Os outros Borges
Jorge Luis Borges previu-o pouco tempo antes do fim, quando disse que “muito poucos escritores contemporâneos não aprenderam com ele ou o imitaram”. E, na verdade, vinte anos sobre a sua morte, o universo borgeano continua em expansão. Tal como as suas ficções, o labirinto criado em torno delas multiplica-se como num confronto de espelhos, e dispara criativamente em todas as direcções. Desta vez, é Borges e a Matemática que pede atenção cuidada, a partir das lições proferidas pelo escritor e matemático Guillermo Martínez em 2003, em Buenos Aires.
Ame-se ou odeie-se, quase tudo está em Borges, mesmo que seja sob a forma de paradoxo. Testemunha-o também Com Borges, o livro de memórias do canadiano Alberto Manguel (autor do excelente Uma História da Leitura) que, entre 1964 e 1968, teve o privilégio de entrar em casa do escritor já cego e de ler para ele. Para Borges, “a realidade residia nos livros” e “os livros restauravam o passado”. Com assombrosa memória literária, o “seu mundo era totalmente verbal: a música, a cor e as formas mal tinham lugar nele”. Sabemos que também lhe eram indiferentes a pintura, a sociologia, a biologia, a psicanálise, a ficção russa e francesa do século XIX ou, genericamente, a política. E, no entanto, os seus sonhos, dizia-o ele, possuíam uma “esfera ilimitada”. Com infinita ambição, procurava ficcionar um universo sem centro, onde “o todo não é maior do que qualquer das partes”.
É a partir de noções como estas últimas que Guillermo Martínez propõe uma insólita abordagem a Borges. Em duas lições complementadas por dez ensaios, disseca estruturas e elementos de estilo presentes em obras como “O Aleph”, “O Livro de Areia” ou “A Biblioteca de Babel” e aproxima-os de abstracções lógico-matemáticas. Defende que “a matemática corre nos textos de Borges no interior de um contexto de referência filosóficas e literárias” e explica-o “para aqueles que só sabem contar até dez”. Percebemos então, por exemplo, a possível importância dos números fraccionários na ideia de “reunir todos os livros num só volume, com uma quantidade infinita de páginas”. Com Martínez e Manguel, redescobrimos a inteligência e invenção do microcosmos criado por Borges. E ficamos a aguardar a eventual tradução portuguesa de Borges y la Ciencia, editado na Argentina em 1999. Como mais uma parte que se juntará ao todo.
Com Borges, Alberto Manguel, Ambar, 80 págs.
Borges e a Matemática, Guillermo Martínez, Ambar, 152 págs.
SOL/ 04-11-2006© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)