Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

terça-feira, novembro 02, 2010

Mary Reilly - Um Livro Por Dia


O médico, o monstro... e a criada

Valerie Martin reinventa clássico da literatura fantástica

Por que crescem as ervas daninhas mais fortes do que as plantas que cultivamos? Responde Mary Reilly, a criada de quarto de Dr. Jekyll: “É como se, por serem selvagens, tivessem mais força de vida.” Mary sabe bem o que diz. Ela resistiu às tenebrosas cicatrizes provocadas pelo sadismo de um pai alcóolatra, aprendeu a ler e a escrever numa escola de feroz disciplina vitoriana e aceita a sua condição de criada pobre cuja única ambição é servir com total dedicação o seu “Amo” e vir a ter “um bom caixão forrado, com uma boa mortalha”. E, no entanto, insiste em cultivar um jardim no soturno pátio da casa, contrariando as ervas daninhas.
É ela, Mary Reilly, a maior força do romance homónimo de Valerie Martin e da sua reinterpretação do clássico “O Estranho Caso de Dr. Jekyll & Mr. Hyde” (ou “O Médico e o Monstro”), escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson em 1886. Criando uma personagem feminina para um enredo original onde elas eram inexpressivas, Martin dá-lhe também o poder de conduzir a narrativa. A estratégia é hábil para manter o leitor suspenso da atmosfera gótica de uma história da qual ele já conhece o mistério. Embora poucos talvez tenham lido as cerca de cem páginas do conto original de Stevenson, fazem já parte da iconografia popular as figuras de Dr. Jekyll, o médico que encontra uma fórmula química capaz de isolar o lado maléfico da natureza humana, e Mr. Hyde, o terrível resultado desta experiência que testou em si mesmo. A elas, “Mary Reilly” (adaptado ao cinema por Stephen Frears em 1996, com Julia Roberts no papel principal) acrescenta uma nova visão.
Seguimos as páginas genuínas do diário que Mary escreve à noite, quando a casa está silenciosa. Ela é actriz resignada da sociedade londrina vitoriana dominada pelas relações hierárquicas, mas funciona também como testemunha invisível do choque entre a moral e as novas perspectivas positivistas e científicas que ocorre no laboratório do seu “Amo”. Vê com maior clareza, e coragem, a desordem que progressivamente se instala. Atraída pelos dois pólos da personalidade do mesmo homem, com amor ou com repulsa segue de perto a luta entre o bem e o mal. Ao virarmos a última página, a personagem de Mary Reilly, suportada por uma estrutura narrativa brilhante, junta-se a Dr. Jekyll e Mr. Hyde na galeria das personagens literárias inesquecíveis.

Mary Reilly, Valerie Martin, Cavalo de Ferro, 224 págs.

SOL/16-09-2006
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)