Norman Manea: Variações para um auto-retrato
Apontado para o Nobel da Literatura, o romeno Norman Manea é a voz de uma certa Europa Central, traumatizada, mas resistente em afirmar-se como entidade singular. O Regresso do Hooligan, romance de 2003, revela a terapia do exílio exterior e interior como resposta à doença do gueto.
Cada ser humano, como cada personagem, conjuga-se sobretudo num singular uno, íntimo, solitário e, até certo ponto, intransmissível. Entre os cinco e os nove anos de idade, Norman Manea, judeu nascido em 1936 em Suceava (Bukovina, Roménia), esteve deportado com a sua família num campo de concentração na Transnístria, onde perdeu os avós maternos. De regresso à Roménia, acreditou durante um tempo na ilusão da utopia comunista, para depois se distanciar, procurando refúgio num emprego como engenheiro e na quimera da escrita e do amor profundo pela língua romena. Até 1986, os 50 anos de idade e uma bolsa para Berlim Ocidental, viveu a ditadura de Ceausescu, a censura das suas obras de ficção (a estreia deu-se em 1966) e a condição de «antipartido», «desalinhado», «indefinido», alguém «nascido sob o signo do intruso». O exílio nos EUA desde 1988 não o libertou. O curto regresso à Roménia, em 1997, para dizer o kaddish (oração dos mortos) junto da campa da mãe, ou as visitas ao pai em Israel, não o trouxeram de volta.
«Habito, com embaraço, a minha biografia», escreve Norman Manea em O Regresso do Hooligan, a inesquecível narrativa agora publicada pela Asa. Um exercício de desarticulação de identidades, exame crítico do passado e reflexão filosófica e literária sobre a definição do Eu e o cepticismo da pertença. Norman Manea, o hooligan extraterritorial e apátrida, é também a portentosa (re)criação literária de uma procura de si mesmo.
Conhece Antonio Tabucchi, logo, deduzo que conheça Fernando Pessoa?
Eu ensinei Fernando Pessoa [no Bard College, perto de Nova Iorque, onde lecciona Literatura]. Foi uma escolha difícil porque o poeta português era praticamente desconhecido. A minha proposta foi por duas vezes recusada pela direcção, mas eu não desisti e acabei por ter cinco estudantes nessa aula e por convidar Tabucchi para partilhar connosco uma aproximação mais pessoal ao poeta.
De certa forma próximo do drama em gente pessoano, O Regresso do Hooligan assenta numa busca de identidade, na construção de uma personagem para o autor. Quem é Norman Manea? Ficamos a conhecê-lo através deste livro?
Alguma coisa ficarão a saber. Mas a verdade é que nem eu próprio o conheço; continuo à procura dele. Pessoa brinca de uma forma literária e criativa com a noção de identidade, reclamando e criando heterónimos, diferentes personagens com biografias distintas. O que é muito actual, não só em termos literários, mas também culturais e sociais. Hoje em dia, a ideia de identidade está por todo o lado. As pessoas pensam que, se descobrirem a sua verdadeira identidade, terão uma chave de ouro, a solução para tudo. A identidade é algo que nos liga a um certo grupo a partir de laços étnicos, linguísticos, religiosos, de partilha de uma escolha (por exemplo, gostar de basebol) ou de uma condição específica (por exemplo, pessoas míopes que usam óculos). Muita gente acredita que é a identidade o que melhor as define. Eu nem ignoro a identidade, nem gosto de a sobrevalorizar. Creio que a entidade, entendida como aquilo que prevalece quando ficamos sozinhos num quarto, é ainda mais importante do que a identidade. Quando alguém está sozinho consigo mesmo, isso não significa que todas as identidades desapareçam de repente, mas o que prevalece é o apelo individual como ser humano.
A pertença a si mesmo prevalece sobre a pertença a qualquer tribo?
Mais uma vez, não quero ser demasiado deferente, mas, para um escritor, o foco da literatura é o indivíduo.
E não o colectivo?
O colectivo é inevitável, enquanto contexto histórico, social ou político ou de ligação a uma tribo. Ainda assim, o centro da literatura é a vida íntima, interna, de um personagem.
No livro, cita Cioran: «Consagrei demasiados pensamentos e demasiada amargura à minha tribo!» O Regresso do Hooligan é uma narrativa sobre a judeicidade (jewishness). É essa a sua tribo e, no entanto, escolhe estar sempre a saltar para dentro e para fora dela.
A judeicidade nunca é apenas a judeicidade. É sempre uma relação entre o indivíduo e os outros, em determinada sociedade e num determinado contexto. Este livro fala também dos outros porque mostra o drama desta relação entre o outsider e o insider. É por isso que, como diz, eu me coloco ao mesmo tempo dentro e fora: porque me interessa perceber os efeitos do exterior no interior de um personagem. Este livro trata da formação e deformação de um protagonista, que é também o narrador. Acaba por ser uma viagem para o Eu. Todavia, retrata também as circunstâncias em que ele foi formado e deformado, uma certa envolvente política e social: um país, uma tribo, um grupo ao qual voluntária ou involuntariamente o personagem pertence. Não interessa se ele declara logo na primeira página que não é judeu e pede para não o tomarem por um judeu...
... porque ele se sente judeu?
Claro, e ninguém acredita nele quando afirma não o ser. As circunstâncias definem-no inelutavelmente como tal. Aos cinco anos de idade, ele está num campo de concentração e não sabe de todo o que é ser judeu. Mas ele está ali porque é judeu, e dizem-lho.
Quando saiu do campo, era «um velho que ia fazer nove anos». Um velho judeu? Porque a sua geração, a que viveu esta experiência traumática, representa também uma velha Europa, a Mittleeuropa...
Absolutamente.
Uma Europa Central assente na cultura iídiche?
Não necessariamente. No meu caso, eu era um perfeito assimilado. Desde criança que estava imerso na cultura romena. Em minha casa, falava-se apenas romeno. Claro, os meus pais sabiam algum iídiche e havia algumas, poucas, famílias judias, muito religiosas, que ainda falavam hebraico. Na história judaica, houve sempre uma luta entre a língua hebraica, tida por sagrada, e o iídiche, considerado a língua da diáspora, folclórica, típica do gueto e totalmente europeia. A minha língua era o romeno e só aprendi iídiche no campo, a ouvir os meus avós a falarem-no entre si.
Havia, portanto, essa herança e essa história atrás de si e que poderia ter optado por (re)construir. Mas, quando saiu do campo, preferiu ser totalmente romeno.
Eu queria muito pertencer, não ser diferente dos outros à minha volta. Abracei entusiasticamente a ideologia comunista porque, para um jovem, ela significava a fantástica promessa de que todos seríamos iguais e felizes e teríamos um futuro maravilhoso. A minha escolha provocou conflitos com a minha família porque eu queria sair do gueto, nunca mais falar do que acontecera, esquecê-lo e concentrar-me apenas nesse futuro mágico à minha frente. Como não era totalmente estúpido, aos 16 anos, o sonho ruiu. A contradição entre a realidade e o dogma era demasiado gritante e óbvia; não podermos criticar nem uma nem outro afastou-me em definitivo daquela utopia infantil. Percebi que as utopias se transformam rapidamente em terror.
Na sua Jorménia [termo perjorativo para Roménia usado pelo autor], como na Cacania d'O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil?
Na Cacania do início do século XX existia já a vulgaridade, a estupidez, o oportunismo, mas ainda se tratava apenas de uma comédia ridícula, sem tragédia. Não existia ainda o terror da sociedade fechada muito dogmática, tirânica e despótica que chegou com o totalitarismo de direita na Alemanha e o totalitarismo de esquerda no mundo comunista.
Durante quarenta anos, viveu a sordidez muito específica da sociedade romena sob o comunismo, «esse mundo intraduzível, cheio de encanto e de fezes» e escudado pelo «ovo frágil da Mentira». Porque é que só decidiu sair dali depois de celebrar os 50 anos?
Porque, entretanto, tentei evadir-me através da literatura. Sendo judeu, podia ter saído do país [por exemplo, no Êxodo de 1958], mas não o quis fazer. Fui tão estúpido que acreditei conseguir viver naquele país, habitando nele sobretudo uma língua.
Emigrou para dentro através da língua-pátria, achando que ela lhe bastaria como escudo protector?
Era o meu enclave interno. Não era perfeito. E, no final, revelou-se impraticável.
A escolha profissional pela engenharia também foi uma fuga?
Tive a desvantagem de ser um aluno excelente, tão bom em matemáticas como em letras. A licenciatura em Engenharia Hidrotécnica era dificílima. No meu curso, entrámos 128 alunos e saímos formados apenas 26 [em 1959]. Três anos depois de começar a trabalhar, percebi que aquilo não era de todo para mim. Mas a profissão de engenheiro servia-me de protecção política porque me permitia corresponder ao compromisso de dependência que me era solicitado a toda a hora e que acabei por impregnar. Ser independente significava ser perigoso, logo, perseguido, excluído.
Refere a «pequenez da pertença, o seu ridículo». Mas, a «comédia» de tantos guetos na sua vida é também a tragédia da solidão. Sentia que, como escritor, essa distância lhe era, de algum modo, favorável?
Tentei e esperei consegui-lo. Hoje posso dizer que fui bem sucedido na preservação de uma certa integridade: não encontra em nenhum dos meus textos ou livros publicados na Roménia nessa altura qualquer cumplicidade ou elogio àquela sociedade louca. Talvez veja essa solidão no livro...
... como moldura, sim.
Mas eu recuso o estatuto de vítima. Não quero ser considerado uma vítima. Não gosto do processo de vitimização. Hoje em dia, ele tornou-se uma forma de as pessoas se venderem como espectáculo.
O espectáculo de uma intimidade pública?
Sim, uma falsa intimidade. É obscena a forma como as pessoas se entregam, em público, aos lugares-comuns da lamentação para suscitarem a pena dos outros e encontrarem uma desculpa para a infelicidade. Pelo contrário, tentei mostrar no livro que, até mesmo nas situações mais extremas, podem existir momentos de felicidade, de inspiração, de ilusão, de liberdade. Apesar de poder ser conotado com uma certa ingenuidade, acredito que esses momentos preservam uma beleza qualquer, quase uma transcendência: o primeiro amor, a primeira vez que vemos o mar, momentos de grande exaltação e de pertença a si mesmo.
Apresenta o seu pai como um homem lacónico, introvertido. Num «isolamento digno e taciturno», ele recusava-se a participar no «mercado negro do sentimento». De que forma esta posição de reserva e dignidade moral colide com a importância do testemunho? Como é que, colectivamente, se transmite a noção de um sofrimento muito específico sem lesar a intimidade das vítimas?
A pergunta é excelente, mas a resposta está ligada à decisão individual escolhida por cada um. Há muitas pessoas que preferem o silêncio, mas existem sempre muitas outras que querem falar, existem os documentos de época ou o trabalho dos historiadores. A mãe de uma amiga minha esteve em Auschwitz e nunca quis testemunhá-lo. A primeira coisa que fez quando chegou a Israel foi procurar um médico para que ele lhe apagasse o número tatuado do braço. É uma solução possível. Não pode haver regras, o comportamento depende do que cada um sente. Sempre admirei a extraordinária decência e a solidão do meu pai. A minha mãe era muito diferente: extrovertida e voluntariosa.
É curioso que, ao longo do livro, hesite sempre entre a posição do seu pai e a da sua mãe. Quase no final, revela que, numa das primeiras conversas que tiveram, Philip Roth, «mestre da ironia e do sarcasmo», se aborreceu com a sua auto-compaixão vitimizante típica de um leste-europeu...
Ele é um tipo muito americano. [risos]
De qualquer modo, partilham os dois a necessidade de escapar ao que o Norman chamou «a garra aveludada» da «tirania da afectividade» maternal, associando-o a um gueto. Esse foi também um dos motores de Roth desde O Complexo de Portnoy.
É um óptimo ponto de vista; nunca tinha pensado nisso. É muito difícil escaparmos à nossa mãe judia, onde quer que estejamos. Provavelmente, é mais fácil na América, porque a sociedade à volta nos oferece muitos estímulos e muitas possibilidades de fugirmos à família. Na Roménia, era bem mais difícil e, como notou há pouco, nós tentámos evitar os pequenos enclaves abraçando a ideia de uma grande família universal, ligada ao grande ideal comunista. Depois dessa tentativa falhada, eu procurei outras, como o amor. Hoje, continuo a testar a literatura como forma de fuga, e também como imersão no escrutínio da nossa própria biografia, do sentido da nossa vida.
O motor deste livro é a sua decisão de, em 1997, regressar à Roménia. Mas cita Kierkegaard, dizendo que «a decisão é um momento de loucura». O período de indecisão quanto a sair da Roménia foi também um período de loucura?
Absolutamente.
Voltar à Roménia, mesmo que por apenas dez dias, foi uma derradeira passagem ao acto, uma espécie de coming out, coming in, de libertação definitiva através de um novo mergulho?
Era inevitável que significasse um regresso para dentro, de mim, do passado. Confrontar-me, com outros olhos, com aquele espaço e constatar os estragos que o país e as pessoas haviam sofrido foi uma aventura difícil. Em 1986, eu deixara para trás o que considerava ser o pior cenário: uma catastrófica conjugação de miséria e terror. Fiquei chocado quando, na Primavera de 1997, verifiquei que já não existia aquele tipo de terror, mas que, no lugar dele, se instalara um nacionalismo louco, infantil e agressivo. A miséria persistia, agora numa combinação pirosa com o assédio publicitário americano mais básico e vulgar. Após o totalitarismo comunista, do ponto de vista político, sobreviera o revivalismo de um nacionalismo anterior. Questionei vários intelectuais romenos sobre se, crendo olhar para o ano 2000, não estavam, afinal, a olhar para o ano de 1948. O revivalismo nacionalista associava 1948 a um mundo perfeito: não o foi, de todo. Se eles querem pertencer à União Europeia, têm de olhar para a Europa de hoje, com tudo o que de positivo ou negativo possa ter. Têm de querer participar numa Europa moderna, com um futuro desconhecido, mas com certeza melhor do que o passado. A imagem idealizada do passado é uma ilusão. Nada foi perfeito no passado porque nós não somos perfeitos. O ser humano é, por definição, imperfeito, no passado, no presente e no futuro. Portanto, temos de ser mais lúcidos nos nossos julgamentos.
Após relatar todas as viagens internas e externas d'O Regresso do Hooligan, tornou-se mais lúcido relativamente a si mesmo?
Felizmente, não. Não quero ser demasiado lúcido sobre mim mesmo. Espero ter ainda alguma coisa para descobrir. Mas este livro obrigou-me a conhecer-me melhor, isso sim.
Fê-lo acreditar mais no futuro? No livro, a certa altura declara-se céptico em relação a qualquer tentativa infantil e ingénua de alterar o destino. E clama: a gente comum que continue a chupar o seu estúpido chupa-chupa da esperança!
(risos]
Bem, eu não sei quanto futuro mais ainda terei. Este livro não é pedagógico, nem tenta instruir o leitor — detesto esse tipo de livros. Do ponto de vista literário, gostaria que ele tivesse antes uma voz autêntica, original. No entanto, é verdade que O Regresso do Hooligan oferece alguma, se não muita, informação sobre um determinado espaço e tempo (a Roménia pré-comunista, comunista e pós-comunista), o que pode ser interessante para o leitor.
É também a narrativa de vários paradoxos. O mais interessante de entre todos eles é o jogo literário entre realidade e irrealidade, entre um Norman Manea real e um Norman Manea ficcionado....
O segundo faz parte do primeiro. São diferentes, mas complementam-se para comporem um retrato mais amplo. Todos nós possuimos, ao mesmo tempo, uma presença real na rotina quotidiana e um Eu mais misterioso. Proust defendeu que nunca se deve confundir a pessoa real com o autor ele mesmo, esse Eu mais enigmático que produz o livro.
Este livro é uma autobiografia ou um romance?
Prefiro que seja o leitor a responder. O livro foi apresentado e recebido de maneiras muito diferentes em diferentes países: nos EUA, apresentaram-no como uma memória; em Itália, como a história de uma vida; na Alemanha, como um auto-retrato; em Espanha, como um romance. Agrada-me que a edição portuguesa, como a romena, não tenha qualquer subtítulo, o que o deixa em aberto para o leitor. Penso que se trata de um híbrido, como, aliás, eu mesmo o sou. Tem um lado novelístico, outro memorialista, no final da viagem, assume-se um registo diarístico. Peço aos leitores que combinem essas possibilidades como bem as entenderem.
Imaginou um leitor ideal para este livro?
Acho que imaginamos sempre um leitor ideal virtual. Este leitor pode nunca aparecer, mas temos esperança de que ele exista algures. Escrevemos para o desconhecido. Mas, num certo sentido, escrevemos também para um duplo de nós mesmos.
Não para um heterónimo...
... nem para si mesmo, mas sim para um duplo. O que é semelhante, mas não idêntico.
Sobre todo o livro pairam a figura do Palhaço Pobre [referido como Palhaço Augusto] e a do «augusto exilado». Peço-lhe que comente a seguinte afirmação da crítica Larissa MacFarquhar (New Yorker, 03/09/2003): «Manea não é, por natureza, um satirista: ele é demasiado moral, demasiado desesperado. Muitas vezes, auto-intitula-se um palhaço, mas não é convincente nesse papel.»
É uma observação muito interessante. Um amigo romeno muito próximo fê-la mais ou menos nos mesmos termos quando editei o romance Apprentice Years of Augustus the Fool. Desde cedo, senti-me muito atraído pela figura simbólica do palhaço: um perdedor, de certo modo um intruso, alguém que encarna vários lugares e identidades e que troça do destino e da história, de tudo. Por outro lado, a figura do palhaço permite-me olhar para várias facetas históricas: a do ditador que se crê omnipotente ou a do falhado (por exemplo, o artista excluído). Não sei até que ponto caibo nesta personagem ampla do palhaço, mas ela interessa-me como emblema.
Como duplo literário para o seu drama em gente?
Sim. Mesmo que não seja um duplo psicológico perfeito, ele é um duplo literário.
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