O sangue dos outros
Para Jonathan Safran Foer, comer animais de produção industrial é desumano.
Aviso: se quer continuar alegre e despreocupado ao comprar e comer carne e derivados, sobretudo de aves ou porco, não leia este livro. MESMO. Caso não siga o conselho, na primeira ida ao talho após a leitura de Comer Animais, de Jonathan Safran Foer, vai corar, ter vontade de vomitar ou fugir a sete pés.
É verdade que a realidade nele descrita e investigada pelo autor durante três anos (até 2009) é, no essencial, a da indústria agropecuária nos EUA. Todavia, a Europa e o resto do mundo não escapam a este criativo e veemente libelo por uma ética na criação e abate dos animais. O autor quer que sejamos «omnívoros mais honrados». Para tal, mostra-nos com detalhes chocantes um sistema que nos alimenta de uma forma massiva e mais barata graças a crueldade, maus-tratos e sadismo extremos aplicados aos animais.
Aos 33 anos, Jonathan Safran Foer tem dois romances publicados: Está Tudo Iluminado (2002, Temas e Debates, pesquisa ficcionada dos seus ascendentes judeus na Europa de Leste) e Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2005, Quetzal, sobre o 11 de Setembro). Comer Animais possui as mesmas talentosas simplicidade, inteligência e ironia que o destacam na ficção. Foer pensa neste livro «como uma novela», mas ele é também um manifesto autobiográfico e um ensaio-reportagem. A comida é narrativa, diz, referindo os dois atributos dados pela tradição judaica: «alimenta-nos e ajuda-nos a recordar». Por isso, Comer Animais conta muitas histórias e tem duas figuras tutelares: a do filho recém-nascido do autor, motivo da pesquisa; e a da avó, refugiada da Segunda Guerra, a memória-viva do valor da comida.
Comer Animais analisa conceitos e evolução histórica, faz remissões eruditas, fala de poluição, manipulação genética, doenças, hábitos e crenças. Mas o enfoque principal é, sempre, nos animais-vítimas, sobretudo as aves e os porcos, no seu provável horrível sofrimento quando sujeitos à crudelíssima manipulação humana e na pavorosa qualidade da carne consumida nos EUA. A maioria dos exemplos são repugnantes, mas também há outros, de eficiência, ética e compassividade. Foer visita matadouros e unidades agropecuárias familiares, descreve ou infiltra-se em pecuárias industriais e reproduz excelentes depoimentos para todos os ângulos. Quando fala do tabu de comermos animais de estimação, dá-nos uma receita de cão filipina. Quando acha que já os circunstanciou o suficiente, atira-nos números (por ano): 10 mil milhões de animais terrestres abatidos para consumo nos EUA; 140 mil milhões de dólares de rendimento para a indústria agropecuária; 21 mil animais inteiros comidos, em média, por cada americano durante a vida e 76 milhões de americanos doentes, por ano, por causa de alimentos; 50 mil milhões de aves de criação criadas e mortas em todo o mundo. Por fim, deixa-nos duas opções: o vegetarianismo ou a luta pelo bem-estar dos animais até chegarem ao nosso prato. A indiferença é uma impossibilidade.
Comer Animais, Jonathan Safran Foer, Bertrand, 336 págs.
SOL/ 19-11-2010
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)