Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

domingo, outubro 24, 2010

Presos à leitura... em 1998

Microcosmos do país que temos, nas prisões portuguesas ler é um acto raro mas precioso. Para alguns, ele é sinónimo de evasão e de conforto.

O tempo parou à porta. Aqui, no Estabelecimento Prisional de Tires, só há «condenadas». Que se apresentam, cada uma delas, assim: «Eu sou fulana, x anos de pena, y cumpridos.» Mulheres restringidas ao molho de folhas de um processo judicial, depois a uma sentença, a um número, a uma cela, a um balde para dejectos, a uma esperança lá longe. Entre elas, Laura M., 33 anos, toxicodependente condenada por homicídio há cinco. Uma figura alta, com uma bata aos quadrados, as mãos calejadas e uma boca maltratada que sorri com vergonha. E que diz: «A leitura faz-nos ir até onde quisermos. Se alguém tiver um livro, já não morre.»
Nas prisões nacionais, ler é uma das melhores formas de simular a liberdade. Uma arma capaz de restituir a dignidade e a capacidade de pensar a homens e mulheres condenados à solidão e à rotina mais penosas. Dos 52 estabelecimentos prisionais portugueses, 50 têm biblioteca. Milhares de volumes circulam entre as mãos dos seus 14582 ocupantes. Ali, onde cada sujeito passa a ser apenas um «recluso», alguém que se pretende afastado da sociedade e da vida, encontrámos alguns verdadeiros leitores. Daqueles que cumprem à risca todas as regras desta arte. Que seleccionam, comentam, analisam os livros. Que os devoram de um dia para o outro, à noite, no silêncio das celas. Que incarnam as suas histórias e voam através das grades.
Dois compassos de espera, o ajustar da chave e do ferrolho, o som seco do gradão que se fecha nas nossas costas. Um corredor longo e dois homens encostados às paredes, entre dois vasos de flores, a sorver os seus cigarros. Depois outros, a caminhar sem pressa, como se os pés pesassem quilos e eles quisessem esticá-los até ao infinito. E um que explica: «Aqui, um minuto é um dia, um dia um ano, um ano...»
O autor da frase é António T. 32 anos, preso preventivamente há 4 meses no Estabelecimento Prisional (EP) da Covilhã, por suspeita de homicídio. Está sentado num caixote de madeira, a descascar batatas para um alguidar, metido dentro de uma bata azul desbotada e demasiado curta. Conta que é empresário, filho de agricultores e que tem o 11º ano incompleto. Antes de ser preso, só lia jornais. «Livros, muito poucos, porque não tinha tempo. Achava a leitura um passatempo. Aliás, ela é uma coisa secundária se a pessoa não for viciada.»
No primeiro mês que passou na cadeia, António fartou-se de magicar. Esqueceu parte da sua história, passou por «momentos terríveis». Na sua cela, que partilha com mais seis reclusos, descobriu entretanto a leitura. Começou por devorar os livros de Camilo Castelo Branco, para os quais «lá fora» todos lhe chamavam a atenção. Chorou com as páginas de volumes dos quais hoje já não se lembra do título ou da história. Habitou-se a ir buscar dois livros à biblioteca todos os domingos e quartas-feiras. Ler tornou-se, de repente, um passatempo essencial. Como António, parte dos reclusos portugueses agarra-se à leitura para lutar contra o isolamento e a monotonia do dia-a-dia. Complementar aos programas de trabalho, ensino ou ocupação dos tempos livres, existentes em todas as cadeias nacionais, ler é uma decisão individual, uma forma de afirmação da personalidade e de evasão.
Tal como defende Otília Gralha, 43 anos, chefe da Divisão dos Serviços de Educação, Ensino e Animação Socio-Cultural da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, «em Portugal lê-se pouco, nas prisões lê-se mais». Com uma taxa de analfabetos ou indivíduos apenas com a instrução primária a rondar os 50%, a população prisional é em simultâneo uma surprendente base de reflexão sobre as potencialidades da leitura.

IR PARA FORA...
A biblioteca do EP da Covilhã serve bem de exemplo. Instalada numa sala de aula no primeiro piso do edifício central e aberta das nove da manhã às sete da noite, contém 2612 livros e cerca de 15 revistas renovadas periodicamente e é visitada com regularidade pelos 143 reclusos desta cadeia regional. Em Maio último, cedeu 72 livros a 20 leitores com habilitações académicas desde o primeiro até ao terceiro ciclos. Sendo o romance e a banda desenhada os géneros de eleição em todas cadeias, pasme-se com a lista de volumes mais requisitados nesta, nos últimos meses: Os Filhos da Droga, de Christiane F., Vai Aonde Te Leva o Coração, de Susanna Tamaro, Constituição da República Portuguesa, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, O Esplendor de Portugal, de António Lobo Antunes, Freud para Principiantes ou A Casa do Fim, de José Riço Direitinho.
Amândio B., 44 anos, está há cerca de três no EP de Pinheiro da Cruz, a expiar uma pena de sete por tráfico de haxixe. Membro da Comissão dos Reclusos e um dos responsáveis pela biblioteca do estabelecimento, clarifica: «Na cadeia, ler é um sinal de prestígio. Serve para nos mantermos vivos e actualizados. É curioso que as pessoas mais degradadas, aquelas que não têm televisão na cela, têm poucos meios financeiros ou foram abandonadas pela família e pelos amigos, são as que mais procuram os livros.»
Para este ribatejano, ex-comerciante de pronto-a-vestir, é certo que quase todos os 311 utentes daquela biblioteca (numa população de 517 reclusos em regime fechado e 240 em regime aberto) requisitam por dia um dos oito mil volumes disponíveis, «porque trouxeram lá de fora hábitos de leitura». Amândio não acredita muito na recuperação através dos livros ou dentro da cadeia. Mas não deixa de dizer que sim com a cabeça quando um outro recluso fala da leitura como forma de «fazer voar a imaginação». E lembra que o seu pai, também comerciante, tinha por companheiras permanentes de mesa de cabeceira as Selecções do Reader’s Digest e, por isso, lhe passou este hábito. Da memória, resgata ainda o enredo de O Prémio, de Irvin Wallace, lido aos 17 anos. «O livro marcou-me muito e aqui na cadeia percebi que a inveja entre aqueles dois galardoados é real também na nossa vida.» Dentro de uma prisão, a ficção e a realidade andam por vezes de mão dada.
Que o diga Hadwan, 30 anos, cidadão libanês a cumprir uma pena de 5 anos e seis meses na cadeia do Linhó. A sua história parece saída direitinha de um romance picaresco. Hadwan vivia no Paraguai quando, em 1996, decidiu «vir de férias» pela primeira vez a Portugal. A bagagem vinha tão carregada de droga que, logo no aeroporto, a nossa personagem foi barrada e imediatamente levada para a prisão. Sem conhecer nada do país onde passaria os próximos anos — «só sabia quem tinha sido o Vasco da Gama» —, nos primeiros dias no Linhó, Hadwan precipitou-se para a biblioteca e requisitou todos os livros que encontrou sobre História de Portugal. Hoje já diz do alto do seu português com pronúncia arrevezada: «Depois de ler, percebi que os portugueses são muito parecidos com os árabes que andaram por cá muito tempo. Às vezes, até a comida cheira à minha terra.» Já conhece os portugueses, Hadwan? «Só os ‘maus’», responde com um sorriso.

LÁ DENTRO Uma viagem ao universo da leitura nas cadeias é uma bofetada de luva branca nos chavões com que a sociedade tem por hábito catalogar os reclusos. Quem imaginaria, por exemplo, que o nosso Hadwan fosse senhor para dizer que prefere «os escritores russos, porque entram com mais facilidade pela narração histórica ou da guerra»? Ou que António Tomás, o que descasca batatas na cozinha do EP da Covilhã, afirmasse: «A palavra ‘livro’ tem que se lhe diga. Um livro é um conjunto de letras que define a realidade de cada um. Ninguém escreve sem razão e, por vezes, ela coincide com a do leitor»?
Luís Manuel, 33 anos, que está no EP do Linhó há nove anos a cumprir uma pena de 17, assegura que o seu autor preferido é Carlos Drummond de Andrade «pelo jeito simples e descritivo da sua prosa, como um eu lírico a descrever as coisas». Para este cidadão brasileiro, a leitura «foi como uma chamada». Hoje, é o seu maior refúgio quando, à noite, sozinho na cela, «as ideias se espalham muito e [precisa] de qualquer coisa para manter o rumo e [o] orientar para pensamentos mais positivos».
Essa qualquer coisa são os livros, companheiros que Luís descobriu aos 15 anos, com a leitura de O Principezinho, de Saint-Exupéry. Na cadeia, retomou a conversa com eles, desvendando as páginas de Herman Hesse, Nietzche, Eça de Queirós, Piaget ou Jostein Gaarder. Por instinto, descobriu então algumas das regras dos bons leitores. «Aprendi a não julgar um livro pela capa. Faço anotações em rodapé e, passado um ano, quando volto à mesma leitura, descubro que evoluímos muito entretanto, eu e o livro.» O vizinho da cela da frente da de Luís é Victor Hugo. Encontramo-lo perto do refeitório, no labirinto dos corredores e edifícios do EP do Linhó, a cadeia central com a população mais jovem: cerca de 700 reclusos, com uma média de idades de 23 anos, mas já com penas pesadas ligadas sobretudo ao universo da droga.
Victor Hugo é mexicano, tem 27 anos e, tal como Hadwan, veio para Portugal «de férias». «Depois, foi tudo tão rápido que nem dei conta», lembra. Já cumpriu três anos de uma pena de nove. Apaixonado pela «cultura e pelos livros em geral», frequenta as aulas de pintura e de teatro do EP e faz exercício três vezes por semana. Antes de ser preso, sonhava tornar-se actor ou publicitário. Mas o destino trocou as voltas da vida deste rapaz alto e forte a quem a mãe pôs o nome do célebre autor francês porque, quando estava grávida, o marido lhe ofereceu um exemplar de Os Miseráveis. Victor não desdenha a herança do seu nome. Trabalha na biblioteca da cadeia, «o sítio mais tranquilo onde se pode estar». Tal como diria o sábio Luís Manuel, «a liberdade também está na cabeça das pessoas, é lá que a gente viaja melhor».

UMA PARTILHA
Na parede, uma folha A4 com o desenho de uma palmeira. E uma frase, não assinada: «Sonho é o ópio mental com que se embriagam os que fogem à realidade.» São dez e meia da manhã e estamos na biblioteca do pavilhão três do EP de Tires, um exíguo compartimento anexo à sala de aulas. Maria J. D., a responsável, acaba de ser mudada para o RAVI (Regime Aberto Virado para o Interior) e sente a falta das suas companheiras de cela.
Lá fora o barulho é ensurdecedor. Penduradas nos varandins dos três pisos do edifício, as mulheres gritam, resmungam, conversam, outras arrastam as chinelas, bidons e baldes de água suja pelos corredores. A voz metálica dos altifalantes vai chamando números. No pátio, grupos de ciganas olham desconfiadas, duas mulheres fazem malha sentadas num vão de escada. Fechada a porta da biblioteca, abre-se um mundo dentro de outro, cheio de rotinas, territórios e papéis bem definidos. Maria J. D., 24 anos, conta a sua história enquanto arranca nuvens de fumo de um cigarro. Condenada por tráfico há dois anos, «apanhou» quatro e meio de pena.
A culpa, diz, foi da desorientação em que se sentiu depois de acabar o 12º ano. «Como escape, passava a vida em festas. Fui presa com 17 comprimidos e três selos de LSD.» No caminho de Castelo Branco para Tires, vinha a sonhar que a carrinha tivesse um acidente, não queria acreditar no que lhe acontecera, entrara em pânico. No primeiro dia na cadeia, mentalizou-se de que «não havia saída». Só depois vieram os sentimentos de revolta e de total impotência.
No meio do «pesadelo», agarrou-se à amizade com as duas mulheres com quem até agora partilhava uma cela de dois por três metros e meio, onze horas por noite ali fechadas. Construiu o seu «cantinho» com Rosa S., 37 anos, condenada a três e meio por conivência em burla agravada, e Sara B., 24 anos, ex-manequim, ex-estudante universitária de Línguas e Literaturas Modernas, há cerca de dois anos e meio condenada a oito por tráfico de estupefacientes. «Ali, sentimo-nos menos presas e mais protegidas», explica.
Durante a noite, quando o silêncio apenas é cortado pelo grito de alguém que adoece, quer comprimidos para dormir ou se envolve numa rixa, as três mulheres mergulhavam na conversa e nos livros. Sara B., que trouxe «lá de fora» fortes hábitos de leitura, tornou-se a mentora do «desenvolvimento da personalidade» das outras duas. Seguindo as preferências da sua mãe, levou-as até às páginas da Bíblia ou da literatura mística de Paulo Coelho, Carlos Castañeda e James Redfield. Livros que Maria José põe hoje à frente dos romances, «demasiado fúteis, vagos e utópicos».

VÍCIOS E FUGAS
Para Maria J. D., que antes só lia os livros da escola ou «um policial ou outro para distrair o cérebro», na cadeia a leitura passou a significar «uma libertação». E defende: «Os livros servem para aliviar o nosso sofrimento e encararmos a nossa passagem por aqui apenas como uma paragem na vida lá fora para fazermos um balanço da nossa vida.» Rosa, uma apaixonada por jornais — «literatura mais realista...» —, procurou na leitura uma distracção e mensagens positivas que a confortassem. Encontrou «alguns momentos de felicidade», só comparáveis à euforia que rodeia o momento das visitas ou ao convívio e desabafo com as amigas. Estamos já perto do meio-dia, hora do segundo «conto» (em Tires, as reclusas são contadas três vezes por dia), em seguida da entrega das marmitas e dos sacos das visitas. Deixamos Maria e Rosa e conversamos com Sara numa sala de um outro edifício. Tem longos cabelos castanhos bem cuidados, uma cara bonita e umas mãos que tremem a denunciar o terrível desajuste entre ela e esta cadeia. «Isto é um massacre», desabafa. Sente-se livre por estar durante meia-hora longe do pavilhão onde é raro atrever-se a pôr o pé fora da cela. «Estou muito deslocada aqui. Entro em permanente conflito com o sistema.»
Com uma formação e vivências distintas da maioria das outras reclusas, Sara é a pedra na engrenagem ou, vista a coisa por outro prisma, um dos nomes mais sonantes no pavilhão três de Tires. Teve muitas depressões desde que aqui entrou, já tentou suicidar-se e recorre com frequência aos fármacos que são amplamente fornecidos pela instituição. Diz: «Sem o apoio da família e a leitura, eu estaria abandonada dentro desta sociedade fechada.» Há dois meses, «em desespero de causa», começou a trabalhar na oficina de montagem de utensílios domésticos que, com as oficinas de tapetes de Arraiolos, de encadernação de livros, a escola e a elaboração de um jornal, constitui uma das formas de ocupação dos tempos livres para as reclusas em regime fechado do pavilhão três. Cedo se revoltou. «Trabalhamos de manhã e à tarde num trabalho monótono e estupidificante e pagam-nos no máximo cinco contos por mês. Não é justo.»
Para escapar «ao terror disto tudo», Sara foi buscar força aos livros. No primeiro ano, de um modo quase obsessivo. «Agarrei-me a uma visão mais espiritualista da vida. Passava os dias fechada na cela a ler, o que depois se tornou não num prazer ou num passatempo, mas numa obrigação.» Hoje, lê menos e escreve mais. Guarda cópias feitas com papel químico das cartas que envia aos amigos e à família e onde expõe as «reflexões a que [chegou] sobre a nossa sociedade». E faz suas as palavras de James Redfield, o autor do seu livro preferido, Profecia Celestina: «À primeira vista a cadeia é tenebrosa, mas foi aqui que descobri respostas para as minhas questões existenciais.»

SONHOS E COMPANHIA
A rotina prossegue, inabalável. Dentro de uma prisão são poucas as novidades e as alegrias. De vez em quando, uma luz ao fundo do túnel, alguém que sai para julgamento, em liberdade precária ou condicional, uma visita excepcional, o fim de uma pena. Com mais frequência se fala de droga, das loucuras cegas que atravessam a noite nas celas, dos negócios, das doenças, dos suicídios, da falta de apoio, das saudades e da solidão. Depois, há fases em que se conversa, joga ou vê mais televisão, em que se lê mais, e outras em que não se faz nada, saturado de tudo.
Raúl C.parece atravessá-la todas a sorrir. Sujeito volumo e de gargalhada pronta, tem 44 anos e está preso há quase nove, com uma pena de cerca de 11, por burla, abuso de confiança e falsificação de documentos. Descobrimo-lo na biblioteca de Pinheiro da Cruz. Ex-profissional do espectáculo, artista de variedades, locutor, actor, cantor e palhaço, é rápido na apresentação: «Sou um tipo divertido, do signo Gémeos, extrovertido, brincalhão. Mas quando estou numa fase negativa, fuja quem estiver de baixo.» Como todos os palhaços, as lágrimas assentam-lhe tão bem como os sorrisos. E diz: «Nasci no Montijo e fui abandonado por pai e mãe com oito meses de nascido. Passei a infância a roubar da casa dos meus tios para procurar o meu pai. Quando o encontrei, ele disse-me que me odiava a mim e a quem me tinha salvo a vida e puxou de uma faca para me matar.» Histórias tristes de quem passou depois por dois institutos de reeducação, foi fuzileiro dos 16 aos 24 anos, depois alfaiate, ourives, tipógrafo, o que calhasse. No meio delas, um terceiro ano de Medicina tirado com gosto, e os livros, muitos livros, da colecção Mosquito ou Major Alvega, Os Maias, O Monte dos Vendavais, Os Miseráveis, «êxtases de leitura».
Na cadeia, Raúl lê ainda mais do que antes. Explica: «É um escape. O espírito solta-se, sai daqui e transporta-me para o ambiente do livro. Já não vejo mais nada à minha volta..» Foi nesta elevação de espírito que, há pouco tempo, sorveu uma a uma as páginas de Guerra e Paz, de Léon Tolstoi ou O Senhor dos Anéis, de Tolkien. Por isso hoje defende, ironia das ironias, que a prisão proporciona incentivos à leitura inexistentes cá fora. «Aqui, o acesso aos livros é mais fácil. Conversa-se mais sobre eles, tem-se mais tempo, vontade e paciência para ler.»
Ali, onde o tempo conhece outras regras, a vida tenta furar as grades através das páginas dos jornais e dos livros. Nas cadeias, existe um povo que lê não porque é obrigado a isso, mas porque descobre que esse acto é uma das formas mais singulares de libertação e de viagem. Através da leitura, homens e mulheres a quem foi imposta uma medida restritiva de liberdade provam ser sobretudo cidadãos em pleno gozo dos seus direitos, capazes dos piores defeitos e das maiores virtudes. Seres humanos capazes de desvendar, pela boca de António T., o segredo maior da leitura: «É como os cigarros: fuma-se um, dois, três,... e já não se consegue parar.»

ESCREVER A FUGA
Stephane G. tem um olhar matreiro e doce. Natural da Alemanha, mas com nacionalidade francesa, aos 33 anos é já conhecido internacionalmente como um dos reclusos europeus mais perigosos, perito em protagonizar fugas impossíveis. Descobrimo-lo no Estabelecimento Prisional do Linhó, a expiar uma pena de 20 anos, da qual cumpriu oito anos e seis meses em diversas cadeias portuguesas. E diz: «A liberdade depende da corrente que nos prende. Cada um tem a sua própria prisão.» Nos livros, companheiros de sempre na sua vida, Stephane encontrou «uma das únicas coisas a que [se] podia agarrar no meio do inferno psicológico que são as cadeias». Nos de Niestzche, por exemplo, descortinou o seu próprio retrato e recolheu «conselhos preciosos»: «Ter consciência do que sou capaz. Ultrapassar as virtudes e os defeitos para alcançar coisas mais altas. Ter objectivos. Não me deixar influenciar. Desenhar o meu caminho e admitir aquilo que sou.» Agora, Stephane concentra as suas forças numa só ideia: escrever o livro da sua vida. Explica: «Será o meu desabafo em palavras, uma marca das aventuras por que passei, contadas com um grande sentido crítico.»
Peripécias não lhe faltam. Aos 20 anos, é detido em Nice e condenado a prisão perpétua por homicídio. Cinco anos depois evade-se da cadeia de alta segurança daquela cidade francesa, empunhando uma «pistola» feita com papelão. Seguem-se anos «de férias» através da Europa, vários assaltos a bancos. Em 1989, é «chibado» (denunciado) por um membro da quadrilha com a qual então actua em Portugal. Detido no EP do Porto, inicia uma interminável série de tentativas de fuga. Pelo meio, fica uma, do Hospital de Caxias, desta vez empunhando uma «pistola» feita de sabão. Este ano, finalmente seguro de que não será extraditado para França, onde teria de cumprir prisão perpétua, «já não [lhe interessa] fugir.»
Por isso, escreve todos os dias, todas as noites, um livro que pretende que seja também «um requisitório sobre o sistema francês de prisão perpétua». Não sabe ainda se alguma vez o vai terminar, mas já escolheu o título: Nom et Prénom de Ta Mère (Nome e Apelido da Tua Mãe). Foram essas as primeiras palavras dos agentes franceses que o capturaram em 1985. «Chocantes, nunca mais me sairam da cabeça.»

UM LIVRO E UMA FLOR 
Quando há cinco anos entrou no Estabelecimento Prisional de Tires, condenada a uma pena de 15 por homicídio, Laura M. sentiu «um misto de medo e de alívio». Na época, gastava 50 contos por dia em droga e sabia «que estava muito perto da morte». Depois da ressaca de privação e do ajuste ao mundo da cadeia, começou a reagir. «Estabeleci objectivos e comecei logo a estudar», lembra. Após ter completado o 11º ano e um curso de formação profissional em tapeçaria de Arraiolos, Laura prepara-se agora para o exame ad-hoc de acesso à Faculdade de Direito. Entretanto, retomou «com esforço e vontade» um prazer antigo e crucial na sua vida: a leitura.
Explica: «Para mim, ler sempre foi uma forma de viajar saudavelmente para outros mundos.» Nos livros, redescobriu que «a mente é livre» e inventou-se de novo a si própria. Pouco se importou se, na prisão, as reclusas que não lêem catalogam as outras, as leitoras, «como alguém que se está a armar aos cucos, a exibir-se ou a achar que é mais importante do que as outras». Nas páginas de O Principezinho, de Saint-Exupéry, Laura descobriu um dos segredos para vencer a sua dependência de drogas. E conta: «Identifiquei-me com a flor que é protegida pelo príncipe. Ela passou a representar o meu próprio eu. Quando somos toxicodependentes, o nosso eu fica muito escondido, muito desprotegido. Neste momento, acho que o protejo como se fosse a minha flor. Ponho-lhe uma campânula »

VISÃO nº296/1998
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)