (2003). «A Vida e o Tempo de Michael K» é um clássico Coetzee, sem nenhuma palavra supérflua e com o apartheid como cenário de inferno nessa mesma África do Sul cuja espectacularidade da paisagem é descrita com paixão. Como parábola do ser humano em luta contra a monstruosa crueldade de um destino através da ligação ao cio da terra, Michael K é uma personagem inesquecível.
A Vida e o Tempo de Michael K, J.M. Coetzee, Publicações Dom Quixote, 209 págs.
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)