A guerra, ao contrário
Londres, 1947, 1944 e 1941. Quatrocentas e tal páginas que avançam às arrecuas, seguindo o retrocesso da acção. Sarah Waters experimenta no seu quarto romance, O Vigilante, acabado de chegar a Portugal, uma gestão peculiar do tempo narrativo. Enquanto o leitor vai conhecendo de antemão o futuro das personagens, descobre-as no passado, cada vez mais ignorantes das consequências das suas acções. Explorando ao limite os processos de analepse e anacronia, Waters reafirma a importância da História como uma relação complexa e reciprocamente constitutiva do presente, do passado e do futuro.
Na verdade, a força desta autora, várias vezes nomeada para os importantes prémios Orange e Man Booker e apontada pela revista Granta como uma das mais brilhantes novas vozes da literatura britânica, não está no polimento estilístico da prosa. Provara-o já na sua trilogia sobre o “descomedido lesbianismo vitoriano”, percorrendo três décadas do século XIX (Tipping the Velvet, Afinidade e Falsas Aparências, os dois últimos traduzidos pela Bizâncio). Nos seus romances, que apelidou de “falsos romances históricos”, aplica o seu conhecimento especializado da ficção histórica homossexual e uma investigação apurada das épocas retratadas, para fazer nascer personagens cujos movimentos de emancipação transgridem uma sequência histórica causal. Mais uma vez, conta uma história como não fora contada.
O Vigilante é um sóbrio drama de guerra. Um retrato realista do tédio, do medo e da tentativa de fuga das personagens ao cerco do matraquear das antiaéreas, das explosões ensurdecedoras, do racionamento e da circulação entre fantasmas de ruas e vidas desmembradas. Seguimos, de 1947 a 1941, três mulheres e um homem homossexuais, uma mulher e um homem heterossexuais, os segredos, as relações amorosas e as teias que os unem, apesar das suas diferenças. Romance de maturidade, O Vigilante trabalha com espantosa competência descritiva o encadeamento retrospectivo de momentos e pormenores destas vidas.
Sem os lugares-comuns que podiam nublá-lo na abordagem a uma época ainda próxima na memória colectiva ou ao universo do lesbianismo, o romance gere com delicadeza as expectativas do leitor e prende-o ao prazer da leitura. O clímax dá-se enquanto Churchill clama: “A Inglaterra aguenta.” Na escuridão da noite, as personagens, vigilantes, resistem, objectando as suas consciências ao caos de uma época histórica e à desordem dos sentimentos. O Vigilante é uma proeza notável.
O Vigilante, Sarah Waters, Bizâncio, 448 págs.
SOL/ 18-11-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)