História
de dois homens e uma montanha, o romance As
Oito Montanhas colocou Paolo Cognetti em destaque nas livrarias e nas mesas
de cabeceira de toda a Europa. Em entrevista, o escritor italiano, que vive há
oito anos a dois mil metros de altitude, apresenta-se como um novo realista, um
sereno combatente contra o ruído e a cacofonia contemporâneos.
Henry David Thoreau
defendeu, em Walden (uma referência
importante no seu romance): “A maior parte das pessoas tem vidas de desespero
resignado. Aquilo a que chamamos resignação não passa de desespero crónico. Da
cidade desesperada ao país desesperado, não nos resta senão procurar consolo na
coragem das martas e dos ratos-almiscareiros.” Concorda?
Essa
passagem é ainda mais verdadeira hoje do que no tempo de Thoreau. Os meios de
comunicação atuais são sobretudo meios de entretenimento. Tenho horror à nossa
obsessão por preencher cada minuto com qualquer coisa. Porque acredito que o
silêncio e a solidão escondem verdadeiros tesouros. O meu maior tesouro é a
escrita, que nasce do rumor e do silêncio. O maior prémio que este livro me deu
foi o encontro com a solidão na montanha. Hoje, a cidade, real ou virtual, está
cheia de ruído, que nos suga e nunca nos deixa ficar a sós.
A sua paixão por Nova
Iorque, entre os 20 e os 30 anos, [escreveu dois diários de viagem sobre a
cidade] nasceu a partir da leitura da literatura norte-americana e antes sequer
de visitar a cidade. Quem foram os seus mestres norte-americanos e de que modo o
influenciaram?
Curiosamente,
são todos mais de oeste do que de leste. Existe uma divisão clássica entre uma
literatura nova-iorquina, citadina, muito próxima da europeia, e uma outra, ligada
ao mito da fronteira e ao Oeste. Sinto-me mais próximo desta última e de
autores como Jack London, Ernest Hemingway, Raymond Carver ou Charles Bukowski.
Foram eles que me ensinaram que uma história não nasce entre quatro paredes,
através de um processo intelectual; ela nasce, antes de mais, da vida e da sua
pulsação. Ensinaram-me que o que vivemos pode ser transformado em literatura.
Essa ligação aos EUA mudou
também a sua relação com a literatura italiana?
Sim,
muito. A minha rebeldia de estudante fez-me a rejeitar a literatura italiana e procurar
na literatura americana algo que fosse só meu, descobertas autodidatas, que eu
achava muito mais válidas do que quaisquer outras. Mas quando, há oito anos,
fui viver para a montanha, aproximei-me dos autores italianos que procuraram
uma língua em que pudessem contar a experiência vivida nos Alpes. É o caso de
Mario Rigoni Stern, cujos livros li e usei como uma espécie de enciclopédia.
Outros escritores da época de ouro da pós-Segunda Guerra, como Primo Levi ou
Cesare Pavese, também foram uma descoberta de maturidade.
Há em todos eles um certo
lirismo na procura de um trilho individual que os leve para longe da violência
e da negritude da guerra e da cidade...
Tinham
também um enorme sentido cívico, político da literatura. Para eles, o escritor
era um intérprete importante de uma sociedade e de uma época e também de certos
temas políticos prementes. Achavam que estavam a construir um mundo novo.
Admiro muito o sentido moral que os guiava e creio que, hoje em dia, quando
restam tão poucos autores assim, é urgente repensar a literatura sob esse
prisma e resgatá-la da ligeireza que, em geral, tomou conta da arte.
Ter um sentido moral não é de
todo uma tendência atual e é facilmente confundido com ser-se moralista... O
seu romance pode, precisamente, ser lido como um conto moral ou político, sobre
a distância entre os ideais e a realidade de uma cultura cada vez mais
materialista. Aceita esta descrição?
Não
pensei num tema preciso ou numa mensagem a transmitir, mas, antes de mais, numa
história a contar, composta, em parte, pela minha própria vida e pela vida de
várias pessoas que conheço. Mas aceito, a
posteriori, que o romance contém uma mensagem moral.
A nossa geração [que tem
hoje 30 e 40 anos] reagiu contra a ideia, ou foi impedida pelas circunstâncias,
de construir uma família, uma casa, uma carreira, e, em parte, rejeitou a
cidade, como espelho da ruína desses sonhos e da fragilidade e da incerteza da
vida atual.
Vivemos
uma crise económica que é também a crise de vários modelos de vida. Nasci e
cresci em Milão, uma cidade fundada no trabalho. Com a crise económica, de
produção e de emprego, Milão tornou-se um sítio hostil, onde a vida é muito
dura. Mas há qualquer coisa de belo na crise e na necessidade de encontrarmos
novos caminhos... Neste aspeto, somos mais afortunados do que os nossos pais, que
tinham a estrada traçada de antemão. Para nós, é tudo muito mais misterioso,
confuso e difícil. E é mais bela a perspetiva de que cada pode procurar e
encontrar o seu próprio caminho. Até porque, atenção, não penso que devamos ir
todos viver para as montanhas. [risos]
Pergunto-me quanto deste
movimento atual de rejeição ou fuga à cidade, de procura de uma vida mais
simples e despojada, é genuíno ou traduz, apenas, mais uma moda...
Bem,
que a ecologia seja uma moda é algo muito bom. Por outro lado, a renúncia e a
vontade de se libertar de coisas supérfluas e de viver de uma forma mais
simples nunca mais estarão na moda. Porque são movimentos contrários a tudo o
que é sugerido, valorizado, veiculado, hoje em dia, pela publicidade e pela
lógica e apelo do consumo. O despojamento até pode estar na moda, mas será apenas
uma miragem dele, não a sua substância.
É reconstruindo um velho
abrigo na montanha e para tal colocando as suas vidas em pausa que Pietro [narrador
e protagonista de As Oito Montanhas] e
Bruno, o seu amigo de infância e de montanha, cimentam a sua amizade na idade
adulta. O cenário do Vale de Aosta é também um exemplo da luta entre a
intervenção humana e a floresta, que recuperou os seus domínios após a guerra e
o abandono pelos homens. É como se os caminhos a escolher se bifurcassem, entre
o natural/autêntico e o superficial, o que está previamente construído e o que
está ainda por construir.
Como
disse, fui muito influenciado pela ideia de fronteira americana, de algo para
lá do qual tudo é selvagem. Foi isso que primeiro procurei na montanha. Todavia,
na Europa não há nem Alascas, nem naturezas selvagens... Tudo é muito
antropizado, está habitado desde há milénios. Andar nos Alpes significa
reencontrar as marcas de uma civilização antiga que, pouco a pouco,
desapareceu. Os novos montanheses estão, na realidade, a reabilitar locais
abandonados, a pôr de pé algo a partir das ruínas pré-existentes. Esta é a
nossa experiência europeia; não somos um mundo novo. Seria muito mais luminoso
colonizar a natureza selvagem. Habitar um local cheio de signos e de memórias
atrai-me, mas, ao mesmo tempo, tem algo de deprimente, encerra uma atmosfera de
cemitério.
Pietro vive, ele mesmo,
entre a importância do legado do pai [que lhe apresentou e o levou a explorar a
montanha] e de a ele corresponder e a necessidade de matar o pai, rejeitando-o e abrindo novos caminhos. No abrigo que ele
e Bruno constroem é gravado o seguinte epitáfio: “A memória é o melhor abrigo.»
Será mesmo?
Sim,
penso que é.
No entanto, o romance é
muito crítico em relação ao peso dos laços familiares nas escolhas que podemos
fazer...
Passamos
a vida em conflito com isso. Por um lado, na primeira parte do livro, há uma
certa nostalgia da infância. Por outro, existe uma raiva latente contra a
família. As duas forças estão presentes em todo o romance. Mas, afinal, não
vivemos todos assim: divididos entre a vontade de rejeitar o pai e a de fazer
as pazes com ele?
Talvez também nisso a virtude
esteja no meio, algures entre os dois apelos.
E
talvez só a atinjamos na meia-idade, quando se acalmam os radicalismos da
juventude e da primeira idade adulta. Aos 20 ou 30 anos, eu era muito radical;
depois, fui começando a rejeitar as categorizações absolutas. Agora, cada vez procuro
mais uma linha de equilíbrio, também a nível dos afetos.
No seu caso, viveu a
experiência de criação de um projecto cultural coletivo, no bairro milanês de
Bovisa; um projeto idealista que, disse algures, acabou corroído pelo cansaço,
peça inveja e pelo ciúme...
Mas,
antes da desilusão, houve um grande encantamento. Milão tem uma tradição
operária e política muito fortes. Nos anos 1990, ainda estava viva a influência
dos centros sociais e culturais que surgiram em espaços ocupados (como fábricas
abandonadas) desde a década de 70. Sempre estive muito ligado a esse tipo de
experiências políticas urbanas. Tudo isso se foi extinguindo em Itália a partir
do ano 2000, graças ao regresso da direita, a Berlusconi e a tudo o que ele
representou. Esses foram anos muito pesados para mim, de muita desilusão
política e de luto pelo fim de muitos projectos bonitos. Foi por isso que fugi
à cidade.
E às pessoas?
Também,
um pouco. No início, fui para a montanha à procura de solidão, paz e descanso.
Mas, aos poucos, tal como Pietro e Bruno foram construindo a casa, eu fui-me
afastando da ideia de viver num ermitério. Cada vez se tornou mais importante a
colaboração com as pessoas de quem gosto. Aliás, este ano vai lugar a primeira
edição de um festival de arte, literatura e música da montanha, que criei e que
vou coordenar. Entretanto, comprei e estou a reconstruir um velho estábulo, que
será um refúgio cultural e artístico, um pólo de união entre os habitantes da
montanha e os citadinos. Agora, não quero, de todo, isolar-me. Pelo contrário,
estou num momento muito construtivo. Jon Krakauer estava certo quando disse [em
Na Natureza Selvagem]: “A felicidade
só é real quando partilhada.”
No romance, Bruno, o
montanhês, diz: “São vocês, da cidade, que lhe chamam natureza. É tão abstrata na vossa cabeça que até o nome é abstrato.
Nós aqui dizemos bosque, pasto, rio, rocha, coisas que se
podem apontar com o dedo. Coisas que se podem usar. Se não se podem usar, nem
lhe damos nome porque não servem para nada.” Como é que define este dialeto da montanha? Que papel teve na
construção do romance?
A
língua deste livro foi algo que eu conquistei. Nasci e cresci na língua da
cidade. Para escrever a montanha, tive de aprender uma outra. Isso correspondeu
também a uma declaração poética; à busca de uma escrita que rejeitasse os
adjetivos e fosse composta quase só por substantivos. Cheguei à conclusão de
que os nomes das coisas são aqueles que melhor servem para contar uma história
honesta.
Quis afastar-se da
“retórica da montanha”, das imagens-comuns que têm a ver com o encantamento da
montanha. Mas a principal metáfora do romance está, afinal, contida nesta
frase: “Seja o que for o destino, habita nas montanhas que temos acima da
cabeça.” O que não deixa de ser uma certa retórica do paraíso da montanha,
certo?
Essa
é a montanha tal como o pai de Pietro a sonhava: um paraíso irreal, visto a
partir da cidade, ao fundo, distante. Eu queria que essa montanha, tal como
aparece no início do romance, fosse sendo substituída pela montanha real e, no
final, pela montanha habitada, que já não é idílica: continua bela, mas é dura
e desafiadora.
Tecnicamente, como é que
conseguiu dar à montanha não só uma forma, mas também uma substância, decisiva também
para as relações entre as personagens?
Nas
descrições da montanha, tentei evitar o uso do verbo “ser”. Quis descrevê-la
como algo vivo, como uma personagem que se move. A montanha não é estática,
muda a cada minuto e tudo na sua paisagem é movimento. Nesta perspetiva, Pietro
e Bruno reagem a algo vivo. Eles falam muito pouco sobre si mesmos e, como diz
o pai de Pietro no início, não lhes é permitido lamentarem-se. Por isso, os
seus estados de alma refletem-se, de modo misterioso, na montanha à sua volta.
Ela pode estar em plena floração primaveril e, ainda assim, surgir escura e
fechada, porque é assim que a personagem a vive.
O humor da montanha é influenciado, transformado, pelas personagens.
Pietro e o pai, Bruno e a mãe,
são personagens enigmáticas. O silêncio faz parte delas e representa uma forma
de expressão. Até que ponto o silêncio é importante na literatura?
Na
literatura contemporânea, ainda estamos muito presos à prevalência do uso da
visão, daquilo que se pode ver. Estudei cinema precisamente porque pensava que
tudo o que é descrito numa história corresponde ao que se vê ou dá a ver, e não
ao que se pensa ou é pensado. Se as silenciarmos, as personagens são obrigadas
a expressar os seus sentimentos através do corpo e do movimento. É isso o que
mais me interessa. Talvez porque, como escritor, me sinto mais observador do
que escultor ou criador de mundos. E porque acredito que o corpo não mente.
Federica, namorada de
Paolo, que o acompanha durante a entrevista e serve, quando necessário, de
tradutora, diz: “Ele é assim também com as pessoas. A maneira como elas se
exprimem fisicamente mostra-lhe muito mais sobre elase o que são do que aquilo
que elas dizem. Ele acredita mesmo nisto!
É curioso que, para criar
um retrato mais autêntico da montanha e das personagens, o Paolo rejeite o
instrumento literário realista por excelência: o diálogo. Foi através dele que
os chamados realistas deram voz àqueles que não a tinham: por exemplo, os
operários ou os pobres. O Paolo, em vez disso, propõe que, para dar a ver as
personagens, se explore o silêncio.
É
verdade, nunca tinha pensado nisso. Gosto muito, por exemplo, das personagens
silenciosas, mas cujo diálogo interior está sempre presente, em Kent Haruf,
Cormac McCarthy, Hemingway or Carver. Não se trata d a voz interior modernista
de Ulisses de Joyce. É algo ligado ao
corpo, à ligação física das personagens com os objetos, os animais, os
elementos naturais. É algo muito anti-urbano, no sentido em que a cidade quase
que anula o corpo. Pelo contrário, para mim, a montanha significou uma
redescoberta do corpo e do mundo, muito libertadora, também para exprimir
sentimentos.
Em entrevista ao Corriere della Sera, disse que o seu motto de escrita é a seguinte frase de
Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres.” Como é que isso se traduz no afeto
pelas personagens e na liberdade que lhes é dada pelo escritor?
Significa
não escrever uma história na perspetiva do demiurgo, que manipula as
personagens como criaturazinhas ao seu serviço. Escrevo porque quero bem às
pessoas. Por detrás deste romance, está um grande amor pela minha mãe, pelo meu
pai, pelo meu amigo da montanha. Quis, antes de mais, contar a história do meu
pai, uma figura, obviamente, problemática para mim, e quis dizer-lhe que gosto
muito dele, apesar dos nossos conflitos e da nossa incapacidade de comunicação.
Esse é o principal motivo porque escrevo e crio histórias: dar conta do meu
afeto pelas pessoas.
Acha que foi também por
causa da autenticidade desse afeto que este romance conquistou de forma tão
arrebatadora os leitores?
Os
leitores acharam-no verdadeiro, porque, para mim, ele também corresponde a algo
verdadeiro. Perguntam-me muitas vezes quanto da história é autobiográfico, mas
isso não é importante; até porque é impossível distingui-lo do que é
ficcionado. Há momentos da história que foram imaginados ou sonhados, mas a maioria
provém de matéria real e da minha ligação real a determinadas pessoas...
E à natureza?
Sim,
num sentido mais humanista do que naturalista: o de uma natureza que serve o
homem, que o faz pensar e que pode trazer-lhe felicidade e paz.
As Oito
Montanhas, Paolo Cognetti, Dom Quixote, 223 págs., 15.90
euros
Sol, 13-05-2017
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)